domingo, 30 de agosto de 2015

MEMÓRIAS DO DIRETOR


A Estrada da Serra do Mar (Oswaldo Cruz)  - Arquivo Edson Silva

Oportunidades boas passam pelas nossas vidas constantemente, mas é preciso enxergá-las. Por estes dias me deparei com um novo seguidor do meu blog. Na mesma hora acessei o BLOG DO NASSIF. Que maravilha! Na entrevista com o Dr. Célio uma coisa me chamou a atenção: em meados da década de 1950, este honrado cidadão do interior paulista foi diretor da Estação Experimental do Horto Florestal, no pé da Serra do Mar, em Ubatuba, onde semanalmente eu vou buscar água na Fonte da Amizade. Faço questão de que meus leitores leiam essa matéria que, espero, terá outros desdobramentos. Desde já agradeço ao Nassif pela oportunidade.

Dr. Célio Soares Moreira - Arquivo Nassif 



ENTREVISTADO:  CELIO SOARES MOREIRA
                                                                                                    
O professor doutor Célio Soares Moreira nasceu em Jaú, a 1º de março de 1930. É filho de Silvio Moreira e Minica que tiveram os filhos: Iná, Célio, Sonia, Raul e Fábio.


Em que ano o senhor entrou na ESALQ?
Foi em 1950. Tenho o nome de todos que se formaram na nossa turma, guardo comigo o convite de formatura. A única mulher da turma era Olga Zardetto de Toledo. Tive aulas com grandes professores: Prof. Felipe Westin Cabral de Vasconcelos, Eduardo Augusto Salgado, genética tive aulas com Friedrich Gustav Brieger, Walter Radamés Accorsi,  Edgard do Amaral Graner, Salim Simão.

Em Piracicaba o senhor morava em que lugar?
Você conheceu uma república chamada “Mosteiro”? Éramos cinco moradores, fundamos a república e alugamos uma casa, em frente onde mais tarde foi a Escola de Odontologia, ali havia um colégio de freiras. Na Rua Alferes José Caetano. Na outra esquina tinha a casa do Ex-Prefeito Luiz Dias Gonzaga, a república era no sentido bairro-centro, a segunda casa.

Quem escolheu o nome da república?
Foram as meninas internas do Colégio São José. Na verdade elas caçoavam de nós.  Colocamos cortinas nas janelas, para podermos ter mais liberdade. O pessoal da ESALQ colocou o nome de “Mosteiro”.

A diversão naquela época qual era?
Eu não tinha dinheiro para diversão! Fui equilibrar minha mesada quando mudamos para outra casa da republica, descendo a Rua Alferes José Caetano, após a Rua Voluntários da Pátria. Continuou com o nome “Mosteiro”. Nesse grupo de cinco estudantes, o único que era pobre era eu. Arrumei um emprego, uma amiga de Campinas, disse-me:” –Se você arranjar a sala, tenho como montar uma biblioteca”.

Como o senhor conheceu a sua namorada?
Acho que foi em um baile, no Cristóvão Colombo, na esquina da Rua Governador Pedro de Toledo com Rua São José. O nome dela era Rosa Maria Fleury Moreira, conhecida como “Tuia”. Filha de Aldrovando Fleury. Irmã de João Ribas Fleury. Casamos em São Paulo, tivemos três filhos: Ângela, Eduardo, Arnaldo. 

A Lua de Mel foi onde?
Foi em São Vicente, era a moda na época. Fomos em um carro do meu pai, Chevrolet 1951, azul. Fui ser agrônomo, chefe da Estação Experimental de Ubatuba. Era uma localidade ainda em desenvolvimento, não tinha o movimento que existe hoje. Chegar até Ubatuba era uma aventura, estrada de terra, tinha que ir até Taubaté, não havia a Rodovia dos Tamoios. Quando assumi a Estação Experimental de Ubatuba não estava casado ainda, me empreguei como Chefe do IAC em Ubatuba. O Instituto Agronômico fornecia alguma condução para ir para lá, geralmente a pior condução. Era muito comum ir de jipe, esse jipe era resto de guerra, americano, descia a serra, era uma aventura, havia dois horários de ônibus, quem estava descendo ficava preocupado por não ter cruzado ainda com o ônibus. Quando cruzasse não passava os dois veículos. Tinha que ajeitar.

