segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

GENTE QUE FAZ


Frutos do caminho do mar (Cerâmica  na Cocanha- Arquivo JRS)

                    Olga: Seja bem-vinda ao nosso lar!

          Faz parte do meu ser sempre tentar perceber algo mais, buscar coisa que não se apresenta: querer enxergar, ir além do ver. Por isso meus olhos são inquietos. Ao avistar uma pessoa, por exemplo, alguns detalhes sempre me marcam: pode ser o olhar, ou o sorriso, ou o jeito desconfiado, ou a afabilidade, ou a firmeza, ou a disposição de escutar sempre, ou a curiosidade, ou a sensatez... Outro exemplo: ao firmar a vista numa planta a primeira coisa que me atrai são as folhas, caso não tenha  flores. As linhas de uma folha me levam a me lembrar do Vovô Estevan, de suas histórias quando éramos crianças. Numa ocasião, estando debaixo de uma amendoeira, na praia do Perequê-mirim, ele, assentado na areia, com uma folha de amendoeira na mão, assim começou a história:

               O mundo é muito grande, mas igual esta folha, ele é cheio de caminhos...”. E mostrava as veias na folha amarelada que segurava. “Tem estradas largas, que passam carros, tem aquelas que passam animais e gente... Tem os caminhos que passam gente e bicho do mato, tem as trilhas de bichos, tem os carreiros de formigas, tem os brilhos gosmentos por onde passou lesma... Tudo é isso é caminho deste mundo!
               O meu finado pai, Francisco Félix dos Santos, dizia que os antigos Félix, antes de viverem na Caçandoca, viviam na Bahia. Foi de lá, de Ilhéus, que três irmãos, seguindo outras direções de caminhos, vieram parar aqui, na nossa cidade. Chegando, cada um escolheu um caminho: um foi se estabelecer no Sertão das Cotias, no Iriri (hoje Rio Escuro), outro preferiu se esparramar pelo Morro da Formigueiro ( depois Morro da Quina e hoje Sertão da Quina) e o terceiro se plantou na Caçandoca. Deste viemos nós! E vocês, com toda certeza, vão seguir outras veias da folha, vão viver coisas maiores que eu e os antigos que já são finados!.”

               Os caminhos, penso agora, servem para distribuir sabedoria pelo mundo: aprendemos e ensinamos conforme vamos nos aventurando nas andanças. Assim como as veias das folhas, eles são muitos e permitem infinitos encontros e reencontros. É a diversidade que nos enriquece. Ainda bem!

               Hoje, aniversário do amigo Jorge, grande amigo baiano que, “seguindo as veias da folha” veio se assentar em Ubatuba,  cabe a mim lhe apresentar uma de suas poesias:

GENTE QUE FAZ

Na Bahia,
Quem não canta,
Assobia;
Quem não planta,
Rega flor;
Quem não samba,
Faz tambor;
Quem não manda,
Tem apito;
Quem não pesa,
Mede em litro;
Quem não reza,
Se persigna;
Quem não lê,
Grafa e assina.

        Parabéns, Jorge! Parabéns, Joana! Parabéns a vocês pela família que muito estimamos! Muita força para todos nós nos caminhos do próximo ano!

               Feliz aniversário Caio Cabral! 

sábado, 29 de dezembro de 2018

COBRA QUEBRA FEITIÇO

Viva Dona Gertrudes! (Arquivo JRS)


               A tarde anunciava trovoada passageira quando eu já estava na casa da Dona Gertrudes, que festejava os seus quase cem anos anos. Todo final de ano é assim: reencontro-festa dos parentes e amigos, onde a gente sempre aproveita as agradáveis prosas de caiçaras de outras gerações. Não demorou para vir chuva barulhando e coriscando. “É coisa rápida, passa logo. Espere só estrondar umas duas ou três vezes”, falou do meu lado uma figura garantida de todo ano: o Ataliba, caiçara do lado do Norte, mas que há muito tempo se mudou para o centro da cidade. Depois de quarenta e sete anos trabalhando embarcado (na pesca e cuidando de lanchas de passeio), ele se aposentou.

               Conversar com o Ataliba é ouvir de tudo, mas o que mais me agrada é ver as suas emoções ao contar coisas do mar, de tempo em que viveu embarcado em grandes barcos pesqueiros:

               “A gente pescava desde o litoral capixaba até quase no Rio Grande do Sul. Tinha lugar de pesca que ficava por volta de vinte horas de viagem até o porto mais próximo. No Rio de Janeiro, nas principais fábricas de sardinhas enlatadas, eram toneladas e toneladas de sardinhas que a gente deixava! Aqui mesmo em Ubatuba, o barco esvaziava para abastecer as salgas do Altino Maciel, do Igawa, do Gitano... Era fartura de peixe! Até mesmo para fazer adubo a gente entregava peixe! Imagine você que a caixa de sardinhas, pesando oitenta quilos, era entregue a cinco cruzeiros (Cr$ 5,00). Era barato demais! Agora, veja só, se acabou o peixe. Imagine entregar peixe até para adubo!  Eu já dizia naquele tempo que um dia isso tudo se acabaria. Era perseguição demais aos coitados dos peixes!”.

               Se recordando de coisas impressionantes, o Ataliba contou:

