quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

BASTA UM BILU-BILU

Ponta da Fortaleza (Arquivo JRS)

Eu e o Oliveira (Arquivo JRS)


               Olho o mar, mas olho com mais interesse as matas, as costeiras. Busco avistar as modificações e confirmar aquilo que permanece nas minhas lembranças. “Lá está o Saco do Zacarias. É onde morava o tio Zacarias da Ponta antes de se mudar para a praia das Sete Fontes. Mais tarde acabou a sua vida na praia do Perequê-mirim. Tá vendo aquela água que escorre na Pedra Preta? É uma água muito boa, marcou muito a minha infância, quando eu vivia correndo pelas pedras. Que refrescante que era! Ali perto, note bem, tem o Papo do Passarinho. Na verdade é um galho de araçarana, onde está grudado um cupinzeiro muito antigo. Formou uma imagem muito bonita em cima da costeira. Certamente que é habitado ainda por cupins, senão... não existiria mais. E Olha a Ponta!”.

               Tais referências são para poucos que conhecem bem a região da Fortaleza, praia da minha infância. Agora é lugar de muitos turistas. Do pessoal antigo, poucos restaram. Sempre será um prazer encontrar com o Oliveira e ter “um dedo de prosa”:

               Agora estou com 94 anos. Todo dia faço a minha caminhada desde a Praia Brava até aqui. A Fortaleza é a minha vida. Nela eu me criei, me casei... Pesquei muito e sempre tive o meu eito de roça. A minha primeira mulher, a Filomena, era muito trabalhadeira, enfrentava qualquer tarefa. A nossa casinha era ali no jundu, na vizinhança com o vosso tio Maneco Armiro. Perto de nós morava o Mané Bento, irmão da Filomena. Morava sozinho, ele nunca se casou. Era muito intiqueiro. Em tempo de maresia brava, no mês de agosto, a espuma da arrebentação das ondas chegava até o nosso cisqueiro, onde estava o varal de roupas. Depois, conforme você sabe, enviuvei, vendi a casa e me mudei para a Praia Brava. Logo me casei de novo.

               Conhecendo o Oliveira, sabendo da sua disposição em brincadeiras, em gozações, perguntei se continuava namorando ainda.
               É claro, meu filho! O quê? Quer coisa melhor que continuar tendo saúde para manter a brincadeira com quem você gosta?!? Estou com 94 anos, mas ainda faço bonito! Só que não é mais todo dia, né? De vez em quando a mulher faz um bilu-bilu no gigante que dorme em berço esplêndido... Ele acorda... e... olha que dá trabalho o sujeito! É muito bom, né? Graças a Deus tenho muita saúde! Uns tempos atrás estava sentindo umas dores na coluna, fui num médico em Caraguá e ele deu um jeito, me deitou numa cama que estica a gente. Até escutei os estalos, parecia que ia me romper, separar a minha cabeça do restante do corpo. Mas deu resultado, viu?! Agora é só alegria! Ando pra lá e pra cá, me dobro, me estico. Tá tudo bem assim.

               Ah, o Oliveira, um dos companheiros do saudoso vovô Armiro!

domingo, 27 de janeiro de 2019

VOLTANDO À GAMBOA

Logo tem colheita em cima do caminhão (Arquivo JRS)


               “Somos presos por pescar uma piaba, mas o empresário não é preso por acabar com todo o rio”.  (Frase de um cidadão de Brumadinho – 26 de janeiro de 2019).

               Chico Lopes, o meu primo e compadre, continua nas suas andanças desde o mato fechado da serra, na subida para Taubaté, até o canto do Ubatumirim, nas cercanias da Vila da Índia. Ele olha toda a movimentação nas áreas preservadas, vê os descasos e prevê acontecimentos lógicos por parte de ações gananciosas dos homens. Não tem como não levar em consideração os mínimos comentários do Chico. Senso crítico tá ali! Um dia desses, numa prosa na beira da estrada, ele recordou de um conto que vem dos antigos:

