quinta-feira, 25 de abril de 2024

DISCURSOS E COMPROMISSOS

Alguém cortou e marcou - Arquivo JRS


      Ubatuba, tal como quase todas as cidades litorâneas estabelecidas pelos “descobridores” portugueses no início da colonização, passou por várias crises econômicas. Os motivos foram diversos: esgotamento do pau brasil, clima inadequada para o cultivo da cana, solo empobrecido pelo cultivo intenso de café, invasão de terras no interior do país (novas áreas agrícolas), descoberta do ouro nos sertões, falta de vias adequadas para acesso ao porto marítimo, decisões arbitrárias de governantes etc. Por consequência, uma população pobre precisou se agarrar firmemente nas tradições básicas de sobrevivência, tal como caça e pesca, cultivo da mandioca, banana etc.

     Já aprendemos que, na história do Brasil, neste contexto acima, não havia educação básica. A catequese dos padres até podia alfabetizar, mas a intenção maior era “conquistar almas para Deus”, expandir a religião católica, tornar as pessoas conformadas aos ditames dos poderosos políticos, dos que detinham o poder econômico. Os filhos destes (“senhores da terra”  que se aproveitavam do suor dos indígenas, negros e brancos marginalizados) tinham a chance de irem morar em cidades grandes e até na Europa para prosseguirem nos estudos. Dá para imaginar, então, quais eram as perspectivas dos trabalhadores e suas famílias que apenas tinham o trabalho, a preocupação com a sobrevivência? Nenhuma! Aqui, nem os padres, primeiros professores deste território imenso, se atreveram a pensar na educação da população. Pelas leituras, eu pude concluir que apenas no final do século XIX apareceu gente que se voltou para essa questão da educação escolar. Foi o médico Esteves da Silva e outras pessoas instruídas da cidade que se debruçaram sobre a preocupação da falta de escolarização e fundaram o Ateneu Ubatubense.        

       No livro do Seo Filhinho, Ubatuba Documentário, tem uma passagem interessante, ocorrida em 1881, quando pouco mais de doze lampiões de querosene foram instalados no centro da cidade, nas esquinas principais, para iluminarem as noites. Eles duraram décadas. Era a iluminação pública que fazia sucesso. À querosene! Mas escolhi o referido evento porque os vereadores produziram um texto na ocasião da inauguração, cujo último capítulo é o seguinte: 

Esta Câmara saúda a Associação do Ateneu Ubatubense à frente da qual se acha o seu mui digno e ilustrado Presidente Dr. João Diogo Esteves da Silva, pelo projeto da criação da aula noturna para adultos, melhoramento intelectual de grande alcance, pois que esta Câmara está convicta de que a maior riqueza das nações e assim das frações desta é a instrução derramada pelo povo e os melhoramentos materiais para o bem-estar do mesmo povo.

       Posso inferir que o jeito foi começar alfabetizando adultos, sensibilizá-los para, no futuro, incluir a educação às crianças. Caso contrário, somente quem pudesse pagar por aulas particulares seria alfabetizado. Certamente o médico, proveniente da cidade do Rio de Janeiro, trouxe uma bagagem repleta de livros e aqui encontrou outros homens - pouquíssimos! - influentes com farto material enfeitando estantes. Se entrosaram e fundaram o Ateneu. Pronto! O saber lançou raízes, se expandiu!

      Quisera eu que não fosse esquecida  a última parte do texto inaugural: “...esta Câmara está convicta de que a maior riqueza das nações e assim das frações desta é a instrução derramada pelo povo e os melhoramentos materiais para o bem-estar do mesmo povo”. Ubatuba é uma fração desta nação. Os legisladores atuais da cidade pensam assim ou seus discursos são apenas palavras ao vento, sem comprometimento ?

segunda-feira, 22 de abril de 2024

COMO VAI A EDUCAÇÂO?

      

Aurora maravilhosa - Arquivo Clóvis 

      Em tempo de responsáveis pela Educação Escolar dispensando estudiosos/pesquisadores dos temas pedagógicos, didáticos, históricos, filosóficos, matemáticos etc., para imposição de material retirado da inteligência artificial, cabe reflexão sobre o que, de fato, pretendem tais líderes. Não podemos nos esquecer: os mesmos são remunerados pelas contribuições da classe trabalhadora, pelo suor dos pobres. É o nosso trabalho que sustenta este modelo de estado, de governo.

     As máquinas, os computadores que dispõem essa dita sabedoria, começam prestando um favor: dispensar trabalhadores do setor, desde operários das gráficas até os que se debruçam nos estudos, nas teorias que fazem a diferença no rendimento escolar. Em seguida, livres das mediações de textos atualizados até mesmo no momento das aulas, certamente haverá a censura prévia, tipo “isso pode isso não pode”, com objetivo de reforçar um predomínio ideológico, de conter a autonomia do pensamento. Assim, o que os docentes e discentes receberão nas escolas também reduzirá a capacidade crítica, limitará as motivações para futuras pesquisas e estudos. No momento em que no Brasil e no mundo cresce a onda reacionária, recrudesce os movimentos políticos de extrema direita, essa opção pelo uso da inteligência artificial em vez dos livros didáticos se torna um perigo, pois estará a serviço, sendo usado por essa tendência nefasta contra os menos abastados. Quem está gostando disso são aqueles professores que se acomodam, não querem ler mais e, constantemente, perguntam: “Para que o filho do pobre precisa estudar isso?”. É isto: são docentes que servem aos interesses de quem domina os rumos da sociedade e querem apenas trabalhadores que cumpram ordens, sendo um exército de reserva de mão de obra barata que vai continuar garantindo os lucros e o domínio político de uma minoria. Tenho a certeza de que as boas escolas particulares, que atendem os mais endinheirados, não seguirão essa imposição pedagógica/didática.

