sábado, 31 de janeiro de 2015

ILHA DO MAR VIRADO

Sol bem cedo  (Arquivo João Ricardo Júnior)



                   Ainda bem que deu tudo certo!
                Há três dias, juntamente com os amigos  Jorge, João e Evalci, tornei a visitar a Ilha do Mar Virado, em Ubatuba.
                A Ilha do Mar Virado faz parte da minha história por parte da mamãe, da Praia da Fortaleza. De lá era a Tia Gaidinha, a minha bisavó -  a segunda esposa do Nhonhô Armiro. De lá era a Maria Barbina, a parteira, mãe do Arcide, do Eugênio Inocêncio e tantos outros. De lá era o João da Varge, o Lourenço da Ilha, o Calixto, a Dulcinéia, o Germano e tantos mais. Lá está a base de novas  gerações que estudam ou estudaram em outras terras distantes, se tornaram profissionais nas áreas de fisioterapia, arquitetura, agronomia etc. (Me refiro aos descendentes da tia Maria do Bernardino).  Daquele lugar, onde tantos umbigos foram enterrados, tem gente por muitos outros países (O Almirinho vive há anos em Singapura. A Dulcinéia tem uma filha na Holanda). De lá saíram tantas pessoas honestas que agora povoam a minha memória. De vez em quando avisto algumas delas e penso: “Será que elas sabem de suas origens, dos nossos antigos vivendo e plantando na Ilha do Mar Virado?”.
                Cresci pescando por ali com o vô Armiro e com o papai. Aquelas lajes são todas conhecidas minhas desde o tempo criança. Por ali eu vi o maior cardume de botos na minha vida! Quantas espadas, cavalas, sargos etc. eu apreciei a partir dali!?! Ali, entre a Ponta da Fortaleza e a Lage de Fora, dei os meus primeiros mergulhos e vi as maravilhas do fundo do mar. Papai me acompanhava bem de perto.
                Os mais velhos, que não moravam na ilha, mas nas adjacências (Fortaleza, Praia da Deserta e do Cedro), até a década de 1950 tinham por lá as suas roças. Atravessam de canoa, faziam os seus ranchos apenas para passar a semana e cuidar da plantação. O motivo? Nas terras do continente as saúvas destruíam tudo. Na ilha não havia tal problema. A tia Maria do Genésio dizia que o único medo era das jubartes, abundantes numa determinada época do ano, quando estavam com crias novas. É que elas, descuidadamente, podiam virar canoas. A vovó Eugênia assim dizia: "Lá morava muita gente, menino! A Folia do Divino levava três dias em cantoria por lá".
                Recentemente, a partir dos estudos nos sambaquis da Ilha do Mar Virado, podemos afirmar que, antes do índios tupinambás, já viviam por aqui outros seres humanos. Os achados (ossos, utensílios...) permitem uma certeza: há mil e duzentos anos atrás tinha gente desfrutando desse pedaço de chão. Então, naquela ilha estiveram os nossos antepassados mais antigos.

                Voltar e dar a volta em torno da Ilha do Mar Virado foi um reviver em partes da minha história! Mesmo que a pescaria prevista não tenha sido a contento, creio que os meus bons companheiros desse dia adoraram a paisagem, a paz e o banho em águas tão límpidas. É isso! Valeu o dia que vivemos juntos!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

AOS QUE CHEGAM

Na parede de um edifício, em Ubatuba (Arquivo JRS)
                Olá, Pedro Caetano! Bem-vindo ao blog!

               Nesses dias passados tenho encontrado gente nova na cidade (Ubatuba) que vem me perguntar a respeito de fatos da nossa história. Querem se inteirar e interagir com o nosso lugar.  Acho muito bom! É conhecendo essa terra e a essa cultura local que a gente passa a gostar mais e a defender esse pedaço de chão tão especial por natureza.
               Eu até sempre tenho um roteiro a apresentar, mas o ponto de partida, na minha preferência, é a vida dos  habitantes que aqui estavam no século XVI (por ocasião da chegada dos portugueses), ou seja, os indígenas da etnia Tupinambá.
               Entre os diversos autores que teceram suas considerações a respeito desse importante grupo indígena, eu gosto do Benedito Prezia, cuja obra mais didática, em parceria com Eduardo Hoornaert,  tem o título de Esta terra tinha dono.
               Foi para lutar contra a escravização, no plantio de cana-de-açúcar, que os habitantes desse território se uniram na Confederação dos Tamoios, na primeira resistência organizada dos índios do continente americano.
               Tamoio queria significar os mais antigos do lugar, aqueles que estavam aqui primeiro, que não aceitavam a forma de relação imposta pelos portugueses. Então, dessa união dos diferentes grupos indígenas, desde o planalto paulista até o litoral norte fluminense, começou a guerra que durou de 1562 a 1567. De acordo com Prezia, a doença por nome de varíola foi a grande aliada dos portugueses. Até o grande cacique Cunhambebe morreu nesse intervalo. Contribuiu ainda para a vitória lusitana: a expulsão dos franceses do Rio de Janeiro e a atuação dos padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta.
               Hoje, vendo a atuação dos líderes religiosos nessa sociedade de conformismo, de alienação, eu penso nos tupinambás que logo se acalmaram com a fala do padre Anchieta. Acabar com o povo que amava a liberdade era o sentido da missão dos jesuítas?
               Após as perseguições, os colonos portugueses implantaram o que se tornaria a Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, em 1637.