Não havia trânsito?
Havia trânsito de caminhão de banana! Só que com o caminhão de banana era bem mais fácil de passar ao lado do jipe. O perigo era o ônibus, porque ele vinha despreocupado. Ali a cultura forte era a banana. Permaneci lá um ano e meio. Tinha uma casa na Estação Experimental, a comida era feita por uma empregada. A comida de Ubatuba é baseada em peixe. Quando havia sobra eles ofereciam de graça o camarão. O porto de Ubatuba era muito pequeno, não tinha frigorífico, toda semana passava uma barca com frigorífico. Eles pescavam e tinham que vender. Se a barca não passasse aquela semana, ou atrasasse três ou quatro dias o que tinha sido pescado podia estragar. Eu estava a sete quilômetros da cidade. Às vezes ia de bicicleta. Formei muitos amigos lá, a Cachaça Ubatubana era muito famosa, fabricada por uma família de Piracicaba que moravam na  Fazenda Velha, os Irmãos Chiéus, fabricavam a pinga Ubatubana. Fui membro do Rotary Club que já existia em Ubatuba  na época. Ia daqui para lá o especialista em genética de cana, que era o chefe das Estações Experimentais.


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O MUSEU

Museu Washington de Oliveira - Ubatuba  (Arquivo JRS)

                O Iluminismo se caracterizou pela crença no poder da luz da razão para buscar o conhecimento. Na base desta corrente filosófica estão pensadores importantes para a Revolução Francesa (Diderot, Voltaire etc.) e para tantas outras revoluções. Os desdobramentos de suas reflexões estão nos processos de independência de muitos países, inclusive do Brasil. O grupo mineiro, os inconfidentes da região mineradora bebiam nesta fonte. Na verdade, a razão deveria ser desenvolvida ao máximo. O Velho Kant repetia sempre: Sapere aude! (Ousai saber!).
                No desejo de estar sempre buscando o conhecimento, vale recorrer a todas as dinâmicas de estudo, a todos os recursos tecnológicos e a todos os espaços de pesquisa. O importante nisso tudo como ponto de chegada (meta) é alcançar a autonomia, o pensar por si próprio. Assim iremos nos esclarecendo.
                O museu é um dos espaços de esclarecimento. Portanto, ao achar bom que o Museu Histórico (de Ubatuba) está reaberto para visitações, pensei primeiramente em nossos estudantes, no espaço privilegiado que abriga aspectos importantes da nossa história municipal. É um “prato cheio” para a Sociologia da Turismo, História, Geografia, Folclore etc. Porém, achei muito salutar a crítica em relação ao horário de funcionamento. É isso mesmo! A nossa cidade é turística! É mais do que necessário que o espaço museológico esteja aberto também aos finais de semana para atender os visitantes e os moradores que ousam saber mais da nossa Ubatuba.

                Ah! Há alguns anos, passando pela casa da finada Ivete Maciel, na Enseada, me deparei com lindas canoas em seu interior. Pensei na ocasião se não seria interessante um Museu das Canoas Caiçaras. Não seria legal?

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O ARTISTA EMBAIXADOR

Jundiaquara, a toca do bagre registrada pelo artista em 1836.
Jundiaquara, a toca do bagre em 2015.