               “Tem gente que tem um poder especial. Eu me lembro de um homem que passava de vez em quando na Rampa (área dos bares e mercearias e do comércio de pescados, na Barra dos Pescadores) ajustando balanças. Ele, com apenas dois dedos, envergava enormes pregos, encostando ponta com cabeça. Uma vez, estando ele na peixaria do Caetano, eu lhe dei um prego, desses de 22 por 48, só para ver a proeza que tanta gente admirava. Assim, diante dos meus olhos, sem fazer força nenhuma, o prego se dobrou. Fiquei bobo. Em outra ocasião, tinha um sujeito com um galo chamando a atenção de quem zanzava por ali, na ponte que vai para o Perequê-açu: ele fazia um galo arrastar tranquilamente uma viga de 12 [6 x 12 cm], de peroba. E não era pequena não! Imagine você! Se ajuntava um monte de gente para ver aquilo: um galo arrastando uma viga como se não fizesse nenhum esforço. De repente, chegou o Cristino, do Perequê-açu, trazendo um cacho de banana. No meio do cacho vinha uma cobra, mas ele não sabia. Quando passou perto daquela gente toda olhando o galo, ele quis saber o porquê. Logo as pessoas lhe disseram que a ave arrastava uma viga sobre a ponte pra lá e pra cá. Ele olhou e viu outra coisa: o galo puxava furiosamente era uma palha de esteira, bicava, largava, tornava a arrastar. Então, veja você: a cobra, que estava no dormindo no cacho de banana quebrou o feitiço. As pessoas estavam encantadas, viam uma coisa, mas era outra. Imediatamente o Cristino disse: ‘Vocês estão cegos? Eu só tô vendo um galo brincando com uma palha de taboa, de esteira velha!’. Na verdade, o dono do galo tinha poder, um magnetismo forte. Ele fazia todo mundo enxergar uma coisa que não era. É, meu amigo, cobra quebra feitiço. Aquilo confirmou o que os nossos velhos já diziam, não é mesmo?”.

               Parabéns, Dona Gertrudes! Valeu mais um ano e uma oportunidade de reencontrar toda essa gente boa! Que todos  nós tenhamos um bom ano próximo.                                                                             

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

LENDA DA SEREIA (II)

Sereia  sob encomenda (Arte: Maria Eugênia - Arquivo JRS)


               Na prosa de Idalina, Moisés, continuando o assunto da sereia:

               “O tempo foi passando... O jovem pescador caiçara retomou o gosto pela vida, se casou com Emília, novamente se empolgou pela pescaria. Numa noite, em tempo de tainha encostando, vindo do Sul, o vento fez os pescadores, que estavam no correr da linha da Ponta Grossa, procurarem o rumo da praia  do Itaguá. Foi quando ouviu-se um canto monótono, mas suavíssimo, chamando por um amor ausente. Os homens, extasiados, procuravam distinguir através da escuridão, de onde vinha o som tão doce e suave.
               A ‘Norma’, assim chamava-se a canoa do Guilherme, foi ficando para trás, e Brás, endiabrado com sempre, gritou: - ‘Ouve, Guilherme! Tu já esqueceste da mulher-peixe? Olha que ela está te chamando!’.
               O rapaz não respondeu, Se os seus companheiros pudessem enxergar na escuridão, veriam que, pelas faces do moço pescador, as lágrimas desciam lentamente, enquanto seus dedos crispados, comprimiam contra a palma da mão um pequeno amuleto contendo uma oração da Virgem Maria, para que ela protegesse contra o desejo da sereia, escapando do encantamento. Tinha sido um presente da esposa, apavorada com o que o Brás, muito em segredo lhe contara. E ela, devota de Nossa Senhora, entregara seu noivo nas mãos de Deus e de sua bendita Mãe... A partir dessa noite, os pescadores não mais contaram com Guilherme para a pesca da tainha. Renunciou de vez. Jamais retornou ao mar”.

               Idalina, indagou curiosa: -  ‘E de que ele foi viver depois, Moisés?’.

               Moisés, todo sorridente explicou: - ‘Foi trabalhar na roça, teve muitos filhos. Depois de velho contava histórias aos netinhos. Olha, dona: o mais moço dos filhos dele foi meu avô. Só que nunca teve a sorte do Guilherme. Nem ele nem eu. Falta de sorte, dona! Também meu pai e eu sempre fomos feios como o diabo! Nenhuma sereia cantaria para nós!’.

               E Idalina confessa que disse isto para agradá-lo:   - ‘Até que não. Se você continuar contando lindas histórias como esta, vai ver como ainda fica bonito'."
              


terça-feira, 25 de dezembro de 2018

LENDA DA SEREIA (I)


              
Coisas medonhas do mar (Museu  da Xilogravura, em Campos do Jordão- Arquivo JRS)
       O mar, todo caiçara sabe, tem coisas medonhas também. Dona Idalina Graça, andeja e especuladeira por natureza, escutava muitas histórias nas rodas de prosas que, geralmente, aconteciam nos jundus, em Ubatuba. Também tinha gente que a procurava solitariamente para desabafar sabedoria caiçara. Idalina anotava tudo o que podia com muitos detalhes. Até que alguém descobriu a sua lata de textos. Daquela lata de biscoitos saiu esta história.

               Moisés, numa manhã garoenta de Natal, depois de tomar seu café com peixe seco assado e farinha de mandioca, se encontrou comigo defronte a ruína do solar colonial da família Grandeiro, no Cruzeiro de Anchieta. Logo puxou a lenda das sereias: “Antigamente, quando eu ainda era menino, toda esta praia tinha laranjais e algumas casinhas espalhadas entre o verde das árvores. Meu pai tinha a dele, um pouco maior que a de seus companheiros, pois éramos cinco irmãos. Ali, onde a senhora está vendo, havia um rancho de canoas. Nele morava o preto Venâncio. Dormia enrolado nas velas que lá se guardava. Nós, os garotos da vila, vínhamos em busca do Venâncio, em noites chuvosas, para o bom preto nos contar histórias de fantasmas, duendes e sereias. É com saudade que recordo essa meninice abençoada! A senhora havia de ver o silêncio que reinava entre nós, endiabrados moleques da vila, encarapinhados nos rolos de corda, para ouvirmos, embevecidos, a voz do 'Vovô Venâncio', como o chamávamos pra agradá-lo. Naquela noite em que ele nos contou a Lenda da Sereia, o mar estava sereno e a voz de um pescador retardatário, vinha até nós, trazida pelo vento que soprava na mansidão, em dolente e apaixonada canção de amor.

               O velho, após pigarrear, contou que numa tarde ensolarada, estavam os pescadores na praia à espera das tainhas. Formavam um grupo alegre, troçando uns com os outros. Apenas Guilherme   parecia  distante.  Um  dos  rapazes,  mais  íntimo,  deu-lhe  um  beliscão, dizendo: - ‘Acorda, Guilherme! Olha que o peixe está no lanço! Talvez as tainhas tragam a sua sereia’.

