quinta-feira, 30 de setembro de 2021

SEMEAR É PRECISO E É FÁCIL

 

Restinga na praia da Mococa - Arquivo JRS


       É tempo das amoras maduras. Meu olhar reconhece de longe as amoreiras. Ainda bem que há bastante delas  pelos caminhos, por onde passo! Também agora é época das pitangueiras carregadas. E tem delas por todo lado, espalhadas pelas calçadas, pelos jundus. Ainda bem! Vou colhendo, comendo e lançando as sementes na certeza de novas plantas, de mais gente se saciando nelas no futuro. Após a safra de amoras, procedo da seguinte forma: dou um jeito de podar uns galhos e enfiá-los em lugares estratégicos, pelos caminhos. Quem nunca se deliciou com aquelas frutinhas pretinhas, de doçura sem igual?


     Dias desses, o amigo Afonso me informou: "Sabe aquela muda de amora que você me deu? Agora está produzindo a todo vapor. Ao amanhecer de cada dia, vou primeiro vistoriar a amoreira e colher aquelas frutinhas deliciosas". Fiquei feliz. E ele prosseguiu; "Sinto que preciso fazer uma poda, pois os galhos estão altos, compridos demais. Pode me ensinar?". É fácil, pois essa planta é muito forte, tolera cortes radicais. Eu recomendo medir um palmo acima do começo do galho, de cada um deles, e cortar. O bom é que essa planta rebrota logo, com fartura de galhos, produzindo mais na próxima ocasião. Quando eu perguntei ao amigo se ela fazia geleia, a reação foi imediata: "Que nada, Zé! Eu prefiro é colher e comer na hora!". É dos meus; prefiro assim também.


     Coisa fácil é encher o mundo de árvores! Sabe as sementes das frutas que você consome em seu lar? Pois é. Guarde-as para lançá-las nas margens das estradas, pelos matos, quando estiver na próxima viagem. Caso você aviste alguém lançando, do veículo que segue na sua dianteira, algo impossível de identificar devido ao tamanho, pode ser que seja uma pessoa que já faça isso, que esteja semeando suas valiosas sementes. Minha esposa fica receosa quando preciso lançar sementes, mas somos seguidos bem de perto por outros veículos: "Quem está dirigindo aí atrás, pode pensar que você está jogando lixo na mata, Zé". E ela espera a ultrapassagem para dizer: "Agora pode. Tenta jogar bem longe para escapar da faixa onde os trabalhadores sempre passam roçando". Então... reflorestar o mundo é fácil, depende muito de cada um de nós.  

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

CHEGOU A PRIMAVERA!

 

Primavera das cores e das flores - Arquivo JRS


O mundo gira se revezando nas estações. De repente é primavera sem nem quase termos sentido o inverno no litoral norte paulista. E logo logo o verão nos alcança e nos encaminha aos céus outonais. No redemoinho disso tudo, o mano Mingo compôs este poema capaz de atenuar nosso corre-corre.


Atenuantes


Sim, eu colhi uma flor do jardim público


para enfeitar seus cabelos


e a tirei pra dançar


ao som de um artista de rua.


Sim, eu fiz isso diante de desconhecidos,


mas veja a tarde, ouça a música,


sinta a primavera…

terça-feira, 28 de setembro de 2021

PARA GOSTAR DE LER

Viva a FLIP! - Arquivo JRS


      Paraty, cidade vizinha da minha Ubatuba. Paraty: local da FLIP -  Festa Literária Internacional que encanta, quando tudo transpira romances, aventuras, estudos, crônicas, poesias etc. Quem não viveu ainda esse momento especial nessa cidade? Ainda não! Então se prepare para voltar à normalidade e poder viajar nesse evento. Sem contar o charme da cidade praiana, colonial, onde o mar, atrevido que é, constantemente quer se apresentar aos visitantes e moradores se enfiando pelos logradouros. Coisa bonita sim! E todos os autores e autoras que podemos conhecer nas palestras ou ziguezagueando por ali! Não tem preço, né?

      Agora mesmo a amiga Paula passou para uma prosa. Perguntei dos gêmeos.  "Viraram homens, mas não querem estudar mais. Um deles adora leitura; outro não. Eu noto o quanto o gosto pelos livros faz diferença. Nas conversas com eles, sinto a diferença nos usos das palavras, nas argumentações, nas inteligências distintas. Quem lê aproveita melhor a vida: disto eu não tenho dúvida!". Se uma mãe dá um testemunho desse, quem é eu para discutir. Conforme um dizer lá de casa: "Eu já sabia!".


      É, leitura faz diferença. Tem um monte de gente conhecida que, graças ao gosto de ler, se deram bem em vestibulares e concursos. Meus filhos e a toda a sobrinhada comprovam o quanto faz diferença essa afeição aos livros. Vale a pena prosear com gente que lê!


    Quantos lugares eu já conheci apenas pelos livros? Quanto de histórias eu fiquei sabendo em prazerosas leituras? Neste momento me lembro de uma frase do Ziraldo: "Ler é melhor que estudar". Concordo. Você não percebe que toda leitura é um estudo. Cada uma delas chega carregada de novas palavras, assuntos diversos, experiências únicas que ajudam a moldar nosso ser. Viagens...viagens...viagens maravilhosas!

      

     Paraty, terra do folião Otávio da Conceição, dos Cirandeiros e fandangueiros. Paraty de tantos caiçaras e quilombolas. Paraty dos doces de tabuleiro nos carrinhos que trepidam no calçamento pé-de-moleque. Que saudade de ti, Paraty!

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

OS PINTINHOS DO ZÉ PRETINHO

Uma parte do Saco da Ribeira - Arquivo JRS


       Agenor desceu a canoa, saiu agorinha mesmo. Vai para a pegadeira de lula lá fora, depois da Ilha Anchieta. Na canoa, ele o velho pai, Seo Belmiro. Dois remadores experimentados e sempre dispostos na busca do de comer. Eu, no jundu, apreciava aquela movimentação deles, com canoa seguindo mar afora. Papai e  Otacílio também foram naquela direção, mas bem mais cedo. Estavam longe, era tempo de quase estar chegando lá, depois do Ilhote das Palmas, pois não se vislumbrava mais nenhum sinal deles. Certamente que, pelo meio da tarde, estariam de volta abarrotados de lulas. Depois, mamãe faria uma panelada delas. Quem já comeu sabe o quanto é bom lula frita, cozida ou assada. Mais gente, depois deles, desceu suas canoas dos ranchos e se foi na mesma direção. O mar acolhia a todos. Eu continuei no jundu. A pedido do Seo Dito Graça, estendi o tresmalho no jirau para secar e revelar alguns rasgados. Depois, na parte da tarde, alguém, decerto, estaria ali remendando-o. 
  