      Às vezes fico imaginando a história da humanidade, de quanto nós fizemos para escapar da malha da natureza, recorrendo desde as técnicas simples até a moderna tecnologia. Quanto discursos foram criados (e continuam!) para que as mentalidades se moldassem às diversas sociedades e dessem suas contribuições à evolução geral? Sem dúvida alguma que a formação escolar, o saber acumulado pelo tempo, influenciou muito. Agora, a humanidade e o meio ambiente estão em perigo, exaustos. O ser humano dá mostras de que está regredindo, se recusando a refletir. Prova disso é o crescimento e o apoio de movimentos reacionários no mundo todo.  Situações de estrema brutalidade se recrudescem, até pessoas ditas religiosas apoiam a violência contra pobres e marginalizados e o uso de armas para sustentar perseguições/mortes aos frutos da desigualdade social; aplaudem o fim dos direitos sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora; não se importam com o  extermínio de povos originários etc. Em suma: o pobre está contra ele mesmo. Parece o fim de tudo aquilo que sustentava a esperança num mundo melhor. Como deixamos isso acontecer? Pode ser que transferir a formação escolar para a responsabilidade das máquinas, da inteligência artificial, possa agravar ainda mais esse quadro tenebroso.

sábado, 20 de abril de 2024

ERA PEDRO

    

Treporeba - Arquivo JRS

     Pedro era o nome dele. Há anos viera da cidade de Piquete para ficar mais perto do mar, experimentar outra rotina diferente daquela de viver no Vale do Paraíba, divisando com o Sul de Minas. Escolhera, dentro das possibilidades, de viver no bairro do Ipiranguinha, onde nos conhecemos. Éramos vizinhos nesses anos todos.

    Pedro era o nome dele. Trabalhara por anos, na sua cidade natal, na Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL). Em Ubatuba, desempenhava a profissão de jardineiro num condomínio de luxo no Morro das Moças, onde era admirado pela sua dedicação profissional e companheirismo. Ele também fazia uns bicos como pedreiro.

     Pedro era o nome dele. Junto com Dorinha e Pedrinho formavam uma linda família, eram estimados por todos nós. Dele, numa ocasião, enquanto eu cuidava das plantas na calçada de casa, escutei a seguinte história que deveria nos conduzir a sérias reflexões, sobretudo a respeito dos direitos trabalhistas, dos descasos com a vida dos operários, das condições insalubres: 

“Durante muitos anos eu trabalhei naquela fábrica de armas, de produção de pólvora e mais coisas. Eu fazia parte de uma equipe de serviços gerais. Éramos, mais ou menos, trinta companheiros nessa função. Dias desses, ao saber da morte de um ex-colega da fábrica, parei para pensar, fui colocando na conta o tanto de antigos companheiros que se foram antes dos sessenta anos. Sabe que mais de vinte já faleceram, Zé? Será que essa situação tem a ver com o ambiente de trabalho dentro da fábrica naquele tempo?”.

 Não passou muito tempo para o Pedro também adoecer. De um dia para outro desapareceu aquele homem forte, animado para as atividades da comunidade. Emagreceu, amarelou; definhou rapidamente. Fui pesquisar sobre a citada fábrica.

Dentre os diversos produtos comercializados pela IMBEL®, alguns deles de emprego dual, destacam-se: Fuzis de Assalto e carabinas 5,56 IA2; pistolas de diferentes calibres e características; facas; Sistemas de Abrigos Temporários de alto desempenho (SATi), nas versões de Campanha e Defesa Civil; equipamentos-rádio; Sistema computadorizado para direção e coordenação de tiro de artilharia; munições de grande calibre para morteiros, canhões e obuseiros; emulsões e explosivos diversos, iniciadores e demais componentes.

      Era Pedro. Para nós ficou a memória de uma pessoa decente, exemplo de cidadão na vida comunitária. Perdemos um amigo sincero, que cultivava plantas e amizades; que se devotava à família. Lembrei-me agora da música Pedro Pedreiro, de Chico Buarque. Dela vem a minha homenagem ao amigo Pedro:


Pedro não sabe, mas talvez no fundo

Espere alguma coisa mais linda que o mundo

Maior do que o mar

Mas pra que sonhar

Se dá o desespero de esperar demais

Pedro pedreiro quer voltar atrás

Quer ser pedreiro pobre e nada mais

 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

LARGO DA IGREJA DOS PRETOS

 

Paisagem - Arte: Maria Eugênia

   Eu estava de passagem, indo na direção da praia. Pretendia contemplar o mar e seguir ir até o Mercado de Peixes para comprar camarão e rever velhos conhecidos. Ouvi um alarido, fui me aproximando. Tambores falavam alto, pessoas dançavam vestidas em suas roupagens variadas, alegres. Sacerdotes estavam no meio daquilo tudo, muito simples, com pessoas bem animadas. Coisa bela! Era uma celebração confirmando a participação de crenças em união, sincretismo religioso num ato que recordava determinado aspecto da história do município de Ubatuba. Alguém próximo comentava a importância de tudo aquilo:  

"É para marcar, não deixar apagar a memória de que aqui os negros escravizados tiveram uma igreja católica quando não podiam frequentar o mesmo templo que os senhores brancos. Aqui, nesta praça era a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ela foi demolida há muito tempo, tendo algumas de suas partes aproveitadas para a conclusão da Igreja Matriz, o local sagrado dos homens brancos logo ali. Esta celebração puxada pelo grupo de maracatu e pastoral católica é para reavivar, resgatar a história deste lugar”. 