               Ao se deparar com nomes, tais como: Avenida Iperoig, Rodovia dos Tamoios, Rua Cunhambebe, Travessa Koakira, Condomíno Paz de Iperoig etc., tenha a certeza de que esta cidade já fez parte do território livre dos tupinambás. Foram dizimados, mas deixaram seus traços na cultura caiçara. Hoje, as duas aldeias que existem (Corcovado e Prumirim), são da etnia guarani, que migraram da região sul, no final da década de 1970, na firme esperança de alcançar a Terra sem males. Quer teologia mais nobre que isso?

domingo, 25 de janeiro de 2015

FREI PIO BUSCOU SE ACAIÇARAR

Muro da Creche Francisquinho 2014 - Estufa (Arquivo JRS)

               Vale a pena recordar!

          De vez em quando eu recordo de algumas passagens a respeito do saudoso Frei Pio Populin, sobretudo de embates com o finado João Pimenta, da praia do Sapê, onde nasci. Era interessante escutar uma espécie de prosa que não era comum em nosso meio. Hoje eu digo que tratava-se de enfrentamentos teológicos. Quando? Segunda metade, quase final da década de 1960. A imagem do disposto religioso escondido por um hábito marrom, tendo um cordão encardido pela cintura, foi marcante na minha infância. Bem depois disso, já na década de 1980, na Estufa, lá estava eu ajudando o mesmo frei nas obras da futura Creche Francisquinho. Também estive com ele me inteirando do Posto da ASEL, na Praia da Ponta Aguda. Deste lugar estão na memória: Aristeu, Odócia, João Araújo, Ambrósio, Filhinha e tantas pessoas desta terra (Ubatuba) maravilhosa!
               Agora, relendo a tese de doutorado do Olympio Corrêa de Mendonça, defendida em 1978, novamente sou instigado a escrever a respeito do Frei Pio.

              "A instabilidade social da região dificulta muito o levantamento estatístico do número de suas casas e seus habitantes. A transformação causada pelas obras da Rio-Santos, a especulação imobiliária, a presença de potentes barcos de pesca nesse litoral e a proibição da caça de subsistência têm estimulado o êxodo para as cidades. O Bairro da Estufa, em Ubatuba, tem recebido um enorme contingente de famílias de retirantes. Em Ubatumirim, porém, onde se instalou uma missão franciscana, o êxodo rural é menor. Há casos, inclusive, de famílias que mudaram para Ubatuba, gastaram o dinheiro da venda de seus terrenos, e depois voltaram para a região, internando-se nos sertões do sopé da Serra do Mar, para formar novas posses, onde lavrariam a terra, beneficiariam a mandioca, e dedicar-se-iam à caça de subsistência, únicas atividade para as quais estão preparados."

               [...] De 1970, quando começou o desmatamento para a construção da estrada de serviço [dando início à rodovia que nos ligaria à vizinha Paraty],  até hoje, quando o asfalto corre por vales, corta morros, aterra mangues e já está para se encontrar com o trecho que vem de Santa Cruz (R.J), e as autoridades prometem a inauguração do trecho Ubatuba a Santa Cruz, para meados de 1976, a região já sente os sintomas e as consequências de uma transformação radical. Junto com o desenvolvimento chegou a destruição. [...] O caiçara antes já abandonado, recebe agora o tiro de misericórdia. As pressões econômicas, físicas, psicológicas, despojam-no de suas posses seculares (Ver SEMEDO, Fernando. “Rio-Santos ameaça tudo, até os caiçaras”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 29 out., 1973). Os terrenos chegam a ser vendidos por centímetros. É a Costa do Ouro Brasileira; não há lugar para os que a lavraram durante cerca de 300 anos.
               Os caiçaras expulsos das terras de seus ancestrais, são apertados nos sertões dos sopés da Cordilheira Atlântica, tornam-se, mais raramente, caseiros de suas próprias terras, já vendidas a preço baixo, e, no mais das vezes, são jogados às sarjetas das cidades vizinhas, que se incham nas favelas, que já começam a proliferar pelos mangues e morros.

               [...] Se não tivesse existido o esforço ingente da Ação Social Estrela do Litoral (ASEL), dos Frades Conventuais, talvez esse “Império Caiçara” já estivesse totalmente devastado.
               Frei Pio Populin, missionário franciscano conventual, nascido em 17/02/1913, chegou a Ubatuba em 1966. Seus primeiros contatos com os caiçaras são narrados por Stipp Junior:

               “... no meio dos turistas, sua atenção foi atraída por aquela gente simples e pobre que chegava pelo mar, com sacos de farinha ou cachos de banana para vender...”

               Ele embarcou-se numa daquelas canoas feitas de um só tronco e penetrou no chamado “Império Caiçara”. Mais tarde, vencendo dificuldades enormes, instalou em Ubatumirim, no coração da região, o Centro de Promoção Humana e Profissional, mantido pela ASEL da qual foi fundador e presidente.


               Sei dos esforços do Frei Pio. Meus tios Salvador, Nelson e Dito Félix e tantos outros estiveram na empreitada do Estaleiro do Padre. Ele, imitando o Santo de Assis, também saía pedindo até mesmo junto aos empresários no ABC e na capital paulista. Agora, desde 18/11/2009, descansa neste chão que tanto amou, bem longe da pátria italiana. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

ASSOMBRADO


Pescaria na Trindade (Arquivo Trindadeiros)
 As histórias de assombração fazem parte da nossa infância, mas até hoje adoro ouvi-las. Hoje, relendo uns textos, encontrei esta do saudoso Tio Antônio Félix. Vale a pena recordar as coisas da gente!