               Os mais velhos contavam de um homem que gostava de contradizer sempre, de fazer o contrário daquilo que todos faziam. Numa ocasião, prevendo uma chuva forte que arrasaria todo o seu eito de feijão da vargem, esse homem passou a mão no enxadão e se pôs a abrir uma valeta para desviar a enxurrada que desceria do morro. O tempo já estava escuro com as nuvens pesadas, ele se desesperava na tarefa.  Nisso apareceu um velho que puxou prosa:
               - Boa tarde! Aonde vai com tanta pressa?
               - Nesta direção sigo até a gamboa. Vou abrir a valeta até lá.
               - Poderia ao menos dizer “se Deus quiser”.
               - Se Deus quiser eu chego na gamboa. Se Deus não quiser eu chego também. Só não posso perder todo o feijão que já está florindo.
               Os mais antigos diziam que aquele velho era Deus. Para repensar o seu espírito de contradição, o pobre homem foi castigado: transformado em sapo deveria viver na gamboa por sete anos.
               Depois de sete anos, voltando ao normal, indo para o eito como era de se prever aos pobres que vivem do seu trabalho, o homem novamente encontrou o mesmo velho que havia lhe castigado, mas não o reconheceu. E novamente puxou a prosa:
               - Aonde tá indo, amigo?
               - Vou trabalhar um pouco no mandiocal, ver se consigo salvar algumas raízes para uma farinhada.
               - E por não diz “se Deus quiser”?
               - Se Deus quiser, tudo bem. Mas se não quiser, eu sei muito bem o caminho da gamboa.

               Ontem, me disse o Chico após o crime ambiental de Brumadinho, em Minas Gerais: "Considerando que sempre haverá gente capaz de contradizer as verdades que interessam a poucos, deve de ter muitos sapos enterrados pelo mar de lama da barragem de Brumadinho. Eles sempre cumprem suas penas nas gamboas, mas não se conformam com esse dizer de que é um ser divino que está no comando de tantas injustiças, de tantas omissões, de tantas cobiças que vão matando o homem e o planeta. As denúncias contra a segurança dessas barragens são muitas. Não tem nada disso de se Deus quiser nada vai acontecer de ruim. Ainda vem muita coisa pesada por aí, você vai ver!".

               Grande Chico que não desiste, apesar de sua idas e vindas nas gamboas!

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

NÃO FOI DESSA VEZ


Ilha do Tamanduá (Arquivo JRS)

               De vez em quando eu sou interpelado por alguém a respeito de um município que era para ser. Onde? Entre a Praia Dura, a partir do rio, até a Praia do Capricórnio, onde está a Lagoa Azul. Ou seja, separando Ubatuba de Caraguá ficaria o município da Costa Verde. Espera aí: Costa Verde não é um condomínio, na Praia da Tabatinga? Isso Mesmo! Assim apareceu no jornal Folha de São Paulo, Costa Verde-Tabatinga: um Momento Histórico foi o título da matéria no dia 6 de novembro de 1977:

               Empresários brasileiros, liderados pelo Sr. Francisco Lopes, estiveram nesta Capital [Paris] para apresentar a banqueiros e investidores europeus o importante empreendimento imobiliário e de lazer que um dos maiores grupos financeiros da Europa está concretizando no Litoral Norte do Estado de São Paulo: Costa Verde.
               Costa Verde fica entre Caraguatatuba e Ubatuba e será um dos maiores centros de lazer do mundo. O grupo financeiro europeu que o está realizando já destinou todos os investimentos necessários à sua concretização.
               A finalidade do encontro, realizado no Maxim’s, e que contou com a presença do embaixador Delfim Neto e de cerca de 100 convidados, representando alguns dos mais importantes grupos financeiros da Europa, foi motivar novos investidores, abrindo, assim, para o Brasil, uma nova frente de progresso e se transformando na semente de outros projetos em nosso país.