    Achei o máximo. Passava da hora de não deixar apagada um importante fato da nossa história. A municipalidade bem que poderia formar uma junta de pesquisadores, escavar, deixar um espaço protegido para que as pessoas apreciassem possíveis vestígios que estão debaixo da estátua da Nossa Senhora da Paz de Iperoig, produzir um marco histórico, fazer constar no calendário cultural etc. É isso mesmo! Estou me referindo à praça que se localiza na zona central da cidade de Ubatuba, próxima do mar, do casarão da Fundart e da igreja matriz; local que já recebeu a denominação de Praça do Rosário, Praça Marechal Deodoro, Praça da Bandeira e, finalmente, Praça de Nossa Senhora da Paz de Iperoig.  Vamos fazer uma análise do discurso? Religião e politica estão de mãos dadas. Predominava, possivelmente, apenas a denominação de largo da igreja dos pretos. Depois da destruição do templo, a religião católica determinou a homenagem à prática devocional do rosário. Vencida a monarquia, os republicanos a batizaram com o nome do marechal. Em seguida, na onda do civismo, se voltaram ao símbolo da Pátria (tão vilipendiada nos dias atuais por aqueles que são a favor da entrega de nossas riquezas aos grupos estrangeiros, mas se dizem patriotas, destroem a capital federal, cultuam o sionismo, são contra a democracia, espalham mentiras para alienar mais gente etc.). Por fim, os senhores da terra outorgam a Nossa Senhora como interventora na submissão e destruição da etnia Tupinambá, sob a classificação de paz. Paz para quem? Certamente não é para os povos originários, nem para os descendentes dos africanos que foram tornados escravos. É isto: será que não está na hora de voltar a ser o Largo da Igreja dos Pretos? 


sábado, 13 de abril de 2024

CAMINHO DA RUINDADE

 



Vô Estevan e o mano Guinho - Arquivo JRS

    Meu avô Estevan contava histórias. Nunca me esquecerei das tardes, apreciando o mar, eu e mais pessoas se postando ao lado dele para escutar as empolgantes narrativas. Criado pela casa dos outros devido a morte precoce dos pais, não sei dizer como ele aprendeu tanta coisa, tinha na memória tantas narrativas fantasiosas, de causos e fatos. Desconfio que eu herdei um pouco desse espírito dele. 

   Dos fatos históricos, sobretudo do território da Caçandoca, onde nasceu o querido vovô, mais tarde, escutando os moradores mais antigos, eu pude confirmar muitas passagens das narrativas dele. Histórias de negros eu escutei muitas. Hoje, relendo um documento de 1834, falarei a respeito do tráfico negreiro em Ubatuba, nas terras da Caçandoca e adjacências. Creio que ajudará muita gente a conhecer um pouco mais da nossa história, rever posicionamentos ideológicos, além de pretender fomentar o turismo cultural nesse município litorâneo. O ponto de partida é o Caminho da Ruindade, como os mais velhos a chamavam. Ela ainda faz a ligação entre o litoral e a Serra Acima! Originalmente ele partia do Saco das Bananas, atravessava o Sertão da Quina e chegava na Vargem Grande, no município vizinho de Natividade da Serra.  Era por esse caminho que se fazia a condução dos negros escravizados para a venda no "planalto" (Vale do Paraíba, Sul de Minas etc.), escapando das autoridades, principalmente a fiscalizadora e cobradora de taxas. (Lembremos que, em Ubatuba, a Casa de Barreira ficava onde atualmente está a estátua do Pescador, na rotatória de acesso à rodovia Oswaldo Cruz). Pelo mesmo caminho, na serra íngreme, passavam produtos e pessoas. Foi por ele que muitos caipiras vieram se juntar aos caiçaras, se miscigenaram e expandiram nossas raízes culturais, se enriqueceram mutuamente nos diversos bairros (Corcovado, Sertão da Quina, Maranduba...). Mas vamos ao documento. Trata-se do Conselho de Governo, uma espécie de Congresso Nacional da época, se dirigindo à Câmara Municipal:

Por mui circunstanciadas informações e documentos autênticos, a omissão do Juiz de Paz e Suplente dessa Vila no cumprimento de seus deveres e execução da Lei, sobre a introdução de escravos africanos que se tem realizado por diversos pontos do Distrito dessa Vila, no entretanto, que o dito Juiz asseverava ao Governo que nenhum indício havia de semelhante crime, aliás de notoriedade pública, e tanto que dois dos referidos escravos, evadindo-se do lugar em que se achavam retidos, foram apresentar-se a bordo da Escuna FLUMINENSE, que cruzava na costa por ordem do mesmo Governo e fizeram conhecer ao comandante que na Enseada do Bananal [Saco das Bananas] existia grande número deles (...). E sendo, portanto, ambos [Juiz e Suplente] na forma da Lei solidariamente responsáveis, o referido Conselho os suspendeu no exercício do cargo de Juiz de Paz para responderem em Juízo competente por uma tão criminosa omissão no cumprimento de seus deveres e observância da Lei.