Tio Antônio estava casado havia pouco tempo com a tia Conceição quando isso aconteceu. Em uma noite escura como tantas, deixou sua casa no Sertão da Quina para pescar – passando a rede de “picaré” na praia. Na volta, já de madrugada, parou numa moitinha na beira da estrada e de lá onde estava agachado viu passando uma luz que julgou ser o Zeca Pedro com sua lanterna. Então gritou: “Espere por mim, Zeca Pedro, que eu te acompanho!”. No mesmo instante a luz parou e Tio Antônio, ao se aproximar um pouco, viu que não era o seu conhecido e sim uma luz esbranquiçada e informe que se transformou num vulto alto como um coqueiro que, parada, lhe impedia a passagem assustadoramente.
Tentando esconder o medo e manter a tranqüilidade, e sem entender nada daquilo, disse num tom desafiador: “Se não me deixa passar não tem problema, conheço outro caminho”. E assim se foi, pegando um desvio, até que viu a luz aparecer novamente à sua frente. O que aconteceu desse momento em diante tio Antônio não soube explicar, julgava que havia perdido os sentidos pois não se lembrava de nada mais. Somente no dia seguinte foi que acordou na casa do velho João Firmino, no Sapê, distante do ocorrido mais ou menos um quilômetro.
Segundo o João Firmino, tio Antônio bateu em sua porta desesperado, gritando pela esposa, Conceição. Ao abrir a porta o velho percebeu que ele estava “assombrado”, então apagou a luz da lamparina (pois era assim que se agia quando alguém estava assombrado) e o colocou para dormir.

E era assim que tio Antônio testemunhava a existência de assombrações.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

POESIA CAIÇARA


       Tia Isolina, nascida na Praia do Pulso, depois que foi morar em Cunha, vinha ao menos uma vez por ano em Ubatuba. Era para rever a parentada toda. Numa ocasião, quando morávamos na Praia do Perequê-mirim, ela nos fez a costumeira visita. Foi quando a mamãe deu a seguinte incumbência: " Zezinho, acompanhe a Tia Isolina até a casa da sua avó, no Sapê. Ela já está velhinha e é perigoso ficar andando sozinha por aí". Ah! Quantas coisas eu aprendi das sua prosas! Dela é o dizer: "Praga eu não rogo, mas bom fim não há de ter". Mulher de olho mais azul nunca vi!


História de Isolina




Isolina, neta de Francisco Cabral,

é por livre e espontânea vontade

que vós estais deixando a brisa do mar,

a areia da praia,o pirão de peixe,a festa das
 
gaivotas,

a raiz da família,a história de sua terra,

por marido e nova vida

em Cunha do alto da serra?

Isolina Cabral,

vós acreditais que a força do verbo amar

é mais forte que o mar?


Autor: Domingos Fábio, o Mingo.

domingo, 18 de janeiro de 2015

MUSICALIDADE CAIÇARA

Café com abacate e farinha de mandioca: vai aí? (Arquivo JRS)



       Hoje, homenageando os artistas caiçaras de outros tempos e atuais (Júlio, Aguinaldo, Ostinho...), apresento a composição feita na Praia da Enseada, com base na cultura caiçara. Valeu, Ostinho! 
Vale a pena conferir na página do Ostinho e Artes: https://www.facebook.com/video.php?v=1522355964714439&set=vb.1400459476904089&type=2&theater

Samba de enredo - Ao pôr do sol a Enseada é carnaval (Composição - Ostinho)

É lindo é lindo!
O pôr-do-sol na praia da Enseada
Um esplendor, a natureza do Criador
Eu mergulhei, eu naveguei
Eu mergulhei na história do lugar
Tantos mistérios, tantos segredos nas águas do mar
É ela tão bela, Dona Zenaide me falou
Um santo que era de barro
Hoje ele ressuscitou
Trazendo de volta
Nosso folclore o nosso valor
A alegria de um povo
E do caiçara pescador
Oi pega, pega o boi
Bota o boi pra dançar
Oi pega, pega o boi
Deixa o boi farrear
Oi pega, pega o boi
Bota o boi pra rodar
O carnaval é uma festa popular

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

SE RECICLANDO NO AMBIENTE QUE NOS GEROU

                

                  Bem-vindos ao blog Marcos Prado e Carla Santos!