               E a matéria, além de citar grandes personalidades do mundo financeiro, políticos, grifes famosas etc. informa ainda que “o prefeito de Saint Tropez, Bernard Blust, declarou-a a Cidade Irmã de Costa Verde-Tabatinga. O ato que une assim, fraternalmente, o empreendimento brasileiro a este importante centro turístico foi encarado como uma demonstração de entusiasmo que o Projeto Costa Verde está despertando na Europa e no Brasil.  
                 Mas como, se nem cidade era?
               Onze anos depois, a nova Constituição Brasileira acenou para a possibilidade de criação de novos municípios. Então, acho que motivado pela atitude do prefeito francês, apareceu um movimento Pró-Emancipação do município da Costa Verde. Quem liderava o movimento era o administrador do Condomínio Costa Verde, o engenheiro Agrício Brasilino e sua esposa Valéria, que anos depois foi minha colega de curso no Módulo (faculdade), em Caraguá.  O argumento principal era a falta de infra estrutura, onde os altos impostos cobrados não se revertiam em nenhuma melhoria.

               Eu tive o interesse de acompanhar algumas reuniões, quando José Nélio era prefeito de Ubatuba. Tudo era muito confuso, mas o centro do novo município seria Maranduba. Ainda tenho um folheto de campanha do movimento Pró-Emancipação:

               Divulgue nossas ideias, mostre o futuro melhor que podemos ter. Compareça às reuniões, traga a família, os amigos; traga até mesmo aquele que é contra, para que ouçamos seus argumentos e debatamos. Ajude na confecção de faixas, distribuição de panfletos, realização de eventos, arrecadação de fundos. Participe da Comissão!
               O que mais me chamou a atenção era que “o município contará com verbas do IPTU, ISS, outras taxas e impostos municipais normais, além dos repasses estaduais e federais e, possivelmente, ajuda dos movimentos ecológicos do país e do exterior, que já se manifestaram neste sentido”.

               Ao ouvir, por ocasião da reunião no Sapê, que os milionários do Condomínio “estão dispostos a ajudarem no que for possível”, me lembrei de um dizer antigo: “Neste pau tem mé”. Quer dizer que tinha um interesse maior que não era explicitado. Na verdade, eu já estava ressabiado desde quando conheci o Zé Palmeira, em 1980, um homem terrível para os caiçaras da praia da Ponta Aguda. Ele era conhecido como “capataz da Costa Verde”. Era o tal que dava tiros, soltava o gado nas plantações dos caiçaras, ameaçava etc.

               Enfim, não vingou o município da Costa Verde. Mas tentaram de verdade!

domingo, 20 de janeiro de 2019

PREFÁCIO (II)

O remo voa na chegada (Arquivo JRS)


               Após ter chegado da Festa de São Sebastião, na praia Grande do Bonete, retomo o prefácio de Dalmo Dallari:

               Outro aspecto muito interessante da cultura caiçara, registrada por Priscila Siqueira [Genocídio dos caiçaras – 1984], é a religiosidade, que se manifesta de modo ingênuo e alegre, através de festanças, com muito colorido e muita dança, havendo ainda os últimos sinais da congada, com seus reis e guerreiros.
               Curiosamente, conforme o testemunho da autora, o rádio de pilha penetrou nesse ambiente e colocou o caiçara em contato permanente com o resto do mundo, praticamente sem agredir seus valores e tradições. Esse dado é muito interessante, pois revela a possiblidade de divulgação de informações mesmo onde é elevado o número de analfabetos e sem provocar deformações culturais.
               Mas a vida simples e feliz do caiçara parece destinada a um breve desaparecimento. É o que nos revela este livro-denúncia. A gente caiçara, que por séculos teve o mar como via de acesso quase única, encontrando nisso um fator de proteção, não conseguiu resistir aos “piratas” vindos da terra.
               Favorecido pelos governos militares que infelicitaram o Brasil nos últimos anos, chegaram os aventureiros de várias espécies. A simulação de um “milagre econômico”, que foi uma das muitas imoralidades impostas ao Brasil pelos governos militares, foi pretexto para grandes investimentos públicos e para os pseudorrevolucionários se valessem de informações confidenciais e do poder arbitrário para ganhar dinheiro na esteira desses investimentos. A estrada Rio-Santos, embora prevista antes desse período, entrou de cambulhada nesse processo desenvolvimentista.
               Políticos sem escrúpulos, especuladores imobiliários, empresas multinacionais e pessoas ricas à procura de “paraísos” para recreação descobriram o Litoral Norte e Sul fluminense. Foi o começo do genocídio (morte física), acompanhado de etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e de agrupamentos de índios guaranis existentes na região. Com precisão e coragem Priscila Siqueira relata neste livro o que tem sido esse processo, contando “o milagre e o santo”, na antiga expressão brasileira, descrevendo agressões e identificando agressores. Dasapossamento de terras, ações de jagunços, fechamento de praias e estradas, poluição, prostituição de meninas, tudo isso faz parte de um ritual da “civilização” a essa região.
               Este é um  livro-testemunho, um grito de alerta e também um repositório de dados para etnólogos, antropólogos e outros estudiosos das sociedades humanas. Se nada for feito para deter a voracidade dos invasores, se não houver ouvidos que ouçam, olhos que vejam e vontade de decidir a favor da pessoa humana, restará o registro de que um dia, numa região de praias, florestas e montanhas, existiu um povo caiçara, companheiro da terra e do mar, simples, ingênuo e feliz.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