    Portanto, Ubatuba foi sim um ponto dessa vergonhosa criação que é a escravização humana, dos africanos. Muitas das autoridades constituídas fizeram o que puderam para continuação dessa vergonhosa página da nossa História. Nos dias atuais vemos uma tendência reacionária muito forte na política brasileira atuando para retirar as conquistas trabalhistas, negar os direitos humanos, exterminar os povos originários, perseguir as minorias sociais etc. Tudo isto não é uma versão atual do Caminho da Ruindade?

Etempo: o Caminho da Ruindade hoje é a Trilha do Campo que liga o Sertão da Quina à Vargem Grande. É de difícil acesso, mas continua lá. Tudo lindo por lá! 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

PLANTANDO DÃO

 

É serão, vem a noite - Arquivo JRS

     Acordei com a parte da música Capim Guiné, de Raul Seixas, que diz "nem um pé de passarinho veio a terra semear". Então me veio à mente o tanto de gente que tem uma sensibilidade com a terra e as plantas, que sempre está fazendo algo de bom para cultivar árvores frutíferas para nós, às aves e aos animais. Gente que passa por nós e faz questão de prosear nesse tema, dar sugestões que melhoram o nosso desempenho, traz mudas etc. Adoro esse pessoal!

   Dias desses, um senhor, empurrando uma bicicleta, se deteve na beira da via e comentou: "Pelo jeito o senhor gosta de plantar. Tenho umas mudas lá em casa, posso lhe dar. O senhor aceita?". Prontamente disse que sim. Estabelecemos nova amizade. Não é bom isso? O nome dele é Altair, sempre foi da roça. Está chegando aos oitenta anos e continua trabalhando para os outros, cuidando de chão que não lhe pertence. Em poucas palavras ele resumiu o seu percurso de lavrador: "Sempre trabalhei na roça, mexendo com cultivo e animais. Por muito tempo fui empregado do Novaes, trabalhei na fazenda dele. Agora, tem poucos anos, a terra foi comprada por um estrangeiro. Fiquei desempregado, mas nunca parei de fazer o que eu fiz a vida inteira". Passado uns dias, lá vem o Altair com várias mudas. Adorei. E tome mais prosa sobre plantação, costumes etc. É assim que eu vou estabelecendo amizades prazerosas, de olhares, gestos e falas cativantes; não deixando de continuamente  aprender com quem tem vivência intensa com a natureza. 

   Altair. devido ao sistema no qual vivemos, precisa continuar servindo aos outros, pois apenas um lote lhe pertence. Quantos nem isto têm? Sei que muitos trabalhadores do campo, por injustiças várias, migraram para as cidades, continuam sendo explorados e vivendo em péssimas condições. Eu conheço uma grande quantidade levando a vida assim, sobrevivendo "aos trancos e barrancos". Por isso é louvável os esforços de grupos organizados, de políticos comprometidos com as questões fundiárias, com a reforma agrária. Terra é para quem trabalha. Finalizo com a frase do estimado alfaiate caiçara Isaías Mendes: "Nesta terra, plantando dá. Não plantando, dão". O meu mais recente amigo planta e dá. Vida longa a ele é o que desejo.

sábado, 6 de abril de 2024

ESCURIDÃO CIVILIZATÓRIA

 

Entre arames - Arquivo JRS

     A madrugada é silenciosa, me faz divagar, refletir a respeito de tantos caminhos e de muita gente que fez ou faz ainda parte deste caminhar que é a nossa vivência. Tudo começou em nosso lar, com nossos pais e parentes (a família expandida) convivendo numa comunidade que era interdependente da natureza, vivendo praticamente da pescaria e do roçado. Em seguida, fomos aprendendo que nossas vidas se contextualizavam numa realidade maior de município litorâneo que se voltava à economia turística. Aí veio o despertar político. Ainda era a década de 1960, quando comecei a entender um tal de governo militar que se impôs pelo recurso vergonhoso de um golpe de Estado. Na década seguinte, já frequentando o nível ginasial, no grande colégio da cidade, onde o Exército tinha o seu representante, sargento-professor para "vigiar a ordem", entendi melhor as razões, os temores que resultaram numa escuridão civilizatória na História do Brasil. Depois, convivendo com pessoas comprometidas, na busca de melhores rumos democráticos, fiz a minha opção política mais condizente com a minha classe social, com os caminhos que eu trilhara até então.  Foram as prosas e convivências que me motivaram a ler mais e a escrever. Foram exemplos de vidas bem próximas de mim que me engajaram em tantos mutirões, em movimentos populares em defesa da vida. 

      Neste momento, passados sessenta anos do Golpe Militar, faço questão de transcrever um testemunho do Washington de Oliveira, o Seo Filhinho, relacionado à já citada noite de trevas, à escuridão que atendia, sobretudo, interesses externos, de determinadas nações que ainda querem explorar a classe trabalhadora brasileira, o nosso povo, as riquezas deste Brasil. Na época, na ocasião do Primeiro de Abril que fechou as portas democráticas, o nosso farmacêutico caiçara era presidente da Câmara Municipal. Por aqueles dias precisou se ausentar da cidade para fazer uma cirurgia, deixando um aviso na porta da farmácia: "Por motivo de força maior, esta farmácia ficará fechada por alguns dias".  Imagine o alvoroço, as interpretações, os temores de que o braço militar houvesse chegado à nossa pacata localidade. E chegou! 

