sábado, 8 de setembro de 2012

MORRO DA PRAINHA

Barra dos Pescadores
Boca da Barra do Rio Grande de Ubatuba
              Com estes dois panoramas a partir do Morro da Prainha, o Curuçá dos tupinambás, eu apresento mais uma pérola do Eduardo Souza, que tem o talento de descrever preciosos detalhes desta cidade (Ubatuba) e de seus moradores, dando-nos a conhecer o que era uma vida simples num espaço onde todos se conheciam, trabalhavam e se divertiam enquanto o progresso se dilatava no prazo para chegar.
             Hoje, graças ao O Guaruçá, podemos ler e reler as narrativas deste caiçara que presenciou todas as transformações vivendo como menino do Centro da cidade.

             

        Você pode imaginar alguma criança, algum adolescente que tivesse quase uma cidade inteira como quintal para brincar? Eu tive, os da minha geração tiveram. Nesse quintal, há uma área que me traz muitas recordações daqueles tempos, circunscrita pela Praia do Cruzeiro, a boca da barra do Rio Grande da cidade, o morro Curuçá ou Morro da Prainha (conhecida nos tempos atuais como Prainha do Matarazzo).

        Esse morro era uma espécie de posto avançado na baía da cidade, de atalaia para o enfrentamento de quem ousasse, vindo pelo mar, atacar a então Villa de Ubatuba. No alto, em sua vertente, há uma valeta que a percorre no sentido da Praia do Perequê-Açú. Disseram-me tratar-se de uma trincheira. Aquela gruta que há defronte à Avenida Felix Guisard, dizem ter sido um túnel que sairia na Praia do Perequê-Açú.

        A Prainha do Matarazzo, no sopé do Morro Curuçá, foi porto para escoamento do café proveniente do Vale do Paraíba, café trazido em jacás, no lombo de burros. Deve haver ainda vestígios do cais que lá havia. Cheguei a conhecer as ruínas dos prédios da alfândega no canto direito da praia, convivendo com ranchos de canoas. O caminho pedregoso (talvez seja daí o nome Curuçá) que nos leva da Felix Guisard até a Prainha era cercado de amoras silvestres rasteiras, uma amorinha preta deliciosa, e urtigas terríveis.

         Meu tio Álvaro, irmão de meu pai, quando vinha do Rio de Janeiro nas temporadas de verão, levava a sobrinhada para tomar banho de mar na Prainha. A Praia do Cruzeiro não era aconselhável ao banho por ser brava e cheia de peraus traiçoeiros.

         No sopé do morro Curuçá havia também a casa do pescador Sidônio, pai do Toninho Sidônio, um amigo de infância que, assim como eu, era fã de gibis, álbuns de figurinhas e assistir, no Cine Iperoig, aos filmes de faroeste com o Randolph Scott ou com o Audie Murphy. O que assistíamos nas matinês estimulava nossas brincadeiras de mocinho e bandido nos lugares acima mencionados.

        Certa feita, a prefeitura meteu uma máquina de terraplenagem no alto do morro (no local onde recentemente funcionou a casa noturna “Tribo”) abriu uma clareira lá em cima. O saibro, o barro, desceu morro abaixo. Se não me engano, na época, disseram que era para construir uma caixa d’água que iria abastecer a cidade. Não fizeram merda nenhuma. Aquilo tudo ficou para nós brincarmos. Para os mais velhos, uma ferida no morro; para nós, um enorme escorregador proporcionado pela prefeitura. Apanhei muito de timbopeva por causa desse escorregador. Não havia calção que aguentasse. Vinha sempre com a bunda do calção suja de barro. Quando dava, sentávamos em papelão ou na bainha da folha seca da palmeira imperial que pegávamos na Praça da Matriz. Inesquecível.

        O Toninho Sidônio contou-me que viu assombração no caminho que leva à Prainha. Usavam uma túnica com capuz e cada qual segurava uma vela. Desapareceram de repente. Quando ouvi, arrepiei-me todo. Toninho disse-me que naquela pedra grande em que há um argola de ferro fixada, lá nas proximidades da estátua de São Pedro, era onde os escravos, que vinham nos navios, ficavam acorrentados... O medo naqueles tempos educava, era formador de homens, colocava limites. O medo do Inferno, penso eu, era o pior deles. Hoje em dia, as crianças não têm medo de nada e também não têm limites.

          Morro Curuçá. Morro da Prainha. Atalaia de muitas histórias da minha vida, da minha geração. Tempos em que esta cidade era nossa, literalmente nossa e a gente só tinha que brincar.


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto é caiçara, 60, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.

(Fonte: O Guaruçá)

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