               Guilherme, um jovem animado para tudo, era um ótimo pescador. A modificação em seu ser aconteceu após um acidente numa noite, quando um vento forte irrompeu de repente, causando a sua queda na água, bem no meio do largo, bem depois da Ponta do Patieiro. Por coragem e força foi resgatado do mar bravio, mas só recuperou os sentidos quando chegou à praia, perto da Barra da Lagoa. Porém, nenhum deles, nem por sombra, imaginava que o jovem pescador ficaria com a alma marcada por uma estranha dor pelo resto de sua vida. Tornou-se melancólico, triste, sem ânimo algum para fazer além do necessário. Até da paquera se afastou, causando muita dor na jovem Emília que, ao inquirir o amigo Brás, escutou o seguinte;  - ‘Emília, você sabe que eu não acredito em sereias, mas estou quase acreditando que o nosso amigo viu alguma coisa naquele acidente, quando quase se afogou. Acredito que ele está enfeitiçado’.

               Brás, condoído pela garota, foi conversar a respeito disso com o Guilherme. Este, tocado pela preocupação do amigo, falou: - ‘Vou te contar, Brás, tu és um dos que não acreditam na existência de sereias, mas eu a vi, e o pior de tudo, é que me apaixonei pela mulher-peixe. Por que não me deixaste morrer naquela noite? Eu tivera morrido em seus braços mais alvos que a própria neve!’”.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

ROSAS NO NATAL

Espírito de Natal (Arte: Estevan)


               Logo vem a aurora de um novo dia. Estou a pensar nos meus, na nossa vida, nos afazeres que me aguardam. Também penso nos amigos que compartilharam das alegrias e dos questionamentos que passei (e que vou passando!). Natal é nascimento para o bem. Natal é todo dia que a gente se compromete em escapar da idiotice, da estupidez. Natal é todo dia que temos de enfrentar absurdos a direcionar para o individualismo, para atitudes contra os mais desfavorecidos. Natal é recusar discursos a favor dos opressores. Pobres miseráveis!        Natal é natal: eu nasci para isso!

               Natal, comemorado como nascimento de Cristo, primeiramente era grande festa em honra ao Sol, a coisa mais divina notada pelos antigos. A vida só é possível porque este existe. Ao predominar o cristianismo, os rituais pagãos foram corrompidos. A corrupção de valores originais é o recurso de quem deseja oprimir. Não foi assim, empregando tal técnica, que neste ano assistimos a um show de insanidades a favor de um candidato racista, anti-intelectual, defendendo a homofobia etc.? É um natal de absurdos, onde o ódio, do verbo odiar, se fez carne.

                 O meu natal é a minha existência!

               O natal de Cristo, conforme está descrito teologicamente, é para os mais desfavorecidos! Por isso é Natal! Então, o que justifica tanta gente adotar a posição do opressor, o discurso de quem quer sapatear em cima dos desfavorecidos? É, gente! Literalmente se atiraram no abismo! Conforme já disse alguém, “tarefa árdua será escavar de colherinha para achar um caminho de volta”.
               Enfim, o meu natal é o Natal, testemunhado por pobres pastores, numa humilde gruta. Por isso escolhi a poesia  da Juraci Faria como pequena dose contra o perfeito pesadelo do nosso país.

GRANDES ROSAS

A pequenina casa
de meio lote e tijolos baianos
sem reboco e sem pintura
estampa sua riqueza na porta da rua:
uma roseira.

As rosas desgalham-se
sobre o muro
sobre o telhado de amianto
sobre a mansidão
de quem se senta à porta
e sorri para o entardecer.

Na casa pequenina
só desabrocham grandes rosas.
Na casa pequenina
só habitam grandes almas.
Na casa pequenina
só cabe a riqueza divina.

É isto: viva um Bom Natal!

sábado, 22 de dezembro de 2018

RASTROS DE ARTISTA

Rastros de um (a) artista (Arquivo JRS)


               José Cirineu Coelho, pintor de placas do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), na década de 1970, fazia a nossa alegria ao pintar lindas paisagens em azulejos, tampas de latas, madeiras, paredes etc.

               Meu pai (apelidado de Carpinteiro) e Cirineu eram amigos de bar, de prosas e de farras. Por isso, sempre éramos presenteados com alguma arte do pintor que se dizia natural da cidade de Santos. Ao receber elogios, assim agradecia: “Gostei das suas bonitas palavras, mas precisa ver os quadros da minha esposa. Ela é japonesa e pinta muito bem!”.

               Um dia, ao saber que o padre passava de vez em quando lá em casa, Cirineu prometeu pintar um quadro da Santa Ceia, onde Jesus fazia uma refeição com os seus apóstolos.  Foi quando contou a seguinte parte que me deixou encabulado:

               “O time de Jesus era meio capenga, teve até um traidor, mas na imagem, na mesa devidamente preparada, eles se comportaram direitinho. Só não apareceu o Benedito e Mirashima”.

               Aí, meu pai que já estava indo além da conta no conhaque, refutou:

               “Alguma coisa tá errada, Cirineu. Se entrar mais dois, fica quatorze. Está escrito que eram doze apóstolos, não é mesmo? Ou tô errado?”

               Então o pintor continuou:

               “Você sabe, Carpinteiro, nem tudo se deu conforme está escrito. Na Bíblia está registrado doze porque é um número simbólico. Representa desde o tempo mais antigo o ponto máximo do Sol, que ocorre apenas duas vezes por ano. Por isso que o doze foi escolhido. Não vê que o ano também é dividido  em doze? Quem faz a escritura entende mais coisas que nós, sabe que é importante usar símbolos fortes. Quem me contou isso foi o Toninho Preto, lá na barraca do Tião Caçuroba, numa partida de truco. Ele sabe de muita coisa. Então... essa história não é da minha cabeça! Ele me explicou que Benedito, preto como ele, era o cozinheiro, estava direto no lida com as panelas, não tinha tempo para ficar fazendo pose. O outro, que andava sempre mirando a sua máquina fotográfica em cima de tudo que envolvia Jesus, tinha os olhos puxados. Isso! Mirashima era um japonês! Entendeu agora porque ele também não estava na cena, em volta da mesa? É graças ao talento para fotografar tudo desse povo que nós temos a linda imagem da Santa Ceia! Diga ao padre Pio que eu vou caprichar num quadro pra ele. Só que eu vou acrescentar os dois que ficaram de fora. Acho muita sacanagem não corrigir isso depois de tanto tempo. Se há erro, vamos acertar, né?”. E concluiu se dirigindo ao papai: “Tô certo ou não tô certo, Carpinteiro?”.