      De acordo com o Seo Filhinho, "foram levados pela polícia o chefe político Verano Damas, o Antônio Barbosa, vulgo Antônio da Barra, o Amaro do Bar, o Benedito Livramento, o João Theófilo - vulgo João do Campo - e o Benedito Fragoso - vulgo Filhinho. (...) Em Santos, foram levados à presença de um delegado de cara fechada, voz forte, gestos largos:

    - Vocês, hein, caiçaras de meia-pataca, comunistas! Vocês ao menos sabem o que é ser comunista?

    - Mas nós, doutor, não somos comunistas... - atreveu-se interromper um deles. Nós somos veranistas...

      - Veranistas?! Cínicos e atrevidos é o que vocês são! Ainda têm a coragem de vir aqui com essas caras deslavadas dizer-me que são veranistas?

     - É sim, doutor. Nós somos aqui do grupo do Verano... Somos veranistas...

  No dia seguinte seriam recambiados a Ubatuba".


   É isto: cultivemos também as tristes memórias políticas para que elas não voltem a acontecer. Ninguém merece retornar à escuridão, ser direcionado, reduzido a um reles analfabeto político. 

   Feliz daquele que teve a oportunidade de se acomodar na Praça da Matriz e ouvir as prosas do Seo Filhinho!

sexta-feira, 5 de abril de 2024

HOUVE UM TEMPO...

 

Caminhos no mar - Arquivo JRS

     Houve um tempo em que grande parte da riqueza produzida nas cercanias, desde o Sul de Minas até o Vale do Paraíba e adjacências, saiam pelo porto desta cidade (Ubatuba), sobretudo aquela relacionada ao contexto da mineração e da cafeicultura. O governo provincial garantia um controle fiscalizador para evitar evasão de taxas. Na rotatória da referida cidade, onde atualmente se encontra a estátua do pescador, estava localizado o primeiro posto de controle; subindo a serra, quase chegando em Taubaté, no atual Bairro do Registro, ficava outro. No acesso para Passa Quatro, indo para os sertões das Minas Gerais, controle maior se fazia necessário. Para isso, a via (que passava por São Luiz do Paraitinga e ganhava o interior) precisava estar sempre recebendo melhorias para não perder a devida movimentação portuária na localidade litorânea. No livro de Registro de Correspondência da Câmara Municipal de Ubatuba aparece a reclamação dos vereadores contra o município vizinho que não cumpre com a obrigação de cuidar da via em seu território. Isto no ano de 1838. Era notório que os interessados (fazendeiros e comerciantes que utilizavam o acesso à saída marítima) não podiam ter outra saída, deixarem de garantir os lucros que movimentavam a vida da sociedade ubatubense. Mas...segundo a farta documentação, a coisa desandou. A movimentação foi se dirigindo a outros acessos. Exemplos: Paraibuna e Paraty. Tem um trecho documentado que deixa bem claro a afirmação da Estrada Real no território fluminense: 

"Pouco a pouco derivando as tropas que se dirigem a este já florescente porto vai se encaminhando para Parati, que como é sabido, vantajosamente seus habitantes sob a proteção do Governo, vão pondo suas estradas no maior grau de perfeição, enfraquecendo e diminuindo por consequência o produto das Rendas Nacionais..."

quarta-feira, 3 de abril de 2024

DOCUMENTOS A SEREM MOSTRADOS

 

Casarão - Arte da Adriana na Toninhas

     Neste blog eu já escrevi a respeito de diversas ruínas de fazendas que tive oportunidade de conhecer em Ubatuba, desde a mais famosa (do capitão Romualdo/Estevené, na Lagoinha) até a desaparecida dos Antunes de Sá na Caçandoca. Porém, tenho consciência de que  outras ainda nem foram tiradas do mato. Pressinto que, nessa onda de invasões de posses antigas e até mesmo de destruição da mata nativa, corre-se o risco de mais documentos desse município sejam destruídos.

   Eu tenho as ruínas como documentos, como provas de um outro tempo. Dias desses, passando pela Estação Experimental, na rodovia Oswaldo Cruz, pensei na capela na beira da estrada, onde outrora abrigava um cemitério de escravizados. Isso mesmo! Antigamente, as pessoas brancas eram sepultadas na cidade, mas os negros que produziam as riquezas jaziam em terrenos reservados nas fazendas. Na mata da Raposa, no morro da Lagoinha e em outros sítios, trabalhadores e trabalhadoras tinham o seu descanso eterno.

   Se tinha escravizados, tinha fazendas, era produzida riqueza. Prova disso era o casario no centro da cidade que, infelizmente, somente os mais idosos podem se recordar, pois não houve preservação para a posteridade. A cana, no século XVIII, foi intensamente  cultivada, principalmente para a produção de aguardente. Um golpe à economia local veio por uma medida governamental, do governador Bernardo José de Lorena, obrigando os produtos serem negociados apenas no porto de Santos. Mais tarde, na fase cafeeira, um ressurgimento econômico anima a população. Pelo porto dessa cidade, grandes carregamentos garantem patamares extraordinários. No biênio 1835/1836, Ubatuba desponta como maior exportador de café do país, conforme os dados fornecidos por Afonso Taunay. É, sobretudo nessa época, que  despontam as grandes fazendas. As ruínas são as provas. Portanto, deveria ser de interesse histórico e econômico (turístico) o mapeamento desses vestígios, os tombamentos dessas áreas e um redirecionamento, inclusive na área da educação escolar. Somente tais medidas preservariam esses tesouros tão destratados até então. São documentos a serem mostrados.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