                Reciclar, no texto de hoje, significa aprimorar a partir de tornar a experimentar, de uma revisão, de superar novos desafios, de reencontrar com antigas práticas de coleta, de reparar nas marcas deixadas pelos animais, de reconhecer os sons dos pássaros etc. que são perpetuadas por nossos mateiros caiçaras.  No caso, estou me referindo ao hábito de fazer trilhas pela Mata Atlântica, pelos nossos morros.
                Geralmente, no decorrer do ano, as minhas caminhadas são curtas, sem exigência de muito esforço, nem de grandes desafios. Na maioria delas é possível fazê-las com vestimentas leves, calçados simples ou chinelos.  Porém, sinto falta das caminhadas pesadas, onde as roupas devem ser reforçadas, além do uso de botas de borracha, do tipo usado nas tarefas dos bananais, imprescindíveis porque protegem os pés dos buracos entre as raízes e pedras, dando firmeza em pontos inseguros.  
                O parceiro de subida da serra, que contribuiu nessa reciclagem, foi o Valtinho, caiçara do Sertão do Ubatumirim, morador no Ipiranguinha há mais de trinta anos. O trajeto foi a Picada da Cachoeira do Meio, na área da Trilha da Serra Acima, o primeiro acesso das terras ubatubanas com o território do Vale do Paraíba.  Ontem, 15 de janeiro, guarnecidos com mochila e facão, começamos por volta das 5:30 horas a nossa jornada. Antes das 15:00 horas chegamos de volta em casa. Ufa!
                Foi um ritmo forçado. Nesses momentos, controlando o fôlego para não ter de parar para descansar, é que eu pensei o quanto ainda tenho de treinar para subidas íngremes, tendo apenas galhos e poucos cipós como auxílio. Já o meu parceiro, devido ao hábito regular, não perdia o pique nunca. A disposição das descidas era o mesmo que das subidas e dos escorregões. “Não é fácil acompanhar o Valtinho!”.
                A picada é um trajeto antigo, dos caçadores. “Geralmente são feitos sobre antigos carreiros de animais”, mas não são muito evidentes. Ou seja, aqueles que as utilizam não querem limpá-las para não causar estranheza aos animais. Temem também a invasão de aventureiros e o policiamento. É como se dissessem: “Quanto menos vestígios melhor”. Os sinais mais indicativos das picadas são galhos e folhas dobrados.
                A Picada da Cachoeira do Meio começa na Cachoeira dos Macacos, na região onde várias cachoeiras se juntam para constituir uma das captações de água do município de Ubatuba. Não é possível descrever as belezas das quedas e dos poços de águas límpidas que enfeitam essa nossa mata. Também não tem como deixar de perceber que esse ambiente é muito frágil. Sob nossos pés, longe das grotas úmidas, o que notamos são pedras e solo arenoso sustentado por árvores, quase sem nenhuma vegetação de menor porte consistente. Ou seja, acabem com as árvores e teremos uma desolação só, com pedras e terra descendo livremente em direção às áreas de ocupação humana, soterrando tudo.
                Na serra, aparentemente  verde, tem trechos sem água, mas é o melhor lugar para perceber as árvores como estratégia para a captação das águas. Por isso, nunca se aventure nela sem levar uma reserva de água.
                É deslumbrante perceber que aquele filete de água, brotando numa grotinha qualquer, logo vai se juntar com uma água maior e dar um espetáculo de nos convidar a ficar ali pelo resto da vida.

                Também é legal escutar pássaros que, nessa época do ano, nem se aventuram perto do mar. E o que dizer das marcas dos animais maiores? O Valtinho, criado nessa nossa mata, mais observava, mas de vez em quando dizia: “Tá vendo essa marca na areia, Zé? É cateto que passou por aqui!”. “Tá escutando o sabiá preto cantando?”. “Daqui a um mês, após a chuva, podemos vir para recolher coco pati brotado. É muito bom, né?”.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

ACERTAMO, HEIN VOVÔ!?!

João Zacarias, neto (Diógilei)  e bisneto (Isaac) (Arquivo DT)


            O vovô Estevan sempre gostou de pescar. Chegando a velhice, esse prazer não se arrefeceu. Ele, sem dúvida alguma, foi um parceiro fiel do João Zacarias até quando a saúde lhe permitiu. Era comum eu chegar na casa dos meus avós e escutar a vovó falar: “O vosso avô está puxando rede com o João Zacarias. Logo ele chega". A Praia do Sapê era o ponto de encontro deles. Ah! Quantas redadas eu presenciei e sou testemunho do tanto que era animada aquela turma!
            Hoje, é com muita alegria que apresento o texto do Diógilei Tadra, neto do saudoso João Zacarias. Espero que venha mais! Afinal, é um prazer saber e dar a conhecer mais coisas do meu povo. É um registro para nós e para as novas gerações.

 
            A minha infância e adolescência foi muito ligada ao mar, às pescarias, redadas de tainha e parati, pois meu avô, bisavô, tataravô... foram tradicionais caiçaras, pescadores natos, que viviam basicamente da agricultura familiar e principalmente da pesca. Meu avô, por exemplo, que eu "arcancei" (vivi com ele) tinha barco, redes de tainha e de parati, peixaria, enfim, vivendo em função do mar.
            Sempre íamos, de madrugada ainda, pra "beira do lagamá",  (praia) "espiá" (olhar) "os cardume de peixe". Na "épa" (época) da tainha, os olheiros ficavam de prontidão no ponto mais alto da "preia" (praia) para que, quando avistasse um cardume, dessem o sinal com uma camisa enrolada na mão, para lançar a canoa na água e cercar o peixe. Tudo tinha que ser muito rápido e em silêncio pra não "espantá" o cardume. Esse foi, por um bom período, minha vida, baixando o chumbo na praia ou soltando a tralha de chumbo na canoa.
            Certo dia, à tarde, veio a notícia de que na Praia do Pontal, na Lagoinha, tinha um enorme cardume de tainha que fazia um escuro de dar medo, na rebentação, a ponto de cerco. O mar calmo e a ocasião certa para "matá mais de cento" (pescar muito peixe). A buzina da caminhonete rural soou freneticamente para juntar os camaradas para ajudar a puxar a rede. Chegando lá, quase em frente a Ilha do Pontal, finalzinho da tarde, o cardumão foi avistado, ora boiava, ora afundava no mesmo lugar, uma redada de "lavar a égua". Cerca, não cerca, não é, é, uns diziam que era, outros diziam que não era, enfim, a rede foi lançada e o cardume cercado. O dia, quase escurecendo, começam a puxar a rede. Dali a pouco, começam a aparecer os primeiros peixes, um bagre aqui, outro ali, vem mais um e mais um...Uma redada de bagre gonguito!! Pra quem conhece, sabe que o bagre tem três ferrões e é dificílimo tirá-lo da rede, tem que quebrá-los, pois embola tudo; é fácil de entrar, mas difícil de arrancá-los. Por fim, ficamos a noite inteira tirando bagre da rede. Foram uns vinte tabuleiros (caixas) cheios e a rural lotada também!! Teve gente que comeu bagre o mês inteiro... Quando terminamos de embarcar a rede na canoa, já eram  7 horas da manhã.
       O meu irmão de São Paulo, jovem ainda, de férias em casa, estava também conosco na inesquecível redada, quando a rede encostou na praia com aquela enorme quantidade de peixes, disse ao vô Zacarias: "Acertamo, hein vovô!!!" A risadaria foi geral...Mal sabia ele que iríamos passar a noite inteira tirando ferrão de bagre da rede...
            Durante muito tempo, quando alguma pescaria não dava muito certo, tinha sempre alguém que dizia: "Acertamo, hein vovô!!"



sábado, 10 de janeiro de 2015

PRA ONDE FOI A ÁGUA DO RIOZINHO DA ENSEADA?