               Estou rindo agora da criatividade dessa genteEu me lembrei dessa história depois de achar, num local abandonada, num resto de parede, imagens deixadas, rastros de um (a) artista. Será que, em algum lugar, alguém tem guardado alguma das obras do Cirineu? 


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

TUDO DENTRO DA LEI



O meu painel em papel reciclado (Arquivo JRS)


               A minha infância foi feliz, apesar de viver muito pobremente (no sentido de comodidades, de facilidades tecnológicas etc.) nas diversas praias e morros da vivência em família. Mas me orgulho de ter parte do mérito pela preservação de tantas coisas de valores ambientais e culturais proporcionadas à minha esposa, aos meus filhos e amigos.

               Os meios de sobrevivência do povo caiçara, desde muito tempo, estavam ligados à terra (cultivo, caça etc.)  e ao mar (peixes, mariscos etc.). Então fomos matriculados no sistema educacional escolar. Nas diversas escolas fomos aprendendo a ler, escrever, fazer contas. Nelas aumentamos a nossa socialização e a nossa compreensão de mundo. Novas leituras se fizeram necessárias para entender os fenômenos novos para nós, tais como especulação das terras, construção de muros entre as posses, abertura de estradas, aterros de mangues e de gamboas, construção de mansões sobre as costeiras etc. Assim entendemos que alguns se enricam às custas de outros que empobrecem. Porém, há pessoas que, engajando-se em movimentos sociais e em partidos políticos, tomam as dores dos marginalizados, dos excluídos das riquezas da nossa Terra. Desse modo vão aparecendo as leis favoráveis aos trabalhadores, àqueles que foram marcados apenas para gerarem riquezas a outros... Ou que já nasceram excluídos, dando a vida aos poucos, como um aborto a longo prazo.

               Agora, ao findar de mais um ano letivo, eu faço um balanço: pelas redes sociais e pela televisão os pobres são controlados por aqueles que continuam garantindo seus lucros a qualquer custo. As leis, pouco a pouco, pela falta de reflexão da maioria e pela ganância de mais um tanto, se voltam contra os excluídos. Qualquer ajuda de custo de filho de juiz ultrapassa de longe o salário de um professor. Um salário mínimo, frente ao aumento de preços de tudo, é uma vergonha, mas as leis vão continuar arrochando a vida dos trabalhadores. “Tudo dentro da lei!”.
               Neste momento estou me lembrando de um filme (Tempos modernos) de Charles Chaplin, onde, no início da fita, tal como uma manada de animais desesperados em direção a um curral, os trabalhadores adentravam à fábrica. Animais em série, agindo da mesma forma, sendo conduzidos assim. Ou seja, sem reflexão. Para quê? Para não perceberem que suas vidas são sugadas em benefício de poucos.  Se tornam instrumentos de manobra pela massificação cultural.


               Foi no objetivo de mostrar que a escola pode fomentar reflexões que induzam a outras possibilidades que não as de exploração do ser humano e de destruição do planeta que nós, da área de Humanas do CEEJA – Caraguatatuba, apresentamos no mês de novembro o tema do Trabalho na era da globalização. Pelos semblantes no momento da oficina e seguintes, desconfio que a uma parte do que foi semeado caiu em solo rochoso, castigado pela ideologia dominante. Pode ser que  todo trabalho não dê em nada, não vá germinar. Pelas circunstâncias, sonhar com frutos nem é utopia. Vai comprovando a frase da pensadora Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

sábado, 15 de dezembro de 2018

CADÊ ESSA PASSARINHADA?


            
Arte na Mococa (Arquivo JRS)

         Hoje, devido às exigências impostas pelo consumismo, deixamos de apreciar muitas coisas, desde plantinhas mimosas até enormes e frondosas timbuíbas, desde pequenas abelhas do mato até as majestosas mamangavas. Ei, para aí!  Quem conhece mamangava?

               Mamangava é um inseto, uma abelha. É grande, tem das amarelas, das pretas, das riscadas e deve ter mais outras variedades. Geralmente essa abelha mora em toco de pau, em madeira que está apodrecendo. Tem também aquelas que constroem seus ninhos no chão. As mamangavas dos tocos não são numerosas, geralmente são mansas. Também produzem mel, mas dizem que não é tão bom assim. Todas picam e dói demais. Mas por que eu entrei nisso, neste papo de mamangava? Ah! Foi porque o tio Neco, tempos atrás assim me explicou:

               “Quando eu era criança, lá no Sapê, tinha uns passarinhos, do tamanho de uma mamangava, como um tifelinho (cuitelo), que andava em grandes bandos. O nome deles era borrão. Tinha preto, marrom... No meio deles, do mesmo tamanho, tinha uma variedade rajadinha que a gente chamava de oncinha. Eles sempre apareciam em volta da casa, na beira do rio. Faz muito tempo que eu não vejo mais esses passarinhos. Será que não existem mais?”.

               É, titio, pode ser mesmo. Será que morreram porque nas plantações passaram a usar veneno? Ou tem alguma coisa a ver com a água? Lembra-se de que, até bem pouco tempo, a SUCEN (órgão estatal responsável de controlar os borrachudos) envenenava os nossos rios? A água ficava até leitosa, com uma infinidade de peixes morrendo, com camarões e lagostas fugindo da água. Pode ser também porque os loteamentos foram tomando os espaços vitais de muitas espécies de seres do nosso litoral. Que pena! Quantos seres podem ter se acabado de vez! Quem sabe não foi assim que perdemos o borrão e a oncinha!?!
               