HISTÓRIA DO BRASIL


Europeus no litoral - Arquivo Hans Staden


    Os europeus, desde a invasão em 1500, se aventuraram nas terras até então ocupadas pela imensa diversidade de etnias indígenas. Logo viram que era uma enorme porção de terra este território que é o Brasil. E tinha uma potencial riqueza! Não demorou nada para este chão se encher de gente dos mais diversos países da Europa. Em Ubatuba, já no início, a extração de madeira, sobretudo pau brasil, deu início à devastação e escravização/perseguição dos indígenas. De pouco adiantou a Confederação dos Tamoios para tentar resistir aos invasores. Benedito Prezia, numa palestra a partir do seu livro Esta terra tinha dono, diz que o último grupo tupinambá acossado proveniente do litoral norte foi registrado no Vale do Paraíba, em meados do século XVIII, quando Ubatuba já abrigava até fazendas. Seo Filhinho, em Ubatuba documentário, registra o caso policial envolvendo um francês, provando que estrangeiros se apoderaram e fizeram o que quiseram. Tudo pelo lucro fácil, às custas dos pobres. Eis o fato:

  "Ainda hoje são encontrados por aqui vestígios e ruínas de fazendas instaladas nas planícies, no recôncavo das baías e enseadas, e até o aproveitamento das inúmeras ilhas que defrontam o território do Município.

   Haja vista que, em 1785, o Juiz Ordinário e de Órfãos Alferes Manoel Álvares de Moura e seu escrivão João Batista dos Santos, dirigiram-se à Ilha Comprida (localizada em frente à baía da Pecinguaba, e que se avista a cidade) e lá procederam o sequestro dos bens que ficaram por morte do francês Jean Baptiste Raton, que sua mulher Josefa Maria mandou matar e fugiu com o matador, como consta à página 109 do volume LXIII de Documentos Interessantes, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (Arquivo do Estado)

   Lá na ilha, aos 6 de setembro de 1785 o Juiz Álvares de Moura nomeou João Luiz de Morais, genro do malogrado francês, inventariante e depositário dos bens do espólio, ordenando que  'nomeasse, apresentasse  e declarasse todos os bens móveis e de raiz que haviam ficado, como fossem: dinheiro, ouro, prata, escravos, casas, terras, dívidas e heranças que se lhe devessem a ele'. Vê-se, portanto, que devia ser considerável a propriedade e razoável a fortuna de Jean Raton, na área confinada da Ilha Comprida". 

   Pois é. Essa história se passava ao mesmo tempo em que o povo originário daqui fora escorraçado, caçado até o Vale do Paraíba. Só que eu nunca aprendi e nem refleti coisa assim na escola. É pensando nisso, nas inúmeras injustiças, que precisamos de uma Educação que "ponha o dedo na ferida", não deixe a verdade de fora dos espaços de estudos. Abril começa hoje. Há sessenta anos acontecia o Golpe encabeçado pelos militares que durou  vinte e um anos. (Recentemente eles planejaram outro igual). Vivi na pele essa fase histórica, acompanhando algumas vezes o meu pai às reuniões para discutir problemas locais, coisas dos caiçaras. Eram poucos os que participavam devido ao medo que esse período da História do Brasil impunha. Ainda hoje são poucos mestres e mestras que têm coragem em fazer refletir a esse respeito, promover o amadurecer da democracia. Eu duvido que as ditas escolas militares ousarão, dirão a verdade, os reais interesses nesse tema. Democracia é coisa perigosa, pode alterar a ordem que aí está.

domingo, 31 de março de 2024

SATISFAÇÃO

Nossas matas - Arquivo JRS

 

      Nossas matas têm mais vidas do que a gente possa imaginar. A todo momento, estando caminhando por dentro dela, descobrimos coisas inéditas, seres impressionantes, fenômenos que aguçam a nossa curiosidade e nos impulsionam a querer saber mais e mais. Tempos atrás, numa cachoeira quase beirando o mil metros de altitude da Serra do Mar, encontrei um caranguejo amarelo que nem sei se está catalogado pelos estudiosos. Agora, na semana passada, correndo pelo cisco numa poça d'água, avistei um bicho parecido um escorpião. Dei um jeito de recolhê-lo com uma vareta para ver mais de perto. Não era escorpião, pois não tinha aquela cauda característica, própria para picar e inocular veneno. Seu corpo terminava com um simples rabinho. Pena que eu não estava equipado para fazer um registro. fotográfico. Conversando com o Zé Rodrigues a respeito disso, ele me contou mais coisas impressionantes dessa vegetação que nos rodeia. Um dia irei registrar uma trilha com ele, contarei mais novidades desse homem que foi criado vivendo mais tempo no mato do que entre as pessoas. 

    Foi o próprio Zé Rodrigues quem me falou de pessoas que se perderam por essas matas. Algumas dessas eu conheci. Neste momento me vem à mente o caso do Tininho que foi achado depois de longas semanas. Estava morto, entre as enormes árvores, em plena serra. Parece que saiu para descansar de tudo, no ambiente que sempre fez parte da sua rotina. Ele dizia que sua família eram os bichos que encontrava nas andanças. Ouvindo falar de um desaparecimento recente nessa maravilhosa mata que nos rodeia, perguntei ao Zé: "A onça não pode ter devorado o homem?". Prontamente ele respondeu: "Isso não aconteceu não senhor. Se tivesse comido, ela passaria aqui no rancho para me contar, me daria satisfação do seu feito".  Caí na risada.  

sexta-feira, 29 de março de 2024

TERRA PARA QUÊ?