PREFÁCIO (I)

Viva  todas as mães da nossa cultura!  (Arquivo JRS)


               De vez em quando eu me pego pensando que muita gente não teve oportunidades de conviver, de ler, de se informar melhor sobre a realidade caiçara. Agora, relendo um prefácio de Dalmo de Abreu Dallari para o livro da Priscila Siqueira (Genocídio dos caiçaras - 1984), achei por bem oferecer a quem interessa alguns fragmentos desse notório jurista brasileiro:

               Este livro é a denúncia de um genocídio [...]. Em termos muito atuais, pode-se dizer ainda que é um retrato fiel da face desumana do desenvolvimento econômico. Além disso, tudo saído da pena de uma jornalista que sempre manteve fidelidade a seu compromisso humanista, este livro é o testemunho sucinto, preciso e corajoso de uma agressão à humanidade.   Essa agressão contínua, sem obstáculos e sem punições, favorecida pela degradação dos costumes políticos que atingiu o Brasil nas últimas décadas e apoiada no mito do progresso econômico necessário, que vem sacrificando grande parte da humanidade em favor do enriquecimento de alguns indivíduos [...]
               O cenário deste livro é o litoral Norte do Estado de São Paulo e um trecho do litoral Sul fluminense [...]. A autora, vivendo há muitos anos na região, vem testemunhando e sofrendo a deterioração física e social daquela área [...]. Tem procurado denunciar os aspectos mais agudos das práticas antissociais, antiecológicas e até mesmo antibrasileiras que se têm verificado naquela parte do litoral brasileiro.
               A par do caráter de denúncia, este livro de Priscila Siqueira é um importante registro de características e manifestações da cultura caiçara, em vias de extinção. A terra e o mar são prolongamentos das comunidades e com ambos o caiçara vive em verdadeira comunhão espiritual, respeitando-os como fontes de vida. Sem nenhuma preocupação com a acumulação de riquezas, o caiçara vive a “boa pobreza” que, longe de ser um estado de privações e desânimo, é a opção pela vida simples, espontânea e alegre. E assim, como fica demonstrado neste livro, o caiçara sempre viveu feliz.

domingo, 13 de janeiro de 2019

AO GUERREIRO GENÉSIO

Adeus, Genésio (Arquivo JRS)
Estamos chegando, filho. (Arquivo JRS)

            Parece que foi ontem que eu ouvi o Seo Genésio falando da sua história, do povo do Camburi e das lutas pelas melhorias do seu lugar. “Vamos lá, meu filho. Depois da cachoeira é só subir o morro para chegar onde mora o Seo Genésio e Dona Irene. Estamos quase chegando”. Era o ano de 2007. E lá fui eu  e o meu irmão Jairo conduzindo o meu filho Estevan ao Camburi, para conhecer um respeitável líder caiçara: Genésio dos Santos. Depois da acolhida com café e mandioca cozida, fomos à roça. Grande homem ganhando, no mar de capim, as grimpas do morro, de onde se avistava toda a praia. Grande Genésio!