                Agora, depois de uma outra prosa com o titio, ele apresentou a boa notícia:

               “O Dito me disse que lá no Sertão do Ingá ainda tem borrão e oncinha. O que não tem, segundo ele, é a maria benedita, aquele passarinho do tamanho de uma corruíra que vivia entre o capim melado procurando grilos e gafanhotos. Essa não tem mesmo!”.

               Assim, estimados observadores de pássaros, corram até o Sertão do Ingá se quiserem conhecer essas e outras espécies. Chegando lá, pergunte pelo Toninho Nicodemos e seu irmão Mané. Gente boa demais! Gente nossa!

domingo, 9 de dezembro de 2018

O NOSSO CAPITAL CULTURAL

Canoas na Barra Seca (Arquivo JRS)


               Parabéns para a minha Gal que, neste dia (10 de dezembro), completa mais um ano de vida.

               Oba! Maria e Estevan estão de férias! Ambos estudam na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Então, com a devida aprovação, apresento agora o trabalho do Estevan, na disciplina de Hidrogeografia. Trata-se de relação entre poema, os objetos estudados na disciplina e a foto exposta (canoas caiçaras na praia da Barra Seca, em Ubatuba).
               Se nos orgulhamos de ambos? Lógico! Nosso filho e nossa filha são o nosso capital cultural!


"Vós, com tantas terras,/ Por que quereis meu pedacinho de céu,/ Meu ranchinho à beira-mar,/ As terras do meu avô,/ Minha escola e meu diploma/ Do ofício de pescador?" (10-15).  SANTOS, Domingos Fábio dos. Peixe-palavra (Poesia caiçara). São Vicente, SP, 2012.
O trecho do poema Protesto Caiçara, de Domingos Fábio, caiçara da praia da Fortaleza, retrata bem o conturbado processo de urbanização ocorrido no município de Ubatuba-SP, e do qual é feito pouco caso, porém até hoje provoca – e cada vez mais – problemas relacionados ao meio ambiente e à sociedade, que afetam diretamente no modo de vida da população, com destaque aos povos tradicionais.

Dos anos 60 até os anos 70, verificou-se um significativo crescimento urbano nas praias de Ubatuba, sendo isso um resultado direto do crescimento do turismo, influenciado pela beleza natural e pela facilidade de acesso por conta das estradas recentemente abertas. Com a emergência do setor de turismo, cresceu a especulação imobiliária em cima das áreas próximas à praia e, no caso do sertão, próximas aos rios. Os caiçaras de então, que viviam predominantemente da pesca, mas também da coleta e da agricultura familiar, viram-se coagidos pela especulação, desapropriação e mesmo invasões, em alguns casos, a migrar para o centro da cidade e para o interior, em áreas como os bairros da Estufa (1 e 2) e do Itaguá, antes ocupados por manguezais com grande biodiversidade e que sustentavam a economia familiar, além de serem adaptados ao regime das águas dos rios Tavares e Acaraú, hoje poluídos e constantemente inundados, trazendo diversos problemas para as famílias mais simples.

O poema aborda diretamente a questão da especulação das terras litorâneas, que foi onde mais se notou o processo de urbanização e construção de empreendimentos imobiliários como condomínios e residências de veraneio de alto padrão: “Vós, com tantas terras” (10). Foi este o principal motor da migração dos caiçaras da praia para a planície litorânea do centro do município e sertões, destino comum dos imigrantes menos abastados atraídos pelas ofertas de emprego relacionados à construção civil e turismo. A perda do espaço pelas comunidades tradicionais ocasionou num desmonte do modelo de sociedade e economia que existia então, que se apresentava numa relação sustentável do povo com a natureza, sem a exploração predatória do mar e da terra, com respeito ao regime dos rios e ao ciclo de vida de caças e pescados. Foram retirados a “escola e o diploma”(14) do “ofício de pescador”(15) de um povo cuja vida era essencial e intimamente ligada à água, seja na forma do mangue, do rio ou do mar, e dessa forma foi retirada sua identidade cultural, o caiçara foi definitivamente colocado na globalização, tornando-se dependente de fatores sócio econômicos que naturalmente não afetariam seu estilo de vida, podendo-se interpretar assim a “escola e o diploma”(14) como a terra e o mar na vida das comunidades tradicionais, e que sem essa relação desses fatores com a vida, é privada ao povo a manutenção de seu estilo de vida, chamado de “preguiçoso” por aqueles de regiões mais avançados na globalização e no modelo de produção capitalista – e principalmente pelos capitalistas em si, que viram naquela área “esquecida” uma grande oportunidade para investimentos e exploração. O Estado também teve decisivo papel na retirada de direitos do povo, ao limitar a pesca, o corte de madeira para embarcações de pequeno porte, dentre outras medidas que provocaram a necessidade do alinhamento do caiçara com o capital, e não trouxeram nenhuma melhoria na questão ecológica do município, sendo que esta só se agrava negativamente a cada dia – o que nos permite inferir que foram medidas com único e exclusivo objetivo de limitar ao caiçara sua cultura, empurrando-o para a globalização.

Referências
SANTOS, Domingos Fábio dos. Peixe-palavra (Poesia caiçara). São Vicente, SP, 2012. p. 20. Disponível em <https://issuu.com/edicoescaicaras/docs/peixe-palavra_revisado_issuu> Acesso em 28 nov. 2018


domingo, 2 de dezembro de 2018

A CASA NÃO ESTÁ ABANDONADA, A VIDA É LUTA QUE SEGUE



               Vivemos momentos difíceis, mas os piores ainda estão por vir. Digo isto porque um golpe contra os avanços sociais se completou com a eleição presidencial. Acabei de ficar sabendo que o meu tio está bravo com os filhos que votaram naquele que foi responsável pelo retorno dos médicos cubanos à pátria: “A minha médica era cubana, foi-se embora por conta das declarações do presidente eleito. Quero ver se eles vão, agora, pagar uma consulta para mim! Sabe quando? Jamais!”.