Mutirão caiçara no Ubatumirim - Arquivo Olympio


   Eu  olhei o morro ao redor, onde outrora o meu povo cultivava sua subsistência, garantia a minha existência e a nossa cultura. Agora estava completamente ocupada por propriedades de gente rica, com quase nenhuma árvore e muitas porções de terra recoberta com cimento. A cachoeira que bastava ao povo do lugar desapareceu. Poços foram cavados nas profundidades enquanto a empresa que lucra com água não se interessa no investimento. São em momentos desses que eu mais penso na preservação ambiental. Os meus antigos, em seus roçados, não causavam tais danos à natureza porque seguiam os hábitos indígenas de cultivo em pousio. A pureza das águas era algo sagrado, delas todos bebiam. Qualquer veio d'água tinha seus peixinhos, seus camarões e demais seres que ali se sustentavam. Aos animais peçonhentos, quando a morte era inevitável, havia um lugar reservado. Ali, onde era o Buraco da Cobra, toda a comunidade sabia que deveriam ser largados os bichos mortos, sem perigo para ninguém. Os peixes e frutos do mar eram básicos na sobrevivência. Suas cascas e seus restos serviam para realimentar a terra, sustentar  as raízes e frutas tão essenciais à vida, se juntavam no monturo às folhas secas e galhos e eram revolvidos pelas galinhas, pela criação. Vidros eram guardados à parte, tinham suas serventias diversas. Plásticos não era comum. A posse da terra era para servir à vida do povo que ali habitava. Agora, lendo um documento antigo, do século XVII, lavrado pelo Juiz Ordinário Diogo Couqueiro, me deparo com a fundação da Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, cabendo ao Capitão Jordão Homem da Costa "fazer a Vila e Igreja, gastando com sua fazenda por provisão que tem da Senhora Condessa dona Mariana de Sousa Guerra [Condessa de Vimeiro], proprietária das ditas terras e Senhora... por sua Majestade e assim por esta escritura assim eu e o mais herdeiros assinados como contentes que a possa dar de sesmaria a quem lhe parecer que a possa aprovar e aproveitar e pagar dela os dízimos a Deus e os redízimos ao dito Capitão para enviar à Senhora Condessa e assim o havemos por bem e tiramos todo o nosso dito domínio e poder careçam se temos algum direito nas ditas terras para que o dito Capitão as possa dar aos ditos povoadores que é assim serviço de Deus e de Sua Majestade e da dita Condessa, sendo por testemunhas...". E segue poucos nomes, os tais primeiros povoadores. Nada se diz referente aos povos originários, à etnia Tupinambá, a nossa importante raiz cultural, uma das bases da cultura caiçara. Mais tarde, no advento do turismo, aconteceu algo semelhante: não houve esforço para aprender com as pessoas que habitavam o espaço litorâneo, que aqui viviam há séculos. O resultado está aí: uma massificação cultural e uma destruição do meio ambiente. Foi claro o desrespeito cultural! 

   Tenhamos a convicção que é a cultura, formada pelo tempo de vida humana sobre este pedaço de chão chamado de Ubatuba, que permite um elo muito forte da comunidade com todos os demais seres (plantas, animais, rios, mar etc.). Digamos que isto é espiritualidade de fato. O resto é tramoia de poucos para viverem às custas da maioria, para destruir a natureza. É evidente que a dívida pelo roubo praticado pelos invasores europeus e por especuladores dos tempos recentes ainda permanece, tem seus desdobramentos cruéis. O futuro está ameaçado.

quinta-feira, 21 de março de 2024

COM CARINHO

   

Meu filho e um livro - Arquivo JRS

  Eu acordei pensando na família, sobretudo na aniversariante Maria Eugênia, nossa querida filha.  Na primeira página da minha leitura, no livro Natureza Selvagem, a autora (Miriam Lancewood) deixa uma mensagem admirável. Vale para mim, vale para todos. Bom dia e boa reflexão, gente  do bem!


Oh, mães,

Beijem seus filhos antes que o dia termine. Deixe que a verdade sempre os ilumine. Façam com que saiam e tenham a sua vez como minha mãe comigo assim o fez.


Oh, pais,

Cantem uma carinhosa canção a seus pequenos sobre a terra à qual todos nós pertencemos. Cantem sobre o amor e sobre a liberdade como cantou meu pai na minha mais tenra idade.

sexta-feira, 15 de março de 2024

TEMPEROS PARA O VIVER

 

Temperos - Arquivo JRS

     Diante de acontecimentos políticos recentes, voltei a pensar no descaso para com a Educação e Cultura. Qual sociedade evolui com ignorância? E retomei a poesia de tempo atrás:


Esta ideia mal resolvida

Essa gente má

Mistura de milicianos

E fanáticos crentes

Cimentados com ignorância

E ruindades em geral,


É, este país vai mal!


      Há muitos fatos que abalam, modificam culturas, podendo até fazer com que desapareçam. Por esses dias, recebendo notícias das posições políticas mais reacionárias no Brasil e no mundo, vou chegando à conclusão que modernidade desaba. É triste perceber que a racionalidade está sofisticando a violência, dando retoques nos requintes de crueldade e, pior, disciplinando os mais fracos para isto: ser contra eles mesmos. O que ocorre é uma alteração da vontade de vida que se encontrava nas culturas originárias. Eu, enquanto pertencente à cultura caiçara, não quero tal modelo de sociedade. Portanto, devo me agarrar às minhas raízes, continuar aprendendo com diversos aspectos da diversidade cultural que me rodeia, me fazer "dono do sim e do não diante da infinita beleza" que é esta Terra, conforme escreveu a filósofa Viviane Mosé. Eu tenho a convicção de que as pessoas amigas, a Educação e a Cultura podem me guiar nesse empenho de preservar a Vida.

quinta-feira, 7 de março de 2024

ONDE ESTÁ A VIDA?