    Toda criança, estando por ali, sempre era chamado a ajudar  em algum trabalho. Menino, né? De vez em quando um agrado caía bem, mas o prazer era servir, se sentir útil. Melhor ainda era escutar histórias e aprender lições! Agora, por exemplo, me recordo da ocasião em que, seguido de vento forte, um galho de capurubu destruiu o galinheiro do Zé Pretinho e matou algumas das aves. Ele, prontamente, juntou-as e saiu distribuindo pelas casas mais próximas. As pessoas agradeciam dando em troca alguns pintinhos. Por fim, ele recebeu o dobro daquele benefício que fazia, precisando fazer um novo e maior abrigo à criação. Mas isso não aconteceu de repente, de um dia para o outro. Por isso dava trabalho, nos finais de tarde, ajuntar os pintinhos num cercado de bambu. Então, mesmo muito tempo depois, Zé Pretinho, sarrista que só, chegava sempre nas rodas de conversas perguntando: "Alguém daqui avistou algum pintinho do Zé Pretinho?". Era só risada de todo mundo.

domingo, 26 de setembro de 2021

A COMPANHEIRA QUE SEGUE

 

Dona Gertrudes - Arquivo JRS


Armazém do Maciel - Arquivo Tia Helô

       Dizia a professora Heloísa, a Tia Helô, que, entre 1948 e 1950, ela passou por diversas escolas em Ubatuba. Uma delas foi na Enseada. Saía na segunda-feira, ainda de madrugada, caminhando do centro da cidade, onde morava, até a referida praia distante dez quilômetros. Lá era acolhida durante o restante da semana na moradia do Francisco Maciel, o maior comerciante da região. Desse tempo, lá se vão setenta anos, vem a amizade com entre ela e a Dona Gertrudes, agora centenária e vizinha da mana Ana, na rua Ponciano Eugênio Duarte. Ela é a companheira que segue. Em seu livro A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta, Tia Helô conta dessa intensa experiência de ser professora entre caiçaras daquele tempo, quando nem estradas havia para as praias do Norte e do Sul do município. A única via para circulação de veículos era a ligação Ubatuba-Taubaté, do começo da década de 1930, por onde ela veio conviver com o mar e o povo caiçara.

      Eu morava na casa do Chico Maciel: comida farta feita pela Dona Luzia. Ela era mestra da cozinha e sabia tudo de culinária.  Acordava-se cedo com o cheiro da ova assada na brasa do grande fogão a lenha. Gertrudes, sua auxiliar, era muito querida, além de contadora de "casos", como todo bom caiçara, adorava caçoar de todo mundo, sempre muito alegre, contava piadas e falava muito bem.

     Sinto até hoje o bom cheiro de comida que impregnava a casa toda. E também o aconchego daquela gente que nos recebia como seus verdadeiros filhos.

       Na escola, uma casinha bem na beira da maré, umas vinte crianças, em três fileira de carteiras: primeiro, segundo e terceiro ano do curso primário. Era difícil trabalhar assim, mas eu aprendi a lidar com as dificuldades. Dividia as lições, algumas escritas nas duas pequenas lousas de um metro de comprimento, outras lições já escritas nos cadernos dos alunos, que preparava no dia anterior, na parte da tarde, hora da minha folga. A dedicação era tanta que os resultados apareciam no fim do ano.

     À noite, o dono da casa acendia os compridos lampiões de querosene, iluminando a grande roda de conversa que se formava ao redor da mesa, onde se armava uma jogatina de bingo e baralho até meia noite. Os mais dorminhocos recolhiam-se às nove horas. Outros como eu e alguns turistas, ficávamos jogando baralho e também jogando conversa fora. Uma delícia! Morei um ano na casa do Maciel e da Dona Luzia. Lembro-me do nascimento da filha menor deles, a Ivete Maciel.

     

sábado, 25 de setembro de 2021

REMEXENDO NO BALAIO

 

Caiçara - Arte da Maria Eugênia, minha filha


Remexendo ali no balaio do canto, encontrei uma folha mais amarelada que as demais. Comecei a ler. Tenho quase certeza de que o texto não é meu, mas gostei e vou postar na melhor das boas intenções. Afinal, é coisa de caiçara!

 

O verdadeiro caiçara dos tempos de nossos avós

    Nas primeiras horas de um novo dia, logo de madrugadinha, lá estava ele de pé. Acendia a lamparina, preparava o café que tomava acompanhado com peixe assado e farinha de mandioca. Abastecia a barriga e arrumava as coisas para pescar.

Preparava o balaio e as linhas de pesca, que naquele tempo era de cordoné. Se deslocava até o rancho na praia, lugar onde as canoas dos pescadores ficavam guardadas. Ali chegando, tirava a sua canoa do meio das outras, colocando-a sobre os rolos de madeira e empurrava-a até ao mar.


Não podia esquecer o puçá. Arrumava os apetrechos na canoa e lançava-a na água até que flutuasse, pulava dentro e ficava em pé para remar até ao camaroeiro (lugar onde os camarões se agrupam). Ali ele jogava o puçá, amarrava o cabo de sustentação no banco da canoa e arrastava por um certo tempo. Quando tinha capturado camarões em quantidade suficiente, o pescador remava mar adentro pelo tempo de umas quatro horas e ali começava a pescaria.


A pequena embarcação era suficiente para dois pescadores, que remavam de um lugar para outro até encontrar o peixe. Lá pelo meio-dia, horas dadas pela altura do sol, estavam eles retornando à praia.


Seus familiares estavam esperando e não ficavam decepcionados. O pescador caiçara sempre voltava com a canoa cheia de peixes. Corvina, bagre, cação, xaréu... enfim, uma infinidade de peixes. Era tempo de fartura, ninguém passava necessidade de alimentos.