               Assim como o titio, outros caiçaras e muitos outros pobres já estão à míngua em muitos pontos deste Brasil. Não há atendimento médico suficiente. E quem deve ser responsabilizado? Sim, aqueles que votaram naquele que coroou um esquema cruel, demonizando as políticas sociais que estavam sendo implantadas a partir do governo Lula. Agora, a elite mandante do golpe está feliz novamente. E voltamos a temer o destino da nossa mata (Atlântica), das matas ciliares que protegem nossos rios, dos nossos poucos jundus que  restam, das terras indígenas e quilombolas, das possibilidades de estudos dos nossos filhos etc. Está ou não está ficando pior?

               Eu, em duas ocasiões tive oportunidades (1986 e 1991) de me encontrar com estudantes cubanos, de captar em prosas e debates  o altruísmo daquele povo. Minhas aspirações, a escolha de amizades, além de uma companheira amorosa e esclarecida para o resto da vida,  me levaram a enxergar além da separação das pessoas entre boas e más, em ver os interesses que as movem. Na verdade, é o capitalismo, a partir dos interesses da maior nação capitalista (EUA), que está no comando do Brasil e do mundo. É por isso que o presidente eleito bate continência ao mínimo sujeito que esteja representando a forte nação do Norte. Subserviência total!

               Foi uma resistência ao modelo expoliativo dos Estados Unidos que levou os idealistas cubanos a construírem a sua resistência. Em Cuba você estuda gratuitamente até se formar, não há analfabetos, exporta médicos etc. Um amigo, em viagem por aquele país no ano passado, comentando os muitos momentos, assim se expressou: “Em nenhum momento eu senti insegurança nas ruas e nos lugares cubanos. Não há morador de rua. Tudo é muito limpo e arborizado.  Aproveitei bem a viagem”.

               Agora, tendo em mãos um relato de um padre (João Bosco de Deus), faço questão de pinçar alguns trechos:

Estive nos dias 27/07 a 08/08/2018 em Cuba. Fui com duas amigas aqui da paróquia visitar  a família do nosso amigo Osmaydes que é médico cubano e atende aqui em Nova Xavantina/ MT pelo projeto “Mais Médico” [...] Alguns pontos me deixaram impressionado:
- Estruturas antigas e ultrapassadas nas casas e meios de transportes.
- Certa restrição em relação à alimentação. Não passam fome e não têm miséria. Não têm a variedade e a oferta que temos, mas não têm o desperdício que fazemos também.
- Assumem com muita seriedade e presteza suas funções na sociedade.
- A segurança com que se pode andar pelas ruas e cidades sem violência.
- A grande defesa do governo e do regime  em que vivem.
- A forma intensa com que tratam e reverenciam seus heróis nacionais.
- O grande número de pessoas de religião africana que convivem em comum  com a Igreja Católica. Eles andam todo de branco pelas ruas.
- Povo muito trabalhador. O trabalho é algo que está na “alma” do cubano.
- Por último, destaco a humildade e simplicidade do povo cubano ao mesmo tempo com semblante firme e soberano naquilo que desempenham.
              
               A vocês, meus parentes caiçaras(irmão, primos, cunhado...), que ajudaram no resultado da última eleição por assumirem essa leitura dominante e superficial do mundo, vocês que foram feitos marionetes pelos fios da elite deste país: Quem serão os responsáveis pelo massacre dos mais pobres? A quem vão atribuir culpa quando milhares de jovens tiverem as portas das universidades fechadas? E o controle até mesmo do senso crítico via educação escolar, com punição pelo Estado, está certo isso? Vocês que, graças à mídia, renegam a condição de pobres e se colocam a favor dos ricos vão fazer o que agora?

               Em tempo: Os mais necessitados  já sentiram a falta desses médicos cubanos aqui no meu bairro, no Ipiranguinha. Aviso que a casa não está abandonada, que a resistência continua.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

O COISA RUIM ARFAVA FEITO LOBISOMEM

Jundu da Mococa (Arquivo JRS)


               A praia da Mococa é linda! Suas histórias mais ainda!

               Quando criança, a Mococa me causava medo devido às histórias de assombração que os mais antigos contavam. “Ali, meu filho, é lugar que ninguém gosta de passar depois que escurece. Sempre tem alguma coisa pra assombrar a gente naquele lugar. Sabe por que isso acontece? É porque no morro que separa da Cocanha, bem lá em cima, era um cemitério dos índios”.  E eu, especulador que sempre fui, queria saber se morava alguém na tal praia da Mococa. Como era possível gente corajosa, capaz de ficar num lugar assim, sempre vendo coisas medonhas? “Mora sim. Tem gente, mas mais por sertão, onde era uma fazenda no tempo dos escravos. Tudo aquilo é da família dos Pimenta, mas agora pouca coisa restou da grande fazenda”.

               Nos dias de hoje, quando passo pela Mococa, faço questão de parar no jundu e apreciar a beleza de tudo aquilo. Ah! Aproveito para elogiar o grupo que está lutando pela preservação daquele jundu, “lugar sacrossanto”, conforme me ensinou o saudoso Antônio Maior, caiçara do Ubatumirim. Pobres daqueles que não sabem desfrutar do jundu sem destruir! Essa luta também é minha, amigos! Força, Pedro Caetano! Força, Djalma! Muita força a todos que estão contra o poder destrutivo das empresas que querem tomar essas áreas nobres para construírem prédios e condomínios fechados. Muita energia para enfrentarem um turismo predatório. Que as assombrações vos ajudem nessa tarefa.