Modelos de pinturas de Benjamin Mary Utilizados na Fora Brasiliensis, de Heitor de Assis Júnior, nos permite conhecer um pouco de Benjamin Mary, o artista embaixador que deixou registrado um pouco de Ubatuba na primeira metade do século XIX, quando o café era o nosso principal produto e o nosso porto tinha uma intensa movimentação.
Vamos pensar cada indivíduo como membro da cultura. Vamos pensar a cultura como um amplo leque, em todos os aspectos possíveis. Vamos pensar a cultura caiçara como tudo isso tendo se estabelecido por determinantes históricas dentro de um território entre a serra e o mar, na caiçara (a cerca natural assim nomeada pelos tupinambás). 
Hoje, a partir do trabalho do Heitor, um pesquisador com atenção especial à arte, me proponho a indicar mais elementos para refletir em torno do espaço onde o ser caiçara se constrói e se aperfeiçoa dando a sua contribuição na maneira de interpretar o mundo.
Alguém já disse que "a cultura é um conceito que transita tanto pelo universo individual quanto pelo coletivo". Agora eu acrescento que esse universo individual é tanto do sujeito quanto do lugar, da soma que preencheu e deu a definição da cultura caiçara.
Então... desfrutemos do artista que há quase duzentos anos reparou bem em tudo que fazia parte do espaço ubatubano.
Benjamin Mary (1792-1846) nasceu em Angers na Bélgica em 21 de janeiro de 1792 e teve seus primeiros contatos com plantas através de seu tio materno Joseph Parmentier, conhecido cultivador de jardins e amplos parques da Europa. Segundo Martius, muito cedo, Mary já era capaz de reproduzir com grande veracidade e realismo a natureza das plantas. Mary veio ao Brasil, como embaixador da Bélgica, tendo percorrido, nos anos de 1834 a 1837, as regiões montanhosas da Serra da Estrela, da Serra dos Órgãos e Ubatuba na Província de São Paulo. Mary produzia três ou quatro desenhos por dia como se estivesse fotografando a costa marítima da Serra do Mar, a qual percorria a pé ou em canoa. Durante suas viagens, Mary passou do Rio de Janeiro para Ubatuba com escalas em Sepetiba, Mangaratiba, Itaguaí, Ilha Grande, Angra dos Reis, Parati, etc.
Em 1971, Luís Viana Filho mostrou a Ferrez outro álbum também adquirido em Paris: “Brésil nº 4 – 66 vues dês environs de Rio de Janeiro et dês forêts Vierges, dessinées par B. Mary – Comprenant: - 31 dessins à la sépia – 35 dessins au crayon”. Todos medem 260 x 350 mm, com índice, datas e legendas das pranchas, abarcando um período de 28 de janeiro de 1834 até fevereiro de 1838. Esses dois álbuns, nº 4 e nº 8, contém 129 pranchas, sendo que o nº 8 está incluso no acervo do colecionador Paulo Fontainha Geyer.13
Mary, segundo Gilberto Ferrez14, “conviveu ou teve o ensejo de conhecer homens com as mesmas inclinações” do pintor Félix Emilio Taunay, diretor da Escola Imperial de Belas Artes. Taunay teria enaltecido as habilidades artísticas de Mary em discursa proferido em 15 de março de 1838:
“Às Belas Artes com dobrada razão se aplica o que diz o orador romano do estudo em geral e em particular das Letras: nutrem a adolescência, deleitam a velhice, consolam o infortúnio, ornam a prosperidade. Estas últimas palavras trazem à vossa lembrança o ilustre exemplo de um diplomata benigno, hóspede deste país, filho de outra terra em que o trabalho artístico faz parte do patrimônio nacional, dotado ele mesmo de talento não vulgar, e que, ao retirar-se para a Europa, leva uma coleção riquíssima de vistas do Rio de Janeiro, por ele desenhadas”.
Em 1838, após deixar o Brasil, Mary teria se encontrado pessoalmente com Martius e este, teria elogiado muito seus desenhos.
A presença de artistas nas excursões naturalísticas foi importante num período em que os aparelhos de captação de imagens ainda não estavam desenvolvidos, assim, os diversos espécimes vegetais herborizados durante as expedições científicas que perdiam suas cores no processo de preparação, tornavam a participação do pintor desenhista um fator necessário para a preservação dos detalhes de cada exemplar.
          A técnica litográfica permitia ao editor acrescentar ao modelo artístico espécies com detalhes anatômicos e estruturais importantes para sua identificação taxonômica, aliás, desenhos detalhados, até hoje, são utilizados com a mesma finalidade. Além disso, os exemplares ou espécies de interesse eram acrescentados à paisagem conforme a necessidade do autor, baseado em anotações colhidas décadas antes, durante as suas viagens naturalísticas. Em alguns modelos, nota-se um panorama geral do local e/ou do vegetal; na litografia, o cientista, a partir de suas anotações de viagem, incluiu espécies vegetais mais adequadas àquele ambiente, entre elas, diversas espécies de palmeiras que eram bastante caras a von Martius que, inclusive, dedicou-lhes toda uma obra, a Historia Naturalis Palmarum