Existia o essencial para a sobrevivência, todos tinham roça de mandioca e faziam farinha, colhiam feijão, plantavam café e tinham bananal nas encostas dos morros. Viviam da terra e do mar que dava o que era preciso para fazer o azul-marinho, a alimentação preferida dos caiçaras.


Após uma refeição dessas vinha uma sonolência danada. Mal dava tempo de buscar a esteira que estava guardada em pé atrás da porta, jogar na sombra de uma árvore do quintal e dormir a sesta.


Eita vida boa! Este era o viver do caiçara nos bons tempos.

 


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

MOMENTO LITERÁRIO - PRÁTICAS ANTIRRACISTAS

 

Canoa em Ilhabela - Arquivo Rê

     Tudo começou com um convite para eu participar de uma reunião. Na pauta, as práticas antirracistas. Em seguida, constatando que possuímos na escola uma razoável bibliografia dentro do tema negritude, fiz a proposta de estudo e reflexão no assunto.  O livro-base  é  Práticas Antirracistas, de Djamila Ribeiro.  O pessoal topou e assim nos organizamos para este momento e outros que virão. O sucesso inicial está garantido com a condução do pessoal da área de Linguagens e códigos, com Milene e Núbia nos motivando em duas partes: 1- Informe-se sobre o racismo; 2- Enxergue a negritude.

     Um detalhe: para abrir o nosso encontro, ainda que por acaso, se encontrava no espaço da Sala de Leitura a companheira do Júnior, a Laslane. Ela trabalha como cozinheira na costa sul de São Sebastião. Por ser negra e se orgulhar disso, sua coragem e seus relatos abriram, com chave de ouro, o nosso Momento.

     O que justifica assumirmos este desafio parte da História: por volta de 500 anos atrás, logo após a chegada dos portugueses, os negros foram trazidos da África como escravos. Depois de tudo, após tanto tempo, ainda prevalece o ponto de vista dos vencedores, dos opressores. Quem conhece bem a verdade de Palmares, da revolta dos Malês, da Chibata etc.? É aos poucos que a ciência do outro lado, daquilo que foi vivido pelos oprimidos, está aparecendo. É revelado conforme a negritude aflora e faz valer o seu protagonismo.  

Na introdução, apontei algumas verdades surgidas na leitura do livro, das Práticas Antirracistas.

Verdade 1:  o povo negro foi escravizado e aqui permaneceu nesta condição por mais de 350 anos.

Verdade 2:  mesmo quem busca ativamente a consciência racial já compactuou com violência contra grupos oprimidos.

Verdade 3: o racismo exige um debate estrutural; é um sistema de opressão que nega direitos.

Verdade 4: ainda prevalece a mentalidade “casa grande e senzala” no país.

Verdade 5: querem que acreditemos que a escravidão no Brasil foi branda, que somos uma democracia racial etc.

Verdade 6: o silêncio de cada um de nós nos torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo.

Verdade 7: se pessoas estudadas, inclusive professores e professoras ainda encontram dificuldades para avançar em toda a verdade acerca disso tudo relacionado ao movimento da negritude, imagine aos demais homens e mulheres deste país!

     Finalmente, para passar a palavra e ver brilhar a estrela das colegas Núbia e Milene, li a seguinte mensagem proferida por Paulo Paim, senador negro pelo Rio Grande do Sul, em 12/07/2021: “Nossa solidariedade ao povo haitiano, que há décadas  sofre com a crise econômica e políticas, golpes de Estado, pobreza, miséria, fome e desigualdade social ao extremo. O Haiti não recebeu sequer uma dose de vacina contra a covid-19. É muita falta de humanidade. Lamentável”. Quais motivos? Porque seus habitantes são negros, descendentes de escravos... Porque a nação haitiana foi espoliada em demasia... Porque o Haiti é um lugar extremamente pobre... Porque está fadado ao desaparecimento...etc. Infelizmente, o ponto de partida dessas pérfidas atitudes é a cor da pele. O que chamamos de racismo é apenas uma das formas discriminatórias inventadas por homens para explorar outros homens. A lógica desumana norteadora é esta: "Eu diminuo o outro para poder me aproveitar dele, viver às custas do trabalho dele".

Em tempo: o nosso amigo Alexandre, especialista em mídias, gravou o encontro, está na plataforma do You Tube. 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

MAR GROSSO PARA GENTE GROSSA

 

Ilha da Cocanha - Arquivo JRS


Olha o mar grosso, gente!


Arrebentações rugem;

Areia remonta areia;

Jundu em longas lambidas; 

Pedras surradas por ondas.

Árvores caem;

Gente se detém por  perto:

Um espetáculo à parte.


Tempo assim,

De mar virado;

Mar bravo,

Que impressiona a todos.


Chega mais gente...

"Deixa eu ver. Sai daí"

O quieto é empurrado,

O pacífico é destratado.

O mar viu tudo.

"Ensopa aquele grosseiro".


Olha o mar grosso, gente!


Olha essa gente grossa, mar!


Há quem aguente?

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A PRAIA DESAPARECIDA

Cadê a praia do Saco da Ribeira?  - Imagem: curiosidadesdeubatuba.com.br 

Praia do Saco da Ribeira, por volta de 1950 - Arquivo Ubatuba 






Saco da Ribeira agora - Arquivo JRS


Saco da Ribeira agora - Arquivo JRS



      "Que maravilha o progresso!", diz o visitante  estupefato no alto da estrada, olhando a extensão toda repleta de embarcações. "Ali em baixo é o Saco da Ribeira; lá longe é a Ilha Anchieta". Não tem como não se admirar diante da paisagem. Porém, tem de saber que o quadro exige um preço, um custo elevado à natureza do entorno, aos pescadores, ao mar e praias etc. Você pode até embarcar numa daquelas lanchas e sair mar afora curtindo a aventura, mas precisa saber que esse progresso chega desrespeitando tudo, poluindo o mar, modificando costeiras para atracadouros particulares e cobrindo praias. Para agravar, empresários imobiliários mobilizam seus recursos e influências políticas para irem além daquilo que já era demais. 