            Genésio da prosa sentado no banco, da foice no ombro morro acima, carregando lenha, carpindo o mandiocal... Genésio, descendente de Josefa, moradora da  toca na mata, a primeira a fugir da escravidão das fazendas.

            Genésio de idas e vindas, sem medo de falar até mesmo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo:

            “Como eu disse lá, eu disse lá para os deputados: Nossos deputados, todos quantos estão nos ouvindo aqui nesta tarde, aqui na Assembleia, que é a casa das leis, escutem aqui, quero fazer uma pergunta para os senhores: Eu, ou os senhores que estão aqui, ocupam um lugar de ser um policial, um sargento, um tenente, um capitão, um major... um comando. E o senhor tem os seus empregados. Então: eles estão para fazer as leis ou desfazer das leis? Eu achava por bem que, eu ocupando um cinturão na minha cintura, o revólver na cinta, uma algema, eu vou trabalhar no clube da lei, no certo da lei; não desfazer da lei. Então foi o que aconteceu no Camburi sobre o Parque, sobre a Reserva. Eu quero falar para os senhores que a Reserva, um Parque, eu, no meu conhecimento, no meu tipo de viver, no meu conhecimento – nada eu sei – mas tem que ser uma reserva para os insetos, para os bichos; a conservação para os animais, de bichos, né? Não pode ter moradores nenhum, não pode ter moradores. Agora eu digo para os senhores: o Camburi tem habitação há mais de trezentos anos. Tenho certeza do que estou falando aqui na mesa: há mais de trezentos anos! Foi reconhecido já, há mais habitação que foi do tempo dos escravos ali no Camburi. Agora pergunto aos senhores: há mais de trezentos anos reconhecido. Agora, lá, o Parque lá, assubiu há quinhentos, trezentos anos? Não. Não".

            Genésio, pescador, agricultor e soldado da Força Pública nos idos distantes. Genésio que viu a estrada (BR- 101 – Rio-Santos) ser aberta, dando espaço para os condomínios fechados, para as mansões que ocupam os morros desde então. Genésio que testemunhou a expulsão de muitos caiçaras de suas posses, que viu as encostas sendo ocupadas desordenadamente e esgotos e lixos ganhando o mar, as praias...

            Genésio de Josefa, de Basílio, de Cristina: noventa e dois anos de luta neste chão caiçara. Genésio: guerreiro da cultura caiçara. Muita força, Dona Irene. Sinto muito pela perda. Com carinho. Zé e família.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

CAMINHO DO PARU

Outra espécie, bom fruto (Arquivo JRS)

Bacupari (Arquivo JRS)


               É em tempo de férias escolares que a gente pode sair mais com toda a família. Com bastante gente é assim, né?!?  Então, aproveitando esse tempo, resolvemos ir até a prainha do Canto do Góis, onde nossos filhos tiveram seus primeiros contatos com o mar, de onde parte o caminho de servidão que percorre toda aquela ponta até a praia das Toninhas. Ou melhor, percorria! Agora, de uns anos para cá, este caminho dos primórdios da vida caiçara foi fechado no condomínio da Ponta das Toninhas. Mesmo assim, você ainda pode avançar pelo caminho afora, visitar as prainhas (Tapiá, Pixirica, Xandra e Maria Godói), apreciar a mata, o mar e algumas espécies do entorno, do percurso.
               Logo no começo encontramos o Paulinho do Paru e perguntamos se tinha algum peixe bom para nos vender. “Tem sim. Tem uns robalos, uns sargos e umas corvinas. Passa lá e dá uma olhada. Ah! Também tem marisco que colhi agora cedo. Fresquinho, fresquinho”. Fomos andando. Num caminho bem arejado devido as árvores, fomos apreciando as jaqueiras, os cambucazeiros, os bacuparizeiros, os araçaeiros, os grandes embiruçus e suas embiranas, os capim-navalhas, as piçarras...Enfim, tudo aquilo que faz parte do ser da gente desde muito tempo. De vez em quando um desbarrancamento recente atrai a atenção. Que calor! Sorte aquela bica na minúscula Xandra. Uns rapazes estavam mariscando, aproveitando a maré baixa. Na Maria Godói, fiz questão de mostrar a cava da casa das três irmãs. “Um dia a gente vai escavar para pesquisar o que os antigos caiçaras deixaram como vestígios, como pistas de suas vidas encobertas pelos matos”. Também relembrei: “Nesta praia nasceu a Dona Josefa, grande benzedeira do Itaguá, mãe do João de Souza”. Apreciamos uns docinhos bacuparis. Agora, o que mais me intrigou foi uma espécie da família do manacaru: estava com alguns frutos, bem ali na pedra à nossa frente. Subi e peguei o único maduro, já bem comido pelos passarinhos. Suas sementes estão germinando em meu berçário de mudas. Vamos espalhar essa novidade. Afinal, tudo isso é coisa de caiçara.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