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

HOJE LÁ É MUITO ESGOTO

Ruínas do Holanda Maia (Arquivo JRS, 2015)
Mulher lavando roupas no rio  Acaraú - B. Mary (1836)

Litografia retratando ponte sobre o rio Acaraú, na passagem para a casa da Jundiaquara (1836)

               Após, por indicação de amigos, conhecer as gravuras de Benjamin MARY, achei por bem reeditar um texto que já completou um ano.    Trata-se do trabalho científico de Heitor de Assis Júnior, sob o título de Litografias e obras artísticas na Flora Brasiliensis. Assim está escrito, mas só isso não revela o que nos interessa. Na verdade, é lendo os rodapés das gravuras de um viajante europeu do século XIX que vamos ter uma enorme surpresa; lá, lê-se, “Fig. 10: Modelo: MARY, Benjamin. Perto da propriedade de Jundiaquara no distrito de Ubatuba, 1836”.

              No centro da cidade de Ubatuba tem uma rua por nome de Maria Vitória Jean. De acordo com os registros de Washington de Oliveira, “Maria Victor Camilo Jean, mais conhecida por Maria Vitó, era filha de um daqueles franceses que em meados do século passado [1801-1900] vieram para o Brasil e acabaram radicando-se em Ubatuba”.
         Ao visitar a Casa da Jundiaquara, onde um desses franceses chegou  na primeira metade do século XIX, lembrei-me que alguém me disse o seguinte: “A Maria Vitória era descendente de Camille Jean, o fazendeiro francês da Jundiaquara. Foi quem construiu o primeiro casarão, depois  de aplainar uma parte do morro. Era um casarão muito bonito, onde acolhia sempre os visitantes franceses. O cônsul da Bélgica, um passagem por aqui, ficou hospedado lá. Também o famoso Debret, que fazia parte da Missão Cultural de D.João VI, foi acolhido ali. Da visão que se tinha do alto, ele fez algumas gravuras da nossa região, da natureza”.
     Dizem os historiadores que, além do fato da independência do Haiti, que expulsou os senhores franceses para outras terras, também ocorreu a guerra que envolveu a França contra a Prússia forçando os mais destemidos a buscarem outras paragens. Os franceses que chegaram a Ubatuba entre 1820 e 1850 eram dessas levas. Eram capitalistas buscando refúgio nas terras das Américas. No mesmo autor citado no início deste texto, encontramos: “Os que chegaram em Ubatuba adquiriram grandes extensões de terras e dedicaram-se à lavoura, muito especialmente na cultura do café”.

       Resumindo: as ruínas que visitei com os amigos são de época recente, construção do Holanda Maia, por volta de 1950, sobre os alicerces da primeira casa da fazenda (de Camille Jean). O nome Jundiaquara deriva da língua dos antigos moradores, dos índios tupinambás. É a Toca do Bagre (jundiá). Trata-se de uma enorme pedra mais para o interior, quase no Sertão da Sesmaria, onde passava o rio. Com essa denominação podemos deduzir que o local era cobiçado pelos pescadores de outros tempos. 
        Jundiaquara é ali, perto do trevo da Praia Grande. As ruínas recentes estão sobre o alicerce do primeiro casarão, onde Debret, Mary e outros foram hóspedes e produziram belíssimas imagens. Naquele tempo, o rio Acaraú era limpo. Hoje é esgoto a atingir nossos narizes, nossa flora e fauna... É uma água podre a dar a sua contribuição na destruição da nossa praia do Itaguá.
                 Agora, além do esgoto no velho rio, tudo é mato cobiçado para grilagem de terra, para devastação total de tantas riquezas naturais e culturais. Pois é! As assombrações que tanto medo causaram aos antigos caiçaras ainda persistem! Nunca que esses famosos viajantes europeus encontrariam inspiração para qualquer coisa em situação assim! 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