     A praia do Saco da Ribeira, maior abrigo de embarcações em Ubatuba, desperta em mim um mal-estar. Aquele recanto sossegado existente até começo da década de 1980, onde jogávamos bola, juntávamos siris e puxávamos picarés quando crianças, não existe mais. Apenas um cantinho de nada perdura não sei por quanto tempo ainda. Onde ficavam os jiraus de redes, os varais de secagem de peixes e os ranchos de canoas, agora são atracadouros, edifícios prontos ou em construção. Pode construir sobre a areia da praia? Vai continuar até quando?


    No começo da década de 1980,  a sociedade civil organizada conseguiu se mobilizar e barrar um empreendimento franco-árabe que pretendia aterrar parte desse mar, fazer canais para as embarcações caríssimas e edificar condomínios para ricaços. Depois, graças ao poder econômico, quando menos esperávamos, veio aquilo que ali se mostra na atualidade. Ano após ano, compassadamente, reparo em seus tentáculos aumentando. Sinto que não vai demorar nada para os pescadores serem escorraçados de vez do remanso do Saco da Ribeira. A propósito, já escutei mais de uma pessoa afirmar o seguinte: "Essa gente da pescaria já está atrapalhando". Portanto, estejamos preparados para, logo logo, vir a ordem de refazer tudo aquilo para um fim "mais nobre".  Imagino o quanto sofreriam, diante desse quadro degradante, os saudosos João Glorioso, João Guimarães, Jango Vieira, Peralta e tantos outros pescadores caiçaras que faziam daquela praia o seu campo de trabalho em outros tempos.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

HÁ MUITO AINDA A REVELAR

 

Arte em casa - Arquivo JRS

      Fazia parte do cardápio, me disse o Zé Roberto, o consumo do cará roxo em meados do ano. "É lógico que sim, Zé! E eu não sei?!". Agora, uma coisa que eu não sabia: "Havia outro tipo de cará, roxo, mas inteirinho roxo, como aquela batata doce chamada por nós de coração magoado".  Pois é! Acredita que eu não conheci esse cará totalmente roxo? Então é raridade mesmo! Desde então fiquei querendo andar pelo mato, outrora roças dos caiçaras, para vasculhar tralhas multifacetadas, característica do cará. Me lembrei de umas montoeira de tralhas assim entre as praias da Ponta Aguda e Lagoa, não longe de onde era a casa do João Quintino. Até cheguei a comentar esse detalhe com o Antunes. Ele se alvoroçou. Agora é cavar a oportunidade e sair em busca dessa novidade.

      Outra lembrança desse parente da Caçandoca foi o sabão de cinza. Juntava gordura à cinza com algumas plantas. Servia bem para tudo. Fiz questão de dizer que a vovó Martinha punha a  criançada para recolher nogas, um dos componentes no sabão dela. Essa semente oleosa era também usada para iluminar casas ao anoitecer.  Bastava ajeitar um lugar para acomodar o fruto da nogueira e tacar fogo. Era um combustível de graça.

      Os recursos eram parcos; as coisas melhoraram quando começou a chegar os turistas. No início, essa gente de fora passava um sufoco devido os mosquitos, sobretudo os borrachudos, mas logo  começaram a usar veneno para matar os insetos. Eu, quando criança, me recordo da água do rio, onde mamãe se servia, ficar esbranquiçada, com peixes, enguias e outros habitantes aquáticos passando mortos ou ainda se debatendo nos últimos suspiros. Era veneno bravo, que mais tarde resultou até em mortes de trabalhadores que o manuseavam. O meu amigo Basílio Antunes foi vítima de tal veneno. Quantos outros tiveram igual destino? E outros bichos? E aqueles passarinhos que eu apenas ouvi falar?

       Quantas coisas mais precisam ser registradas, estudadas nesse universo caiçara?

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A IMPORTÂNCIA DO FÓRUM DE COMUNIDADES TRADICIONAIS

 


Cacique Altino e esposa acolhem visitantes - Arquivo JRS

    Muitos se perguntam, inclusive o amigo Jorge: diante de tantas opressões aos povos originários e às comunidades tradicionais, o que nós podemos fazer? Logo em seguida, como se tivesse captando a preocupação, o estimado Santiago me enviou o seguinte documento a respeito de política pública em Ubatuba, sinal de que há movimentação da sociedade organizada, dos grupos que dão identidade ao nosso território litorâneo e fundamentam nossas raízes caiçaras.


No dia 16 de setembro, às 15 horas, foi realizada no Teatro Municipal de Ubatuba, uma roda de conversa entre a prefeitura de Ubatuba e representantes de Povos e Comunidades Tradicionais Indígenas, Caiçaras e Quilombolas da cidade. O Fórum de Comunidades Tradicionais - FCT - esteve presente no debate fortalecendo as pautas das Comunidades, apoiando suas manifestações e contextualizando a luta, a história e a realidade dos povos e Comunidades do território.

Diversas secretarias municipais compareceram formando um "Grupo Intersetorial de Governo" direcionado para trabalhar com os Povos e Comunidades Tradicionais do município. Estiveram na reunião a Comtur, Fundart, as  secretarias de Esportes, de Educação,  de Pesca e Agricultura, de Turismo e de Assistência Social. Das Comunidades compareceram a Aldeia Renascer, Aldeia Boa vista, Quilombo da Fazenda, Quilombo do Camburi, Quilombo da Caçandoca, Comunidade Caiçara da Picinguaba. Serão incorporadas mais comunidades, as que não puderam estar presentes, ao grupo de trabalho que foi criado a partir desse evento. O encontro foi promissor e além de destacar as demandas das Comunidades e seus direitos, apontou caminhos para a realização de um trabalho organizado e coordenado coletivamente com as Comunidades para a construção e efetivação de políticas públicas consistentes para os Povos e  Comunidades Tradicionais de Ubatuba. Entre as ações encaminhadas destaca-se as propostas de realização de uma Audiência Pública e de uma Conferência Municipal com as Comunidades e a criação de um Conselho Municipal de Povos e Comunidades Tradicionais. 