         
Praia da Enseada, a partir do morro do Perequê-mirim (Foto: Jorge Luiz de Oliveira) 
  
    

     Os últimos textos publicados versam a respeito da Praia da Enseada, cuja fama turística se consolidou na década de 1970. Primeiro veio a poesia da Maria Odila, depois o texto do Zé Carlos. Agora, relendo as páginas do blog canoadepau, do amigo Peter Németh, creio que é a ocasião de aprofundar nossas reflexões, sobretudo em torno do tema da etnobiodiversidade, da importância da cultura local na preservação do meio ambiente. Afinal, não é difícil encontrar, entre os cinquentões, esse consenso do atrativo dessa praia.  "Era a praia mais frequentada de Ubatuba, o paraíso dos sorveteiros. Nela surgiram os primeiros bares de praia, tais como o Rancho do Araca, Bar da Zenaide, do Luiz Servino". "Ali, no lagamar da Enseada, quase sempre tinha gente catando sapinhauá para comer". E o que é esse ambiente hoje? Em suma: um rio desapareceu, estradas surgiram, áreas naturais foram aterradas e edifícios tomaram conta do jundu e dos morros num período muito curto de tempo. Assim como, num breve espaço de tempo, ninguém mais fala do Armazém do Maciel, do Presídio da Ilha, do Bar dos Inocentes, da Capela Santa Rita etc. Disso tudo nascem os questionamentos:


        Entre as duas fotos abaixo, existem 57 anos de diferença. Ambas foram tiradas na mesma margem esquerda do Riozinho da Barra do Destacamento, na Praia da Enseada em Ubatuba.
        Em 1956, canoas faziam a carga e descarga dos barcos de cabotagem que traziam mantimentos da cidade de Santos. O porto ficava na Rua Luzia Maciel Leite, próximo ao número 97, na Praia da Enseada. Pescadores mais antigos relatam os pequenos cardumes de tainhas que podiam ser capturados na lagoa que o rio formava, camarões de água doce enormes (cafulas e pitus), robalos, etc. O rio tinha até barranca, de onde podia-se saltar na água morna que o perau represava. 
      Nesse tempo (antes da estrada) alguns caminhõezinhos que se aventuravam entre Ubatuba e Caraguá, tinham que usar a areia da praia como estrada e a molecada caiçara ficava esperando para ajudar a desatolar o corajoso fretista que ousasse enfrentar o rio na maré errada. São várias histórias de recompensas, às vezes ganhas, outras "ganhadas", pacotes de café, balas, cigarros. Mas a imagem campeã, é a de um bando de crianças flutuando no riozinho, cada um com a sua bola de mortadela!
       Hoje, o rio virou filete de água, ou melhor de esgoto. As tainhazinhas ainda resistem, mas são mini tainhas de 2 centímetros cada, lutando pela vida igualzinho às adultas, é incrível observá-las em seus mini-cardumes. (Breve farei um vídeo com essas mini-tainhas).
       Pra onde foi a água do riozinho?! Será que foi desviada lá na nascente para abastecer as caixas-d'águas de veraneio? Ou será que está canalizado pelo emissário submarino, nosso rio encanado?
       Muito brejo também foi aterrado para gerar terrenos comercializáveis e isso com certeza "imprensou" a água que não aflora mais. E não foi só na Enseada que isso aconteceu, nas Toninhas tinha a barra do Rio Jacundá, mas isso já é uma outra história, para um próximo post.


Fotos: Barra Nova - Cristina Prochaska; 

           Barra Velha - Paulo Florençano.
Fonte: canoadepau.blogspot.com

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

ENSEADA (UM TEXTO DESPRETENSIOSO)

O menino do Fabiano, futuro doutor, catando sapinhauá (Arquivo JCG)

               No ano de 1970, justamente no final da Copa do México, quando o Brasil tornou-se tri-campeão no futebol, um grupo de caiçaras da Praia da Enseada se encontrova no terreiro da casa do Gastão, no lugar chamado de Pedra Branca, para torcer. Dentre eles, eu conheci o José Carlos de Góis. Morava ali, na Rua do Cruzeiro. Hoje, ele é um competente advogado e cheio de talento na escrita. Parabéns! Sou muito grato pelo presente texto que transpira tanto de caiçara! Um abraço, Zé!


     Quando nasci, na década de 50, Ubatuba era paradisíaca. Meu mundo era a Praia da Enseada, o quintal da mamãe cheirando manacá, arruda, alecrim, guiné, as flores das laranjeiras nevando o chão. O jundu, na praia, com sua vegetação nativa, as flores roxas do cipó de corvina, o rabo de bugio, os frutos cheirosos dos abricoeiros, as amêndoas dos chapéus-de-sol, os coquinhos jarobá... Quanta saudade!

     Papai subia o caminho do porto assobiando, os olhos refletindo todo o azul do mar, a fieira de peixe, o samburá de timbopeva cheio de sururu, aquele pé de moleque caiçara, cheirando a gengibre, que regalava eu e minha irmã Conceição.