ILHA ANCHIETA 110 ANOS ATRÁS

Conchas na Cocanha (Arquivo JRS)


       O canoadepau.blogspot.com nos presenteia com uma introdução de algo grandioso que vem por aí. Trata-se de revelar para nós o que resultou da decisão do governo, no início do século XX, em retirar os caiçaras da Ilha dos Porcos, para a construção do presídio que funcionou tragicamente por cinquenta anos. Grato, amigo Peter.

      Durante os últimos dois dias me debrucei sobre os três contratos de compra e venda da Ilha dos Porcos, hoje ilha Anchieta, mergulhando exatos 110 anos no passado, tempo da expropriação forçada de 148 pessoas, proprietárias de edificações, terras, plantações, benfeitorias, canaviais, cafezais, pomares e pelo menos 35 coqueiros. Noventa e cinco (95) "vendas" foram concretizadas pelos 92 proprietários de 1 ex-escola do sexo feminino, 2 casas-armazém sendo uma de secos, molhados e fazendas (tecidos), 4 galpões, 2 galpões de canoas, 1 rancho de canoas, totalizando 116 edificações.
       Cento e quarenta e cinco (145) pessoas adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde proprietário algum foi citado nos contratos.
  Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim, Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral, Barbosa, Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
     Descobri que o marido de Idalina Graça, provavelmente foi expulso do Mato Dentro e confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira, cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
    Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da Enseada dos anos 1930.

CAPITULO I
A viagem
      Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também, filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas. Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido, fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma. Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo. Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? — Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino! Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante: — Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes! Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo, a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

OS MENESTRÉIS

Do meu quintal... aos menestréis, com carinho (Arquivo JRS)


               Eu fui, juntamente com a família, ao espetáculo dos Menestréis no teatro de Caraguatatuba. Eu fui!
               O teatro Mário Covas lotou. Quase que a totalidade era de gente de Ubatuba, que queria prestigiar seus filhos e conhecidos. O pessoal fez bonito, o público amou toda aquela energia que pulsava da turma que se esmerou muito. Aquela moçada, na sua maioria, são alunos de escolas públicas. Dentre eles vi vários caiçarinhas: Jônatas, filho da prima Edilene e do Guido, os primos Rassany e Sarah, gente dos Ferreti da antiga colônia italiana da Praia da Fazenda. Na percussão, caprichando no ritmo, fez bonito a Ludimila, da prima Neide e do saudoso Dito. Outros tantos rostos estavam naquele rodopiar de energia. Coisa boa!
               Agradeço as escolas que abriram suas portas aos divulgadores desse projeto. Infelizmente, conforme afirmou a coordenadora do grupo, algumas diretoras não quiseram dar essa chance aos seus alunos.
               A Oficina dos Menestréis de Ubatuba desta vez apresentou “Lendas e tribos” como reflexão sobre a diversidade humana (fadas, duendes, surfistas, hippies etc.), merecendo destaque a história da resistência dos negros no Brasil e na África do Sul. Posso afiançar que, depois deste espetáculo, novas mentalidades desalojarão antigos preconceitos. A  arte também serve para isto.
            Da página própria dos Menestréis, retirei:
           Em 1981, o cantor e compositor Oswaldo Montenegro, passou a trabalhar com um novo método para dirigir seu elenco, com o intuito de atingir maior agilidade, noção de conjunto e atenção dos atores. Essa metodologia foi adaptada por Deto Montenegro, irmão de Oswaldo, com o fim de levar um treinamento artístico para profissionais de todas as áreas. Em 1993, Deto estabeleceu sociedade com o ator e diretor Candé Brandão, criando a Oficina dos Menestréis, uma empresa de Teatro Musical.
       Em Ubatuba, a Oficina dos Menestréis iniciou seus trabalhos em 2010 com a professora de dança e produtora Luciana Chaer, que já havia participado de várias peças da Oficina em São Paulo, juntamente com o Diretor Candé Brandão.
               O meu desejo é que essa juventude voe muito, enxergue outros horizontes, muito além da atuais formas de mesquinhez,  de corrupção, do egoísmo, de ganância...Enfim, de tanta falta de amor, sobretudo ao meio ambiente e à cultura que herdamos.