O FCT segue na luta junto aos Povos e Comunidades Tradicionais para que seus direitos sejam respeitados e para que sejam construídas políticas públicas que garantam o protagonismo delas em seus territórios.

domingo, 19 de setembro de 2021

HISTÓRIA DO VENTO FORTE

     

Um mundo edificado pelas palavras (Arquivo JRS)


Ipê que se foi (Arquivo JRS)

    

    Bem cedo, na Rua da Cascata, vi a velha grumixameira, plantada pelo finado Dito Nunes, sendo cortada. Ainda bem que fiz mudas dela! Agora a calçada feia se mostra, mas ainda comeremos grumixamas em outros lugares. Eu garanto! Foi assim com aquele ipê que tanta gente fotografou no centro da cidade, na Rua Maranhão. É, minha gente, cortar árvores é fácil. Difícil é plantá-las. Mais difícil ainda é entender a importância delas em nossas vidas e defendê-las! Que tal buscar e espalhar a sabedoria?


     O mano Mingo, no poema História do vento forte, nos faz pensar nos caminhos das palavras que dão sentido às nossas vidas. Imagine os primitivos apenas fazendo barulho, depois escolhendo os sons e por fim semeando palavras na humanidade que nos fazem crescer em graça e sabedoria. Esta é uma possibilidade. A outra é de se iludir pelas palavras ou usá-las em motivos torpes, que degeneram espaços e comunidades: "Corta essa árvore", "Tira o emprego desse sujeito que vive criticando", "Fecha a escola porque pobre não precisa estudar", "Libera arma para todo mundo", "Paulo Freire é subversivo", "Façamos de tudo para o Brasil continuar nessa direção" etc.



A ventania de ontem me trouxe a história 

de quem teve a sorte de nascer

entre mar e mata de restinga,

onde há ranchos de canoas,

casinhas de caiçaras,

muita criação nos quintais

e mais as crianças de pés no chão,

que as mães têm que chamar pelos nomes:

Ana Maria! Eugênia! João!

para lembrar a hora de almoçar

e de tomar banho para ir à escola

para saber um pouco a mais todo dia

e crescer em graça e sabedoria.

É o vento forte que traduz melhor

o sentido das palavras que vêm

de muito, muito longe.


Em tempo: hoje comemoramos centenário do educador Paulo Freire. Viva!

sábado, 18 de setembro de 2021

NASCE UMA ESCOLA

 

Casa de Thomás Galhardo  (Arquivo Ubatuba)
 


    Tomas Galhardo, cuja residência faz parte do patrimônio municipal de Ubatuba, é considerado o autor da primeira cartilha de alfabetização brasileira. Ele nasceu na segunda metade do século XIX e faleceu no começo do XX. Em Ubatuba, nenhuma escola leva o seu nome. Apenas na capital paulista, no conjunto residencial Prestes Maia, achei uma escola pública municipal, de educação infantil, lhe homenageando. Mas não é disso que eu quero escrever hoje.  A minha intenção é demonstrar, via texto do Félix Guisard, uma realização de gente afeita ao saber.

     Era a Prainha [do Padre ou do Matarazzo], na segunda metade do século XIX, local muito habitado, boa casaria, sobrados confortáveis, grandes armazéns, trapiches. O movimento era intenso, devido às chegadas e partidas de numerosas embarcações, procedentes de bordo ou indo de terra.

    Um grupo de moços lá moradores, reunidos num pequeno quarto, em local onde hoje está situado o Empório do Comércio, à rua do mesmo nome, decidiu transformá-lo  em um pequeno gabinete de leitura. Assim é que saboreavam os poucos jornais da época, sempre chegados com grande atraso. Aconteceu que o Dr. Diogo Esteves, que lá se encontrava, opinou, logo de início, pela ampliação, demonstrando a necessidade de ser criado um verdadeiro gabinete de leitura, digno da cidade de Ubatuba. Foi assim que ele planejou e fundou o Ateneu Ubatubense, sob o patrocínio de Pedro II. 

  No ano de 1886, era publicado no Rio de Janeiro o CATÁLOGO DA BIBLIOTECA DO ATHENEU UBATUBENSE, devidamente organizado por uma comissão de sócios efetivos e concluído pelo bibliotecário Miguel Pires Nobre. Observação: este era o proprietário do edifício e da propriedade onde funciona até os dias atuais a escola estadual Dr. Esteves da Silva, próxima do   Rio Grande de Ubatuba, onde fica o Mercado de Peixes.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

TÁ RUIM E PODE PIORAR

     

Pés na areia - Arquivo JRS

       Não escutei e não gostei. Bem assim começo este após ouvir dizer que o Ministro da Saúde quer tirar a obrigatoriedade do uso  de máscaras. Até parece que não se vive mais a situação de pandemia, que não passamos por este inferno etc. Precisa dizer que o vírus do momento continua matando mais de mil brasileiros por dia? E a outra, pior ainda, sobretudo para quem está em contato direto com a mocidade: falar em suspender a vacinação de adolescentes. Absurdo e criminoso vindo uma autoridade assim, que responde pelas condições de saúde do povo brasileiro!

       Acordei preocupado com isso. Logo me encontrei com um colega e notei que ele também estava pasmo mediante o discurso, incabível a um médico ocupando tal cargo importante. Mas...agora conto o pior, que me envergonha enquanto caiçara, por conta dessa podridão que espuma aflorando dos esgotos e que está resultando numa onda negacionista da ciência.  "Fulana foi dispensada porque não quis se vacinar. Na verdade, está no aviso prévio. A outra, amiga dela, que compartilha de tamanho absurdo, também será dispensada. Não podemos trabalhar, sobretudo em espaço fechado, com gente assim, que representa riscos à nossa saúde. Imagine só, com salário alcançando três mil reais, pode isso? Onde vai essa  gente achar emprego agora? É muita alienação, meu Deus!". É mesmo! Quanto atraso! Na semana anterior, por intermédio de um adolescente, escutei isto: "No meu bairro tem um senhor que diz que não vai se vacinar porque ela deixa a pessoa imantada". Como assim? "Ele viu na internet a imagem de um homem, com uma chave de fenda colada de ponta, no braço, dizendo que aquele fenômeno foi verificado após a vacinação. Daí ele passou a compartilhar e discutir com mais gente, tentando convencer as pessoas que vacina é coisa ruim. Agora tem mais gente que está com essa mesma ideia, caíram na dele". 

     Parece muito? Pois saiba que tais absurdos é só uma ponta de anzol em Ubatuba. Imagine o tamanho dele na real. E olha que o nosso município é uma ínfima parte deste Brasil!