    Mamãe na velha máquina de costura, cantando, completamente desafinada, músicas que ainda hoje estão na minha memória, como se estivesse ali, sentado no canto da sala, ouvindo sua voz forte de mulher caiçara: “Eu vi sobre o mar navegando, um barco floreando em flor/ Albertino em tu pensando, nada mais do que o amor”... E outra: “Vamos sambar minha gente, pelo sertão, pelo mar/Queremos ter na lembrança a dança do carnavá” (segundo ela, a música do carnaval era de autoria do padrinho Benedito Henrique, na época de sua mocidade, quando faziam blocos de carnaval para brincar na praia).

      O costão da Enseada, o meu velho e querido amigo Silvério Bastos de Ornelas, carinhosamente chamado de Sabá, na pesca da garoupa. Dele tenho gratas recordações. Quando ia pescar, já me chamava, alto e bom som: “Vamos Zé Calos?”  E era assim mesmo, sem a letra erre.  Eu não cabia em mim de contente. Pegava minha varinha mixuruca, com anzol de pegar amborê, e lá ia com o Sabá para a costeira do lado oeste da Enseada. No costão, a pedra onde ele ficava era a mesma. Só que não deixava eu ficar rente a ele. Mandava eu ficar em outra pedra afastado uns vinte metros donde ele estava, “pra mode não intrapalhá, não ispantá as garopa”. E lá ficava eu pegando meus amborés, às vezes um guaiá, enquanto o Sabá pegava uma ou duas garoupas. A isca que sobrava (sardinha ou bonito) ele jogava no mar, e dizia: “Zé Calos, isso é pra ingodá, quando a gente vortá aqui, despois de amanhã,  elas já vão istá isperando e nóis pega mais umas duas.” E era tão somente o que ele pegava. Era pura sabedoria. Pescava apenas o suficiente para o nosso sustento (ele sempre me dava postas das garoupas). Não tinha a ganância de hoje de pegar duas, três, dez, vinte..., na usura de vender e ganhar com a exploração desenfreada.

      Cabe aqui contar uma passagem que demonstra a sabedoria do Sabá: estava ele a pescar garoupa, eu, os amborés, quando percebi que sua linha havia enroscado. Ele com toda a paciência que lhe era peculiar firmou a vara numa reentrância das pedras do costão, de modo que a linha de pesca ficou retesada. Pegou algumas pedras pequenas (do tamanho de um punho fechado), pegou no samburá pedaços de linha, e foi amarrando nas pedras, deixando as pontas soltas; daí passava as pontas da linha amarrada na pedra ao redor da linha retesada, dava um nó e soltava: a pedra deslizava pela linha retesada, e “tchimbum”, afundava na água. Ele pegava a vara, experimentava, dando pequenos puxões; tornava a repetir a operação. Na terceira pedra, veio uma bela garoupa, de, pelo menos, três quilos. Fiquei admirado! Pedi pro Sabá me explicar como a linha tinha desenroscado e ele tinha pegado a garoupa. Me explicou com seu lindo sorriso: a garoupa quando é fisgada pelo anzol tenta desesperadamente entrar na toca; quando consegue ela se arrepia toda e as galhas ficam presas na pedra, e a linha fica enroscada; quando ele fez as pedras deslizarem pela linha retesada,  as mesmas bateram no focinho da garoupa. Primeira, segunda, na terceira ela já estava incomodada e saiu da toca. Daí foi só puxar! Ah, Sabá, eu tinha, então meus doze anos...

Da saudade da Enseada antiga, escrevi este poema (que musiquei à minha moda), em 2.013:

PRAIA DA ENSEADA

Praia da Enseada, que gosto me dá
Cantar para o mundo que eu nasci lá,
Filho de Fabiano e de Pitiá
Cresci embalado nos braços do mar,
Ouvindo as cantigas dos sabiás,
Curtindo a beleza dos caraguatás,
Sentindo o perfume dos manacás,
Em meio à pureza dos laranjais,
Infância-caiçara que não volta mais!

     Mudei da Praia da Enseada em 1.987. Vou lá sempre visitar minhas irmãs Zefa, Conce, Doca, e rever meus amigos. Gosto de ficar olhando o mar e vejo o garoto feliz, cabelos desenfreados ao vento, dorso nu, ouvindo o assobio que vem do passado, e sinto a leve carícia de papai nos meus ombros...


Ubatuba, 08 de janeiro de 2.015.

Em tempo: e que tal decifrar o caiçarês ?


1- UMA NIMBUIA NA GAMBÔA FAZENDO BULHA.

2- MININO, QUIDELE O TESTO QUI TAVA DE JÁ HOJE AQUI, JUNTO DA SERENGA?

BROTA POESIA

Lá vem o Sol, gente! (Arquivo JRS)