REFLEXÃO

   
Capitão retardado na praia - Arte: Fábio

      A partir da poesia Reflexão,  em https://barbatuba.blogspot.com/, o mano Mingo faz avançar nossas reflexões.


Se as pessoas fossem leões
não precisariam de armas de fogo
para se defender dos semelhantes,
não se isolariam em muros e cerca elétricas,
não aceitariam o terror
como arma de dominação
e não calariam a voz contra a injustiça.
Pessoas não são leões.


Na verdade muitos são ovelhas dominadas pelo medo,
que elegem o lobo para sua liderança
por não conseguirem ter fé ou ver sinais de esperança

domingo, 6 de janeiro de 2019

SANTOS REIS CAIÇARAS

Peixes adorando o menino (Arquivo JRS)



               Os festejos do catolicismo sempre foram bem observados pelos velhos caiçaras, quase tudo se organizava em torno dessas comemorações. Numa ocasião, entre o Natal e o Dia dos Santos Reis, quando eu passava uns dias na comunidade da praia do Puruba, entre os irmãos dali (Tio Dico, Tia Baía, Tia Zaíra e Tio Antônio. Tia Rosa ainda não viera da cidade), depois de muita prosa e risadas na noite, esta foi a versão dos reis magos:

Tia Baía:  - Os Santos Reis estão passando pelas casas. O grupo do sertão do Puruba, na sua cantoria, nos relembra a cada ano a história do menino Jesus. Desse modo nós aprendemos sobre a nossa fé desde os mais antigos.

Tia Zaíra:  - José e Maria passaram um sufoco. Diz a história que não havia lugar para se acomodarem decentemente e ainda precisaram fugir da perseguição de Herodes. Foi numa toca de pedra que Jesus nasceu.

Tio Dico:   - O pior foi enfrentar aqueles caminhos seguindo a estrela-guia. isso quer dizer que eles viajavam de noite. Nós sempre viajamos daqui até a cidade [distante 25 quilômetros] de noite, não é mesmo?!? Quando é tempo de Lua cheia até que não é tão difícil, mas em noite escura de breu só coruja se dá bem!

Tio Antônio:  - É desse jeito, Dico! Agora mesmo eu não estou sem a unha do dedão por causa de um escorregão na semana passada, na volta da madrugada da festa de encerramento da novena na praia Vermelha?!?.

Tia Baía:  - Ah! Mas o que aconteceu também teve a ajuda do tanto que você bebeu de consertada, ouviu Antônio?! É doce, é gostosa, mas também embebeda!

Tio Dico:  - É por isso que eu não bebo. Depois, Antônio, sempre tem alguém jogando essa verdade na  sua cara, está ouvindo? E você já imaginou aquele pessoal se embebedando pelos caminhos: os Santos Reis e a Sagrada Família subindo as grimpas do Léo e rolando naquela grota do Canto do Félix, depois das Conchas? Teriam que dormir na areia grossa, debaixo daqueles abricoeiros, antes da capela. Se apagariam ali! E qual balseiro toparia em atravessar toda essa gente tonta de cansaço e de outras coisas? Teriam que ir à bau primeiro o Indaiá e depois a barra da cidade, o rio Grande.

Tia Zaíra:  -  Que nada! Nem chegariam lá! É certo que seguiriam o caminho contrário, aquele ensinado pelo perverso rei Herodes.