     Reflita em torno do quanto pode ser perniciosa essa tecnologia na mão de quem é ignorante ou está propenso à maldade. Essa parcela, parte dessa espuma podre, neste momento pode estar divulgando a fala do Ministro, seguindo decisão do Presidente que, dentre outros absurdos criminosos, não usa máscara e faz propaganda de remédio sem eficácia. 

   
      Minha gente, aonde vamos parar? Por enquanto, ainda não ouvi falar de parentes e de outros caiçaras arrependidos. Quem aguentará o fedor no lagamar assim que a maré abaixar? Grande desafio! Depende de nós para as coisas não piorarem.


quinta-feira, 16 de setembro de 2021

VOSSA COMIDA ESTÁ CHEGANDO!

 

Tio Dito, mana Ana e eu (Arquivo JRS)

      Tempo chuvoso. Da cozinha, minha esposa deixa escapar um aroma avisando que a comida está quase pronta. Penso em meus tios e naqueles que já se foram, relembro suas rotinas lá atrás, quando ficavam em casa fazendo artes por ali, pois não iam pescar e nem podiam fazer algum serviço na roça. Somente quem se encontrava na construção civil, com obras cobertas e acabamentos por fazer, se arriscava em deslocamentos maiores.

      Nos balaios e em gamelas havia peixes a garantirem períodos assim. Farinha de mandioca, essa cultura herdada dos indígenas, também não faltava nunca. Por volta das casas, nos cisqueiros, taiaiaoba (taioba), cará, batata doce, pequenos eitos de feijão, mandioca de cozinhar e árvores frutíferas. Não longe dali, no rio de serventia, piabas abundavam. Por volta de setembro/outubro aconteciam as revoadas de içás. Quem nunca comeu uma farofada delas?

       Voltemos à mandioca. Na carta de Anchieta, datada de 1565, nada consta dela. Decerto ele nem reparou, preferiu jejuar para não se contagiar com as comidas pagãs. Mas que viu viu! Já Hans Staden, prisioneiro uns dez ou doze anos antes, escreveu:

       "Partimos na manhã seguinte, vogamos o dia inteiro. Às ave-marias chegamos à taba, depois de três dias de viagem. Devia distar da Bertioga umas trinta milhas, chamava-se Ubatuba e compunha-se de sete casas. Entramos por uma praia perto da qual estavam as mulheres lidando numa plantação de mandioca. Ao defrontá-las, fui obrigado a gritar na língua deles:  -  Vossa comida está chegando!".

    Imagine o cagaço do alemão! Huuuummm...carne com mandioca: que fim para o coitado! Mas, continua o texto: 

      "As mulheres me conduziram, umas adiante, outras atrás, entoando os cantos que usam quando vão devorar algum prisioneiro. E assim me levaram até à caiçara, isto é, à estacada de grossas achas de madeira que lhes cerca a taba. Quando entrei, acudiram outras mulheres ao meu encontro, deram-me bofetadas e arrancaram-me punhados da barba, exclamando: - Che anama pipike aê!, o que quer dizer: Vingo-me em ti do que os teus fizeram conosco!".

      Pois é! E pensar que, agora, os descendentes diretos dessas etnias, cuja herança cultural tanto ainda nos acodem, estão correndo o risco de verem aprovada a lei do Marco Temporal, cujo mérito é tirar-lhes ainda mais das suas posses, das sua terras, para beneficiar os fazendeiros, o agronegócio, principais financiadores do presidente genocida que aí está. Hoje, em vez de vingança, nossos parentes do Brasil inteiro querem justiça! O que fazemos nós?

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

MENSAGENS NAS BADALADAS

Três sinos na torre da Igreja Matriz - Arquivo JRS

        Quando criança, tanto no Sapê, quanto na Fortaleza e no Perequê-mirim, uma forma de comunicação era o sino que se encontrava na capela, num ponto alto do frontão, numa modesta torre. Suas badaladas eram chamadas para as orações, expressões de festividades ou outros eventos significativos às comunidades. O saudoso tio Durval e a estimada tia Belinha diziam que, quando acontecia de um médico estar se aproximando da comunidade, o sino badalava em retinido alongado. Então, quem sofresse alguma doença ou não estivesse bem naquele dia, sabia que o doutor estaria na capela. Quando perguntei como ele alcançava aquela distância, sabendo que a praia do Puruba dista 25 quilômetros do centro da cidade, eles explicaram: "Vinha a pé como todo mundo. Era raro ter barcos naquele tempo. Gente assim mereceria estátua na nossa cidade, nunca poderia cair no esquecimento. Veja agora esse outro médico, o doutor Wilson, o japonês. Quanto ele nos serve? É impressionante a dedicação dele, sobretudo no atendimento das mulheres deste nosso lugar! Só que hoje tem estrada, ele vem de carro. Agora não se puxa mais a corda do sino para aviso assim. Só em dia de missa ou de festa a gente escuta as badaladas. Outro médico que deixou saudades em quem é do nosso tempo, dos mais antigos, foi o doutor Miranda. Ele bebia demais, mas nunca deixava de consultar quem precisasse dele. Depois de receitar algum remédio, ele perguntava se o paciente tinha dinheiro. Caso não tivesse, ele tirava do próprio bolso e entregava para a pessoa. Dizia que não seria por falta de dinheiro que a alguém ficaria sem se curar. É essa gente generosa, que se compadecia dos mais pobres, que nunca haverá de sair da nossa memória e das nossas rezas". 

      Anos atrás, estando na torre da igreja matriz, no centro da cidade de Ubatuba, dando uma modesta contribuição ao documentário do amigo Leandro, me passou pela memória os muitos momentos em que, estivesse onde estivesse, a gente silenciava para ouvir as badaladas e entender sua mensagem. 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

A CRUZ PERMANENTE DOS POVOS INDÍGENAS

 

Charge na internet





Irá chegar um novo dia - Arquivo JRS




       Desde 14 de setembro de 1965, por promulgação da lei nº 59 pelo prefeito Francisco Matarazzo Sobrinho, este dia é considerado feriado religioso no município de Ubatuba: o dia da Exaltação  da Santa Cruz. Eu acrescentaria: do Salvador de Ubatuba. Afinal, o nome primeiro apresentado ao local, pelos portugueses, foi Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba. Portanto, neste dia é feriado municipal, quando, segundo a citada lei, só funcionarão "as atividades privadas e administrativas absolutamente indispensáveis". 