               Em meados da década de 1970, quando eu vivia no Perequê-mirim, descobri o mundo das letras. Os amigos mais próximos trocavam gibis e revistas, ou seja, todos liam tudo. Não era muito devido a nossa limitação financeira, mas ficávamos contentes. Em casa, tinha fila para quem iria ler na sequência: “Oba! Gibi do Fantasma! Eu primeiro, você depois”. “Agora é a Ana que tá lendo a revista Capricho [fotonovela], mas depois serei eu”. “Eu já tô lendo o gibi da Brotoeja, mas em seguida eu quero o do Topo Gigio”. Era um tempo em que tínhamos aulas até aos sábados. Na verdade, sábado era dia dedicado à leitura. Sábia professora que nos proporcionava isso!
               Os filhos e filhas do Dona Celeste e do Seo Zé Maia eram os que mais se dispunham a trocar tão valiosas mercadorias. O Odilon era o meu melhor parceiro de leituras. Era por isso que a distância entre as nossas casas, em torno de quinhentos metros, parecia até varrido de tanto que por ali passávamos. Papai dizia que era como “carreiro de formigas feito pela criançada”. Era nesse percurso que costumávamos rir com as lorotas do Zé Pretinho (ou Yêieca), com as trapalhadas do Janguinho da Jovina e com os conselhos da Dona Jacinta e do Seo Tomás. Ah! A Dona Maria Graça sempre nos presenteava com bananas maduras e jacas!
               Conversando num dia desses com a amiga Odila Maia, fiquei sabendo de suas participações nos primeiros concursos de poesia. Ótimas reminiscências! “Eu ainda tenho lá em casa cópias daquelas poesias, Zezinho!”. Imediatamente supliquei-lhe que desse um jeito. Desse modo, posso apresentar:

LEMBRANÇAS

Ah! Que saudade tenho
Das tardes ensolaradas!
Eu, criança ainda, a contemplar
Esta praia, este mar, esta paz que só você tinha.

Enseada, coração de Ubatuba,
Em que toda tarde eu ficava a te olhar.
O Velho Fabiano, esguio em sua canoa, a remar;
O Velho Chico Viola, com sua viola a cantar.

Era tudo simples e tão puro.
Tranquilidade era o que existia ali.
Já não existe mais cantador de viola,
Nem canoeiro a remar.
O progresso passou por aqui
E o que restou de ti, Enseada?

Simplesmente as lembranças das tardes ensolaradas.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

ENCONTRO DAS FOLIAS

Mestre Dito Fernandes, o Homenageado dos Reis (Arquivo Júlio Mendes)

     Está na tradição da cidade de Ubatuba, assim como por todo o Brasil, a devoção aos Santos Reis, O nosso grande incentivador, na atualidade, é o jovem caiçara Rogério Estevenel. Foi quem conduziu o evento na Igreja Matriz. Dele é o texto abaixo:

        “Hoje, dia 06 de janeiro, é Dia dos Santos Reis. Aqui em Ubatuba se preserva a tradição das Folias de Reis que peregrinaram durante o mês de dezembro nas casas entre as praias e sertões. Finalizaram suas cantorias no tradicional Encontro de Folias da Igreja Matriz.

       É uma dádiva de Deus, diante do turismo, uma cidade manter suas tradições. Contudo, vários grupos estão necessitando de apoio das autoridades constituídas, pois diante do exposto em breve poderemos perder estas preciosidades da cultura popular.

     Comunidades, Paróquias (clero), Prefeitura, Câmara e Fundart – também é de vocês a responsabilidade de manter fortalecidos os grupos de cultura tradicional de nossa cidade”.



       Eu fui prestigiar o evento. Foi muito legal reencontrar com saúde e alegres as pessoas queridas, em especial o meu querido Tio Neco, a Ana Arcele, a Dona Vanilda e o Vitor Alexandre! Muitas outras deixaram um vazio por suas ausências! Eu esperava encontrar pessoas queridas da Praia do Sapê, do Sertão da Quina... Em vão busquei o amigo Hélio Chinelato, que está em Ubatuba por estes dias. Também senti a falta do Grupo Cantamar, do amigo Júlio e do pessoal da Aninha Fernandes que também percorreu casas nesse período.

    Aproximadamente nove grupos ainda se mantém, não perdem a ocasião para possibilitar um espetáculo singular, de longa tradição. Porém, apenas três se apresentaram na Igreja Matriz: o do Centro, da Paróquia Exaltação da Santa Cruz, sob o comando do Beto, o do Itaguá e o dos Mineiros de Ladainha, do bairro da Bela Vista. Lamentamos os fatores que provocaram a ausência dos demais grupos. Creio que o recado do Rogério foi dado e requer o empenho de todos. Afinal, além da devoção, também pode se tornar um evento que atrai turistas. 

      O turismo cultural pode e deve ser melhor trabalhado em nosso município. Não podemos nos esquecer do saudoso Ney Martins que foi o grande incentivador nessa direção. Agora... 

        Valeu, Rogério! Valeu foliões!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

OS HERDEIROS CAIÇARAS

Higino, Solange e Élder e a criação de mexilhões (Arquivo JRS) 

               Aproveitei esses dias para reler alguns papéis guardados. Geralmente são anotações de conversas, curiosidades, causos e histórias de gente que eu gosto. Entre as preciosidades também têm relatórios espontâneos, de pessoas que querem expressar suas experiências. Selecionei alguns que foram escritos por adolescentes. Eles são simples, mas guardei-os porque são reveladores de traços da nossa cultura caiçara. Hoje, pensando na comemoração do Dia dos Santos Reis, na tradição que continua entre os caiçaras, apresento três desses relatos.

              1-  “Meus avós sempre moraram na Praia da Almada. Meus pais e meus tios nasceram lá também. Eles têm uma dependência total de onde vivem por sempre viverem no mesmo lugar.
               O sotaque deles é muito diferenciado e muitas das palavras são “inventadas”, coisas que só os caiçaras entendem. Por exemplo: cóxa é dor de barriga, rumô é barulho etc.
               O padrão cultural é de uma vida bem simples. Muitas vezes comem o que o marido (pai de família) pesca. Comem peixe com banana, fazem pirão (que é feito com caldo de peixe). É basicamente no peixe que se baseia a culinária.
               Os caiçaras fazem redes e canoas para a pesca. As roupas são bem simples, andam sempre de chinelos e com calças arregaçadas (enroladas) até perto dos joelhos.
               As famílias são grandes, numerosas”.