               Ontem, na pausa no jundu, fiquei imaginando a vovó Martinha contando:

               “O Pedro Barrasseca, numa ocasião, vindo da cidade, assim que atravessou a barra da Cocanha, parou debaixo da ingazeira para arriar o saco de compras e descansar antes da virada do morro. Logo veio um arrepio no corpo. Do canto da Mococa, do Canto Manso, uma pessoa veio vindo e também parou. Parecia estar muito cansado. O Pedro puxou conversa porque sempre foi bom de prosa. O outro arfava sem que se pudesse entender nada. Conforme afirmava o Pedro, era gente velha, já franzida. Era homem, parecia que era homem. Os olhos não brilhavam. Também da cintura pra baixo não se distinguia nada. Só arfava como se estivesse morrendo de cansado. De repente, um grito imitando pio de curiabô pareceu vir do alto do morro, onde está o velho cemitério: ‘Sua mãe morreu e você desceu. Sua mãe morreu e você desceu. Sua mãe morreu e você desceu..’. E, seguindo a notícia, como se voasse a piçarra e o mato baixo, na escuridão aquele que arfava se foi morro acima. Na mesma hora o Pedro jogou a carga nas costas e não sabe de onde tirou tanta força para correr até o Rio da Prata, onde morava. Foi chegando na porta e já caindo desmaiado. Sua mãe logo viu que era caso de assombração. Com um galho de guiné logo foi benzendo e dizendo suas rezas até que o filho voltasse ao normal e contasse tudo”.

               E vovó, sentada sob o pé de aroeira do terreiro, no escurecer, encerrava dizendo que “o coisa ruim arfava feito lobisomem. Credo em cruz! Coisa assim nunca que vi”.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

BONITAS VITÓRIAS QUE MEU POVO TEM (II)

 
Caiçaras resistentes (Arquivo Rê)

       Parece que foi ontem que ficamos a par da luta dos trindadeiros. Em Ubatuba, no ano de 1980, a Pastoral da Terra, que ensaiava os primeiros passos, espalhou panfletos, fez reuniões para concretizar a solidariedade aos caiçaras da nossa vizinha Paraty. Eu me lembro muito bem da Priscila participando de um encontro conosco no Sertão da Quina, na Casa de Emaús. A juventude caiçara desse tempo se engajou e fez a sua parte na resistência. Agora, a cada mês de novembro, vale a pena revitalizar a memória, celebrar a vitória daquela comunidade e de seus apoiadores desde os primeiros instantes, quando casas foram destruídas e famílias deixaram seus rastros em direção ao bairro da Estufa, em Ubatuba. O saudoso Seo Júlio, se lamentava em suas prosas com o vovô Estevan, do seu torrão natal abandonado por força dos jagunços. “A gente não carecia de dinheiro, não; com um dia de caminhada a gente chegava em Paraty, onde trocava a farinha e a banana por querosene ou pelo que precisasse, às vezes um pano pra mulher fazer vestido”.

               A jornalista Priscila Siqueira, em seu livro Genocídio dos caiçaras, deixou registrado a histórica vitória dos caiçaras da praia de Trindade, no litoral fluminense:

               Uma solução considerada única na luta de terras no país foi alcançada em 5 de novembro de 1981, quando 71 famílias caiçaras moradoras em trindade, praia situada a 28 quilômetros ao sul do centro de Paraty, assinaram o título definitivo de sua propriedade. A assinatura do documento foi feita numa das salas da escola isolada de Trindade, na presença de posseiros, de seu advogado  Jarbas Macedo Penteado e de José Pascowitch Neto, dono da Cobrasinco, acompanhado de seu advogado.
               A Cobrasinco é uma empresa de capital nacional, especializada em construções, que em junho de 1981 comprou por três milhões de dólares os títulos das terras da praia de Trindade, da ADELA  -  Atlantic Development Group for Latin America, holding composto por 227 empresas multinacionais, com sede em Luxemburgo. Durante mais de nove anos os caiçaras de Trindade resistiram a esta poderosa Holding, testemunhando uma das mais belas histórias de luta dos oprimidos por seus direitos, pela posse de suas terras e por sua dignidade de pessoas humanas.

terça-feira, 6 de novembro de 2018


QUEM PRECISA DE UMA ESCOLA ASSIM?

A mídia  pode doutrinar (Charge da internet)


               Estou agora apelando por uma questão urgente: trata-se de um projeto, de uma coisa medonha chamada Escola Sem Partido.

               Da cabeça de alguém saiu essa ideia de que a escola não deve conduzir os alunos no desenvolvimento de uma consciência crítica, aceitando um monte de conteúdo sem questionar e recusando outros pontos de vista a respeito dos mesmos. Pior ainda: tem gente  reforçando posições dúbias até mesmo em História do Brasil para prevalecer pontos de vistas poucos virtuosos (de militarismo, de patrão inconsequente, de machismo, de racismo, de homofobia etc.). O argumento desse projeto é que “professores estão doutrinando para o comunismo, sobretudo a partir das universidades públicas”. Porém, os resultados das eleições demonstraram o quanto isso é falacioso. Na verdade, quem doutrinou de verdade foram as igrejas (desde as populares, nos nossos bairros, até aquelas conduzidas por pastores milionários). Engraçado, mas... Por que não tem um projeto chamado Igreja sem Partido?

               Imagine você que, ao falar da Independência do Brasil, o professor acrescenta a seguinte fala, devidamente documentada:

               A primeira esposa de D. Pedro I se chamava Maria Leopoldina. Era uma mulher muito culta e exerceu uma grande influência política. Numa ocasião, precisando viajar para São Paulo,  o imperador a nomeou Imperatriz Regente Interina do Brasil. Não havia ninguém melhor do que ela para um cargo de tamanha confiança. Decidida, sabendo o que era melhor para o nosso país, no dia 2 de setembro de 1822, assinou o decreto que separava oficialmente o Brasil de Portugal. Em seguida despachou a correspondência para seu marido. No dia 7 de setembro, ao ler da decisão tomada pela esposa, deu o famoso Grito do Ipiranga: “Independência ou morte”.
               Após isso, o professor questiona: “O documento é  que vale. Quem o assinou? Em qual dia? Quem é o herói da independência? Por que não é a mulher? Quando deveria ser comemorado esse dia patriótico? Quem, de verdade, deveria receber as homenagens?  Ou seja, ficará evidente a negação da mulher na sociedade e o machismo vencendo a verdade. Lógico que, após a aula  nesse teor, as reflexões poderão tomar outro rumo, exigindo revisão de quase tudo que aprendemos até agora. Quem será contra? Com certeza só aqueles que comungam daquilo que é negativo nessa história! E dirão: se aprovado o Projeto Escola Sem Partido, nada vai mudar nessa história. Eis a minha apelação: entrem no seguinte endereço https://forms.camara.leg.br/ex/enquetes/606722/resultado e votem discordando desse nefasto projeto.