     A festa da Santa Cruz remonta a antiguidade romana, quando se atribuiu à Helena, mãe do imperador Constantino no século IV, a recuperação daquela que teria sido a cruz de Cristo. Antes da reforma do calendário litúrgico após o Concílio Vaticano II, na década de 1960, tal festividade se dava no dia 3 de maio. Contam os antigos que, na praia do Camburi, na divisa com o Estado do Rio de Janeiro, acontecia a festa mais concorrida do município a cada mês de maio. A justificativa da mudança se deve ao fato de ter sido no dia 14 de setembro do ano 335 a consagração da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Mas... E a data comemorativa da "Paz de Iperoig"? Como entrou nesta história?


      Segundo a História, os povos originários da terra, a Nação Tupinambá, após sofrerem as perseguições e serem escravizados nas fazendas da Baixada Santista, se constituíram em uma resistência organizada, tendo apoio de outras  nações indígenas. Formaram a Confederação Tamuya, a primeira resistência original organizada em terras do continente americano. Depois de muitos anos em guerra com os portugueses, enquanto o padre Anchieta ficou como garantia em Ubatuba, na aldeia de Coaquira, houve reunião em São Vicente com representantes das partes beligerantes.  Diz os documentos que, em 14 de setembro de 1563, ocorreu a decisão final: os portugueses não perseguiriam mais os Tupinambá e estes não atacariam as fazendas dos adversários que plantavam cana-de-açúcar. É o que passou a ser a "Paz de Iperoig". Só que já sabemos que o trato não foi cumprido e houve a dizimação dos habitantes originários deste chão, da Ubatuba atual. 


     As datas estão se chocando desde quando ocorreu a reforma do calendário litúrgico na década de 1960. Agora, um desafio: Como fazer uma reflexão que una os espíritos cristãos aos espíritos da resistência indígena, cuja memória é de traição e etnocídio? Afinal não foi TRAIÇÃO DE IPEROIG?  Como fazer essa porção que se diz cristã, inclusive gente minha, a se posicionar a favor da vida em vez de apoiar uma mentalidade, uma ideologia genocida? Como podemos nos comprometer e lutar diante da CRUZ PERMANENTE AOS POVOS INDÍGENAS, sobretudo mediante ao perigo de aprovação do marco temporal que tramita atualmente em Brasília?

    

Em tempo:   um dilema histórico que apresentei ao amigo Rogério: "Se a vila tinha esse nome original, era porque a fundação se deu no Dia da Santa Cruz, concorda? Ou seja, teria sido em maio. E agora? Comemorar o aniversário da cidade ou a fundação da vila".  

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

PEIXE DE FORA, PERIGO NO RIO

 

Soco-boi na valeta - Arquivo JRS

 

      Meu amigo chegou logo cedo falando o seguinte: “Os bagres africanos estão acabando com os peixes do rio Juqueriquerê. É uma tristeza escutar os pescadores dali, do entorno, lastimando o estrago que parece inevitável”. Mas como e quando começou essa tragédia? “Foi numa forte chuva de tempos atrás. Alguém trouxe bagres africanos para criar e comercializar, mas o tanque estourou e espalhou rio abaixo os peixes. Agora eles estão dominando tudo, comendo os outros peixes e demais seres que encontram por ali. Não sei onde vai parar a calamidade”.

      O que foi narrado configura desastre ambiental no rio Juqueriquerê, em Caraguatatuba. Geralmente são os seres humanos os principais causadores dessa modalidade sinistra. Muitos desastres já aconteceram! Um exemplo mais ou menos recente foi a chegada do caramujo africano, cuja intenção, também visando lucro fácil, era substituir  o escargot francês, apreciado na culinária por tal povo. Só que saiu  do controle, escapou dos criatórios e proliferou na natureza brasileira. No nosso litoral, eles rapidamente se espalharam pelos matos, muros, jardins etc. Assim que afirmaram ser eles transmissores de doenças, ocorreram cruzadas no intuito de caçá-los. Diversas escola e associações de bairros se empenharam nisso. Mas o que parece estar resolvendo mesmo foi o surgimento de alguns predadores desses seres exóticos, de fora. Quem primeiro me deu a boa notícia foi o primo Antunes: “Você acredita que gambá, lagarto e socó estão dando um jeito nos caramujos?”. Achei exagerado, mas confirmei pouco tempo depois, perto do rio, na casa do tio Dito, quando avistei um socó engolindo os bichos. Pode reparar que diminuiu  muito na região os tais caramujos. Agora me pergunto: “Quando surgirá um predador aos bagres?”

domingo, 12 de setembro de 2021

BOI NA FLOR

Flores no quintal   (Arquivo JRS)


    "O boizinho do Veiga, por nome de Canarinho, se esparramou no caminho do Perequê-açu, bem ali por perto da casa da Dita, onde tem aquele buraco no morro. Foi assim. Faz tempo isso. O pessoal vinha vindo pro carnaval, naquela maior animação, cantando, tocando e dançando. De repente, por ali por perto tinha umas vacas e uns bois pastando. Nem sei quem era o dono dos bichos. Só sei que aquele furdunço causou a correria das vacas mato adentro, na direção do mangue, mas o touro não se amedrontou. Ele já era bravo, ficou mais enfurecido ainda, partiu para cima do grupo. Enfrentou aquela gentalhada que havia botado as vacas em correria. Todo mundo fugiu, mas o Canarinho ficou ali, levando cabeçadas e chifradas a torto e direito. Por fim, depois de muitas pancadas, acabou sendo jogado em cima do canteiro de flores da finada Dita, estragando todas as suas plantas. Ela chorava de raiva. E agora? Fazer o quê? O jeito foi o Veiga retornar ao sertão do Taquaral sem festejar como pretendia. Chegando em casa, assim me contou a Maria Chana, ele fez outro boi, com o mesmo nome. E no dia seguinte, logo depois do almoço, novamente o grupo de dança se dirigiu à cidade. Só que dessa vez cada um deles levava um bambu comprido caso o gado estivesse no mesmo lugar. Ah! E para compensar a Dita, alguém da turma lhe deu de presente uma galinha com cinco ou seis pintinhos. Dizem que ela ficou contente. Ainda hoje, quando passo diante do 'Buraco da Dita', dou risada sozinho lembrando do coitado do boizinho".