            2-   “Os caiçaras são pessoas com uma cultura muito forte, que têm grande relação com a natureza que está à sua volta. Porém, estão se enfraquecendo, principalmente depois da chegada, em maior número, de pessoas de outros lugares, de gente que não pertence a esta cultura.
               Os caiçaras, no auge da sua cultura, viviam basicamente do convívio harmônico com a natureza. Traços desta cultura são a alimentação, que é muito baseada em peixes e frutos do mar, e, as brincadeiras que vêm desde antigamente.

               O sotaque caiçara é bem legal porque a fala é bem rápida”.

             3- “Ser caiçara vai muito além de apenar residir na pequena Ubatuba. São poucos os moradores que mantém e repassam a cultura, os costumes e as lendas folclóricas da região.
                A tranquilidade de raiz, o pé na areia, o dom da pescaria, peixe com banana, camarão e até mesmo o surf não são para qualquer um, e passam despercebidos no dia a dia.
                Caiçaras geralmente  são os de mais idade, os que conhecem as lendas locais. Se vestem de forma bem simples. Chapéu e chinelos fazem parte dessas pessoas que, quando crianças, brincavam de amarelinha, de passa anel, seis marias, bolinhas de gude...ao invés de viver conectado no mundo moderno da tecnologia.
                “Vosmicê” e outras palavras tão em desuso ainda aparecem entre os caiçaras. O pronome de tratamento “vós” sempre esteve presente no vocabulário da minha bisavó caiçara.

                Essa cultura, o jeito do pescador, o linguajar, atualmente, aos olhos dos jovens modernos, talvez chegue a ser engraçado. Assim, com o tempo, a cultura vai se perdendo e ficando nas lembranças dos caiçaras e nas bibliotecas”.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

QUE VENHA!

Praia Martim de Sá, onde morava o Tio Garcêz, na metade do século XX. (Arquivo histórico)

                Chegou o novo ano! Já estamos em 2015!
                Comecei o primeiro dia do ano com quem mais amo: a minha família! No meu espaço, assim que o dia amanheceu, fui cuidar das plantas e dar uma arrumada no quintal. Fiz podas, enterrei galhos e folhas, transplantei mudas, colhi algumas frutas e varri a calçada.
                A minha calçada, assim como muitas, tem árvores e outras plantas menores. Acredito ser muito importante a harmonia proporcionada pela natureza. E quem dos passantes não merece uma sombra em dias tão quentes?!? A cada vistoria que faço nos modestos canteiros da calçada, recolho um monte de lixo: são garrafas, sacos plásticos vazios ou com fezes de cachorros, copos descartáveis, latas de alumínio, tubetes de crack etc...etc... Ou seja, considerando a repetição ao longo do ano, deduzo que são contribuições da vizinhança, de pessoas sem educação e sem respeito ao(s) espaço(s) do(s) outro(s). A casa de gente assim deve ser igual o quê? Imagine a convivência com gente assim! E como fica a perspectiva de luta por um mundo melhor, tendo esse tipo de “parceria”? Resumindo: se nem com o próprio lixo conseguem um comportamento adequado, uma solução civilizada, como poderá decidir encaminhamentos políticos para a realidade desde o entorno? “Miséria cultural!”, exclamava o Mestre Américo. Nos idos de 1970, analisando os rumos dos negócios imobiliário, dos aterros dos terrenos, das ocupações de áreas impróprias e da destinação do lixo em nossa Ubatuba, ele anunciava a formação de uma mentalidade muito diferente da cultura que era natural daqui, a enxergar os recursos naturais de outra forma. Aqueles primeiros trailers e barracas que se instalavam na Praia Grande, segundo ele, eram “uma mostra do que virá nas próximas décadas”. E acrescentava: “Quem viver virá”. Essa mentalidade agora está posta! Parece que de pouca coisa valeram/valem as aulas e as propagandas esclarecedoras em torno do meio ambiente e do valor da vida.
                Muita gente não percebe a interdependência entre tudo (animais, rios, mar, restinga, mangue, homens...) que forma a diversidade na nossa terra. A devastação é encarada como normal e inevitável. A indústria também segue um modelo inconsequente. “O que importa é o lucro”, dizem muitos. Não foi assim que eu aprendi dentro da minha cultura caiçara. Lembro-me que até condimentos, especialmente pimenta, não eram usados no preparo dos frutos do mar devido à crença de que disso resultava a diminuição deles na natureza. E o que dizer do respeito aos ciclos dos animais e dos peixes?
                Contra pessoas que destoavam de um viver mais fraterno, que davam passos para provocar as desuniões, a saudosa Tia Izolina tascava: “Praga eu não rogo, mas bom fim não há de ter”. No fundo, era versão similar ao “Deus dará aquilo que merece gente assim. Ele é justo”. Eu não quero ser radical! Quem sabe não está certo pensar positivamente no bordão oficial anunciado neste primeiro dia do ano, ou seja, no “Brasil:  Pátria Educadora”?

                Vamos apostar na educação a partir da convivência nesse nicho ecológico (entre a serra e o mar) que possibilitou o nascimento da cultura caiçara! Se valendo da época, onde as Folias de Reis percorrem as casas e se preparam para o evento do próximo Dia dos Reis (06/01), não vamos fazer como Herodes e “ensinar às avessas do caminho”. Enfim, começo o ano de 2015 acreditando que devo fazer bem a minha parte a começar pela minha casa e arredores. É o que desejo a todos para a nossa própria felicidade. Que venha tudo de bom! Um abraço.