BONITAS VITÓRIAS QUE MEU POVO TEM

Gente da Estufa - Visão da Praia Dura (Arquivo JRS)
Vovó Eugênia (Arquivo JRS)


               De uns tempos para cá, vendo coisas estranhas, escutando asneiras  até mesmo de pobre contra pobre, tal como se estivesse serrando o próprio galho que o sustenta, achei por bem rememorar “detalhes” da nossa História antes que até isso seja proibido por aqueles que desejam apagar, corromper a nossa memória. Hoje volto a falar das nossas raízes negras.

               Os negros se fizeram importantes no nosso país, no nosso ser caiçara. Pessoalmente, muitos deles ajudaram a tecer a “minha colcha de retalhos”. Minha tataravó, conforme ensinou um dia a saudosa Vó Eugênia, “nasceu ainda no tempo da escravidão, na praia do Lázaro”. E como deixar de lembrar do Sabá, da Maria Galdino, do Zé Pretinho, do Vicente Preto, do Iêieca, da Rosália, do Dito Madalena, da Constantina, do Jajá, do Sapato Branco, do Horácio, do Herondino, da Maria do Pulso, do Higino, do Genésio, do Tiagão, da Odete e de tantos outros herdeiros da distante Mãe África? Como omitir, no ser que sou, essa negrada toda?

               Ainda no século XVI, com os países europeus  invadindo outras terras por ganância, surgiu a necessidade de mão de obra, de mais gente para trabalhar na produção de riquezas para poucos. No Brasil, por exemplo, precisava de gente para cortar madeira, carregar as embarcações dos portugueses... Depois, quem iria plantar cana, produzir açúcar, cavoucar ouro? Por isso que os mais poderosos avançaram sobre a África, estabelecendo a escravidão negra. Os conflitos entre as tribos africanas deram sua contribuição nesse crime medonho arquitetado pelos europeus.

               Antes dos embarques nos navios negreiros (tumbeiros), ainda em alguma praia do outro lado do Atlântico, acontecia um estranho ritual: em volta de uma grande árvore, aqueles que iriam embarcar para o desconhecido davam algumas voltas enquanto alguém proferia um discurso religioso, uma oração com o objetivo que, após deixar as terras africanas, nunca mais as almas se lembrassem da vida ali. Desse modo, elas não voltariam para assombrar os que continuariam ali, na terra nativa. Aquela era a Árvore do Esquecimento, geralmente um majestoso baobá, uma árvore sagrada na fé dos primeiros habitantes da Terra. O preto Sabá, brincando um dia com o Iêieca, natural de Minas Gerais: “A seu baobá ficou em Poços de Caldas. Do nosso, na Costa do Ouro, você já se esqueceu meu irmão”.

               Mas os negros, aqueles que  não foram sepultados no mar e ultrapassaram as ondas dos açoites,  não se esqueceram, continuaram resistindo de diversas formas. Vai, Bento! Vai, Egléia! Vai, Rê! Vai, Jequié! Segue, negrada, regando o Sagrado Baobá! Como disse um dia o amigo Zé Vicente: “Retalhos de nossa história, bonitas vitórias que meu povo tem”.
                

domingo, 4 de novembro de 2018

TESTAMENTOS



Eu, tio Dito e  a mana Ana

               No último espetáculo do grupo Concertada, em Ubatuba, a homenagem foi aos negros. Afinal,  estamos no mês em que se comemora a Consciência Negra. Viva novembro! Viva Zumbi de Palmares! Em tempo: o grupo citado se apresenta mensalmente na concha acústica do Tamar. Grande prazer ouvir essa gente ! Grande prazer em ouvir a Marilena Cabral ler os belos textos entremeados! 

               Hoje, motivado pela cantoria do grupo,  fui me recordando das tantas rodas de conversas, de minhas prosas com Sabá e tantos outros pretos caiçaras, dou a conhecer um testamento.

               Testamento é um gênero (?) literário, só não sei desde que tempo. Só sei que se parece um pouco com o pasquim, daqueles que tantas vezes eu li pregados nas amendoeiras, nos ranchos de canoas. O finado Sabá,  da praia da Enseada, “preto fechado” como dizia a minha finada mãe, assim me explicou um dia:

               Escute, Zezinho. Vou lhe explicar, hoje, o testamento.  Em dia especial, quando o povo nosso se reunia, geralmente no terreiro da capela, após a reza, durante os leilões, apareciam os testamentos. Os autores eram anônimos, ninguém sabia quem era, mas todos queriam ouvir. Quem gritava o leilão chamava quem era incumbido de ler o que estava escrito num papel amarelado. Num dia da Semana Santa, acho que num sábado de aleluia, me recordo deste: 

Judas agora se foi
Escutem, prestem atenção
Traidor igual não teve
Por enquanto ainda não .

Por isso em testamento
Deixo minha cartucheira
Pra mode matar um  bicho
Que ainda não fede nem cheira.

O meu pito de canudo
Ainda pra cima de meio
Será pra sorte de alguém
Que faça a vez de esteio.

Alguém que não chore pro vigário
Quem não seja traiçoeiro
Que não espere milagres
E nem se acomode no poleiro

O meu bonito chapéu
De broto de brejaúba amarela
Será para o lindo menino
Meu filho e também filho dela.

E dele eu espero muito
Que seja em claro dia  um estopim
Para apagar a sujeira
Que uns diabos deixaram pra mim.

E peço ao tabelião que bata o martelo logo
Nesse pensar de agonia
Pra socorrer logo os pobres
Com estudo e trabalho em harmonia.

Assim eu pego a canoa
Nem pra trás eu vou olhar
O vento me leva longe
Perto de um bom lugar.

               Penso que é meu dever agradecer ao Sabá, o velho preto, pelas lições que recebi em tantas ocasiões na minha adolescência.  Viva esse negro que consciência tanta me deu! Viva Mariana! Viva seus descendentes!