Tio Dico:   - Iriam parar então em Paraty?

Tia Baía:  -  Deixem de falar disso. Não se brinca com coisa sagrada.

Tio Antônio:  -  Você acha, minha irmã, que coisa sagrada, que gente sagrada é diferente da gente? Que eles não precisavam correr no mato quando tinham as necessidades deles? Não se agachavam para tomar no rego quando batia a sede? Será que não pararam nenhuma vez para pedir um café com farinha e peixe seco assado?

Tio Dico:  -  O Antônio tem toda razão. Contam os mais velhos que quem fez caridade assim recebeu uma benção, se compadeceu do grupo que tinha muito ainda para andar, foi junto, seguindo eles até a cidade. A Maria era jovem, mas estava muito pesada e não conseguia andar depressa. Por sorte que a pensão do Braga, logo ali, perto da igreja, sempre dava um jeito de acomodar quem precisasse. Não sei se fosse igual à temporada de hoje, com tanta gente, seria possível isso.

Tia Zaíra:  -  É, isto é certo: iam devagar, no ritmo dela que estava quase na hora do parto. Confiavam que tudo daria certo.

Tio Dico:  -  O menino na barriga foi se sacudindo todo.

Tio Antônio:  -  A mãe, coitada, deve ter vomitado demais.

Tia Baía:   -  É mesmo, né?

Tio Dico:   -  Mas as Escrituras não diz que ela tinha a força do Espírito Santo?!? E os outros?

Tio Antônio:  -  Ah, Dico! Deixa disso! Os outros tinham a força da nossa comida! Eles não se alimentaram como nós? Não comeram do nosso peixe, da nossa farinha de mandioca? Você acha que ninguém deu um grosso biju para irem roendo na longa pernada? Além do mais, já era tempo de jaca e de goiaba maduras. Só não comeram muito para não se empaturrar e ter de parar.

Tia Baía:  -  Vamos deixar de prosa. Agora já é hora de ir para a capela porque o compadre Dito Fernandes, a comadre Mocinha, o Pedro Brandão, o Anastácio e mais gente do sertão estão chegando assim que o galo anunciar a madrugada. Depois da cantoria a gente desmonta o presépio e guarda para só montar de novo em dezembro.

Tio Antônio:  -  E, depois da comidoria, vamos para o tio Durval. Já está tudo pronto para o bate-pé no assoalho dele! É hoje que o Sol desponta na Justa com gente lascando tamanco! Viva os Santos Reis! Viva!!!

Todos (inclusive eu):  - Viva os Santos Reis!!!



terça-feira, 1 de janeiro de 2019

MAIS UM QUE SE VAI

Dona Maria: todo dia é dia bonito. Feliz 2019 (Arquivo JRS)

               Assim que me entendi por gente, ficava imaginando como seria o ano 2000. Achava que estava muito longe. Agora, já estou vivendo o ano 2019! Que coisa, né? Como tudo parece estar passando tão rápido! Agora já sou casado, meus filhos estão dando passos decisivos em suas vidas e já voam contemplando outros horizontes... E o Sol, desde que despontou vermelho sobre as águas,  está iluminando toda a serra e o mar! Hoje é um belo dia! Me corrijo. Conforme escutei de uma pessoa idosa no ano passado: “Todo dia é dia bonito porque a gente precisa de sol e de chuva; precisa de tudo que a natureza nos dá.” E não é que é mesmo!?! Acabei de ver, olhando através do portão, a Dona Maria sentada na sua cadeira de rodas e tomando um delicioso café. Entrei para cumprimentá-la e logo o seu esposo me trouxe uma xícara quase transbordando. Viva essa gente nossa!

               Sou grato pela vida, pelas pessoas-partes de mim (Gal, Má e Estevan) e por tantas outras que enfrentam o mundo comigo num espírito de partilha, de apoio, de carinho, de apreço à natureza, de solidariedade com os mais necessitados de fome e sede de justiça etc.

               Que avancemos neste ano com bastante energia para fazermos a diferença (dar o melhor de nós e querer o melhor dos outros).