            Parabéns ao pessoal que preparou essa imensa turma. Muita força, muita garra para o que vem por aí. Tudo de bom mesmo!

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O VALOR DA NATUREZA

Eu e o saudoso Tio Tonico mariscando na Ponta da Fortaleza (Arquivo JRS)

              Na revista Pesquisa FAPESP, de março de 2014, encontrei um assunto que se edificou a partir do território caiçara de São Sebastião: trata-se do artigo O valor da natureza, de onde pincei alguns trechos.
                “Em tempos de mudanças climáticas, princípios ecológicos antes deixados de lado parecem ganhar força, marcando presença em discussões políticas de planejamento econômico para um plano estratégico de desenvolvimento sustentável”.
                Carlos Joly, coordenador do programa Biota-FAPESP, afirma: “Talvez o melhor exemplo desse avanço em relação às discussões sobre conservação ambiental seja a criação da Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos pela Organização das Nações Unidas em 2012”, cuja tarefa um tanto difícil “é de fazer com que o conhecimento científico produzido sobre a biodiversidade em todo o mundo seja reunido e sistematizado com o objetivo de subsidiar decisões políticas e econômicas em nível internacional”.
                É muito importante “os estudos que procuravam valorizar as funções ecossistêmicas sob a premissa de que as atividades econômicas e o bem-estar humano seriam dependentes dos serviços naturais por elas geradas, como a produção de oxigênio, alimento e água potável”.
                Faz-nos pensar ainda mais a afirmação do ambientalista norte-americano Aldo Leopold: “Os animais, as plantas e os ecossistemas têm um valor em si mesmos, independentemente da utilidade que possam representar para o homem”.
                Nessa direção, o biólogo Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da USP, num trabalho na baía do Araçá, em São Sebastião, além de descrever a biodiversidade, também apresenta “alternativas à intervenção do ser humano no funcionamento desse ambiente e, inclusive, estimulando iniciativas que tentem reverter o atual quadro de degradação ambiental”. Segundo ele, “a ideia é tentar conciliar o estilo de vida local com a preservação ambiental”. Um desafio e tanto, ele reconhece, “que requer mudanças culturais profundas na sociedade”.
                De acordo com esse pesquisador, “a baía do Araçá mantém hoje os últimos remanescentes de manguezal do litoral de São Sebastião”. Mesmo assim, com uma considerável diversidade biológica: “alcança 733 espécies, das  quais 34 foram descritas como novas para a ciência”. Agora, o que mais nos interessa: é um “reduto de pescadores artesanais, que usam pequenas canoas caiçaras para capturar peixes e crustáceos”. Enfim, com base nas entrevistas, a equipe observou que “a população parece compreender a importância desse ambiente para o suporte à vida, à economia e também à manutenção de sua identidade e herança cultural”.

                É por tudo isso  - e muito mais! -  que é crime o que fazem no espaço caiçara como um todo ao poluírem sem escrúpulos, ao destruírem nossos rios, restingas, jundus e mangues. Alerta os estudos: “A baía do Araçá oferece ao homem serviços ambientais, culturais e econômicos importantes, que variam da produção de alimento e matéria-prima à regulação climática – via sequestro de carbono e ciclagem de nutrientes”.   
                Diante de tantos abusos com o nosso ambiente natural, assim me disse o saudoso Tio Tonico por ocasião de mariscar na costeira: "Ao destruir essa herança divina, o ser humano está afundando em uma nova espécie de barbárie. Os inocentes, principalmente os outros seres que sustentam nossas vidas, pagarão sem dever". Sábio titio, né?         