     Quem me contou essa história do Boi Canarinho, do Mestre Veiga, do Taquaral, foi o saudoso Mané Hilário. Ah, faz tempo!

sábado, 11 de setembro de 2021

ESTEVES DA SILVA

 

Onde se estudava (Arquivo Ubatuba Antiga)
 

Esteves da Silva, por Paulo F.


         João Diogo Esteves da Silva nasceu em 09 de fevereiro de 1848, no Rio de Janeiro, cujos pais eram João Diogo Esteves da Silva Júnior e Josefina Augusta Cordeiro da Silva. Eles foram os alfabetizadores do menino. Em seguida foi cursar no Colégio Pedro II, então Ginásio Nacional, onde recebeu o grau de bacharel em ciências e letras no dia 29 de novembro de 1868. Matriculou-se em seguida na Faculdade de Medicina onde, após defensa de tese (Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico), se graduou como doutor em 24 de maio de 1879. Doutor Esteves da Silva: assim seria chamado daí em diante.   


       Esteves da Silva permaneceu no Rio de Janeiro até novembro de 1880, época em que se mudou para Ubatuba, onde passou a residir e a exercer sua clínica. Nessa cidade, em 18 de fevereiro de 1882, contraiu núpcias com Maria Benedita Gonçalves Pereira, filha dos finados coronel Francisco Gonçalves Pereira e Dona Maria Fortes Pereira.


       Em 1881, fundou a escola noturna do Ateneu Ubatubense, sendo, nessa ocasião, presidente dessa sociedade. No ano de 1886, fundou a cadeira de Instrução Moral e Cívica, escrevendo então apostilas que se prestavam ao ensino daquela matéria e que, mais tarde, em 1897, reviu e ampliou, publicando-as em volume dedicado aos alunos do Ateneu e do Grupo Escolar "Dr. Esteves da Silva". Três anos depois (1890), nomeou-o o Governo Provisório professor e diretor de uma escola primária do 2º grau, no Rio de Janeiro. Em 1891, enfeixou em volumes os seus discursos, ou melhor, as suas conferências. 


      Foi, por várias vezes, eleito vereador à Câmara Municipal de Ubatuba, antes de ser eleito, no ano de 1898, deputado estadual. Entre muitos outros projetos, propôs a criação de núcleos coloniais no litoral norte e construção de edifícios escolares. Foi redator-chefe e fundador do Eco Ubatubense, jornal da localidade.


    Esteves da Silva faleceu em São Paulo, como deputado estadual, em 21 de novembro de 1901, tendo sido sepultado no cemitério da Consolação. Não deixou descendentes. Por fim, termina a biografia dele feita poucos anos depois de sua morte, escrita por Dr. Augusto César de Miranda Azevedo, no volume VI da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo: "Vive ainda na cidade de Ubatuba, residindo no sobrado colonial do Largo da Matriz, Dona Maria Benedita Gonçalves da Silva, viúva do ilustre médico". 


     Infelizmente, esse patrimônio material não existe há muito tempo. Aquele centro histórico, capaz de dizer muito dos cidadãos e cidadãs de outro tempo, foi derrubado por força do progresso. Os seus poucos resquícios, quando desaparecerão de vez? 


   Ousai conhecer nosso (s)  museu (s)  e recuperar o que ainda for possível da nossa história. Pesquise e registre os sinais e as pessoas que ainda estão entre nós. Um pouco daqui mais um pouco dali resultam num tanto maior. Com certeza!

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

AOS CAMBOTES

       

   

Praia e mar em cerração - Arquivo JRS

      É privilégio poder começar o dia apreciando o mar, identificar as gaivotas e embarcações ao longe, notar um cardume de botos em cambalhotas, "aos cambotes" como dizia papai e os mais antigos caiçaras. Pensei na hora: "Estão perseguindo tainhas. Mas... a esta altura do ano?". Que mar generoso! Ele nos inspira a tolerar mais o mundo e os malfeitos que aparecem por obras nossas, de humanos, mas também nos cobra por novas atitudes, capazes de alimentar utopias. Lá longe, onde o mar se funde como céu, repito as palavras de Eduardo Galeano: A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

     Dizem que, por causa do mar, parte de nós enquanto moradores do litoral, estamos menos sujeitos a tantas doenças nervosas. Concordo! Afinal, quem pode achar normal toda uma vida num ambiente infernal das grandes cidades, dos seus barulhos e poluição atmosférica? Quem  é normal achando normal paisagens degradantes e vidas degradadas?

     É por isso que, a cada oportunidade, as pessoas fogem dos centros urbanos em busca de outros ares. Vão para o campo, na convivência rural, ou procuram o litoral, o ambiente das praias.  Depois... vivem a angústia... de voltarem ao cotidiano. Imagino a situação como a imagem de uma nuvem pesada pairando sobre essa gente. Entretanto, muitos dentre essa multidão dirão sem pestanejar que caiçara é preguiçoso, estraga tudo, não valoriza o que tem etc. Isto mesmo! Esses moradores, esses nativos que preservaram o ambiente atraente à multidões, são desmerecidos por muitos. Mas saiba de uma coisa: se os habitantes do litoral cultivassem a mesma sanha dos que vivem nos centros urbanos industrializados, essa  natureza  exuberante que se compõem com o mar já não existiria mais. Portanto, há uma contradição quando se fala mal dos nativos, mas se vive a cobiçar o ambiente deles. É esse espírito perante a vida que nos garante essas maravilhas da natureza próxima do mar. Ou seja, um espírito diverso desse é uma mentalidade tão fraca que nem é capaz de enxergar a própria incoerência. Como vai se acabar? Um ditado nosso responde: "Vai morrer mordendo o próprio rabo".

     Um aviso ao visitante: o mar que você vê pode não ser o mar que a nossa gente enxerga. O seu deslumbramento pode estar muito aquém do nosso respeito e integração com ele. Portanto, na próxima oportunidade diante do mar, reflita sobre a cultura caiçara que oferece a todos esse paraíso. E se recomponha em seus conceitos para não alimentar preconceitos que se virarão contra si mesmo, capaz de deixá-lo  eternamente aos cambotes.