domingo, 2 de agosto de 2015

ANTÔNIO E TEREZINHA

Maré seca na Praia de Yperoig (Arquivo JRS)

Antigos caiçaras que muito estimo (Arquivo JRS)

                Você já ouviu falar da Teoria da Deriva, de Guy Debord? Trata-se de uma reorientação no espaço urbano, deixando que as emoções comandem os rumos, as direções. Na verdade, é uma tentativa de amenizar a rotina das cidades, de torná-la um espaço de libertação do ser humano.  Pois é, tomando esse princípio, subi na bicicleta e fui logo cedo pedalando até o lagamar num dia desses. A maré estava baixa, mas tão baixa que até imaginei ser numa ocasião assim que o Padre Anchieta aproveitou para escrever seus versos na Praia de Yperoig, sob a tentação das lindas tupinambás. Passei um bom tempo olhando o mar, admirando a calmaria e a tranquilidade dos pássaros grasnando enquanto vasculhava a claridade das águas em busca de alimento. Até pensei em ir ao Perequê-açu, ver o amigo Oscar. Porém, segui na outra direção, indo para o Itaguá. Na cabeceira da ponte da Barra da Lagoa, pensei num casal que há tempo não visitava: Seo Antônio Freitas e Dona Terezinha. E fui beirando o rio, passando por casas que trouxeram boas lembranças: professor Hércules e Dona Eunice, João Valério e Dona Maria, Seo Mário e Dona Benedita...
                Cheguei no portão e fui avistando a Dona Terezinha. Logo estava dando aquele gostoso abraço nos dois caiçaras antigos que tanto estimo: ele está com 85 anos e ela com 83. Legal, né? Os dois adoram conversar... e eu então... “juntou a fome e a vontade de comer”. E o tempo passou rápido demais.
                Conheci os dois no começo da década de 1970, quando o saudoso filho caçula deles era colega de escola, no “Capitão Deolindo”. O Toninho, além de ótimo desenhista, era o dono da bola. O nosso espaço de dar chutes era na Praça Treze de Maio. Naquele tempo era tudo plano, um terreno de areia original. De vez em quando chegava um parque de diversões, mas não atrapalhava o nosso espaço de brincadeiras. O tempo passou.
                Teresinha nasceu na Marafunda. Antônio é do centro da cidade. Ambos falam de como era o tempo deles, das transformações. Em outra ocasião escreverei mais detalhes dessa prosa gostosa. No momento, alguns “petiscos” para acrescentar à caiçarada:

                “A água encanada era da cachoeira do Morro da Pedreira; enchia uma caixa d’água que ficava ali no encontro das ruas Paraná e Dona Maria Alves. Dito “Caixa D’água” e seus irmãos tinham esse apelido porque moravam perto da caixa d’água. Quem cuidava da água era o Silvestre, pai do Zé Diniz, que morava na Ressaca. O encanamento doméstico era todo feito em chumbo”.

                “A Maria Vitória Jean era dona de toda aquela terra, da parte de cima da cidade, que ia até a Estufa. A casa dela era ali, perto de onde é a prefeitura hoje, bem no lugar em que o Canabrava fez a casa dele. Ela tinha um sobrinho que morava com ela, o Jean, que bebia muito e foi morto a foiçada lá na Maranduba”.

                “Os Freitas eram três irmãos portugueses: um ficou em Ubatuba, outro, Rodrigo de Freitas, foi para o Rio de Janeiro. O terceiro, Teixeira de Freitas, se estabeleceu na Bahia”. [Lembrou da lagoa carioca e da cidade baiana?].

                “Outro ramo da nossa família é Gomes de Pinho, cuja fazenda de café era no Sertão do Puruba, na Água Branca. Era um português que se casou com uma negra (escrava). Minha tia contava que ele morreu em consequência de um ataque de onça. Foi socorrido, estava sendo trazido de canoa para a cidade, mas sucumbiu no mar devido aos ferimentos”.


                Como é bom conversar com esse meu povo!