 

Mar bravo - Arquivo JRS

    O mar estava tentador para quem adora a energia das ondas. Muitas pranchas ilustravam aquele azul que sumia de vista. O sol castigava. O adolescente Juninho estava entre aquelas pessoas que aproveitavam as imensas ondas.

   Surfar é coisa relativamente nova em Ubatuba, de meados da década de 1970. Naquele tempo apenas a Praia Grande servia à prática desse esporte, pois a rodovia BR-101 (Ubatuba-Paraty) ainda não se completara para revelar a famosa Itamambuca e outras do lado norte do município. Pouca gente tinha condições para adquirir prancha naquela época. Também eram poucos os admiradores do novo esporte. Prazer era tomar banho de mar, pegar jacaré (descer na onda usando apenas o corpo), jogar futebol na areia e paquerar. Ouso dizer que, dentre aqueles surfistas, poucos eram destemidos. Assim, em dias de fortíssimas ondas, a maioria ficava na areia. Eram denominados de "paneleiros". Os bermudões floridos/coloridos marcaram época. O jovem da nossa história não era desse tempo. A sua prancha era de isopor.

   Os pais de Juninho, migrantes, eram caseiros, tomavam conta de uma mansão que ocupava parte do morro e da costeira de Praia Vermelha, a Vermelhinha. Naquele dia distante ele deixou a água para nos acompanhar. Os lábios sangravam porque, para quase todo mundo, protetor solar era algo desconhecido. Logo estávamos no acesso à casa. Um remanso na costeira revelava mariscos (mexilhões) e tantas outras iguarias que o mar oferece aos povos litorâneos desde os primórdios. Eu fui catando os maiores, sobretudo mariscos e saquaritás. Qual caiçara desprezaria esses frutos do mar? Com certeza seria um reforço no almoço que a pobre senhora nos ofereceria. Fui chegando, cumprimentado a mãe e filhos menores. O pai estava ausente, fazendo uns "bicos"  para melhorar as condições de sobrevivência da família. Notei que a parte elétrica na área que abrigava aquela gente estava feia, bem arruinada. Pensei: "Sabe quando o patrão vai se importar com isso? Nunca!". Então decidi: enquanto proseava eu iria fazendo os reparos possíveis. Era o mínimo que eu poderia retribuir pela acolhida e aprendizado com aquela família. Hoje o Juninho é um profissional de renome na comunicação, na propaganda. Trabalha há anos na capital paulista. É migrante lá, assim como os pais que se mudaram para Ubatuba há  décadas. Tempos atrás eu o encontrei num supermercado, estava desfrutando de um feriado prolongado. "Faço isto sempre que posso, Zé. Não perco nenhuma oportunidade. Foi aqui que me fiz e é aqui que me refaço para enfrentar o cotidiano na cidade grande". Resumindo: aquele adolescente radiante de outrora, fruto de uma educação/vivência no território/cultura caiçara, continua do mesmo jeito, animando a gente. Me pergunto agora: quantas pessoas reconhecem uma dívida para com a natureza e cultura desta cidade, desta Ubatuba?

quarta-feira, 6 de março de 2024

REINO DA DELICADEZA

Bromélia - Arquivo JRS


Um cipó e sua flor roxa,

Passarinho preto me visitando,

Vento balançando tudo.


Galo cantando desde a escuridão,

Sons agradáveis (de longe e de perto),

Coração que não é mudo.


Aromas pelos caminhos,

Saudades de gente amiga,

Bebês chegando sob encanto.


Maria Cecília, Miguel... 

Novas esperanças e alegrias:

Sonhos de acalanto.

sexta-feira, 1 de março de 2024

UMA TRADIÇÃO

  

Um galho no telhado - Arquivo JRS

   Um novo dia vem se anunciando. Refleti durante o repouso o quanto as pessoas são dominadas, usadas para que terceiros continuem se aproveitando delas. As pressões são diversas, desde as discretas mensagens revestidas em roupagens sagradas até o uso da força bruta, ameaças de demissões, de perda de “benefícios” etc. Assim é este mundo: está fortemente baseado no princípio de que a satisfação de alguns é resultado da desventura de outros. Neste momento em que muita gente já está em busca de um alimento para a manhã que vem enxotando a noite, me recordei de uma tradição do meu finado pai.

   Papai fazia de tudo um pouco, mas era carpinteiro. Eu e meus irmãos aprendemos um pouco convivendo nas obras, acompanhando seus trabalhos. Ele tinha seus rituais na realização das tarefas, mas deixava que os filhos, por teimosia, fizessem coisas diferentes, adotassem outros procedimentos. Ou seja: a gente aprendia com ele, mas ele também adquiria outros pontos de vista com a ousadia dos mais novos. A tradição a que me referi era a inauguração da cobertura de casas. Estranho? Nada! Explico: após colocar a última telha sobre o madeiramento, ele ia até o mato mais perto, cortava um considerável galho de árvore e pregava na cumeeira da casa. Ficava vistoso, chamava a atenção aquele galho verde no alto. Estava inaugurado o telhado. Ele dizia que era uma maneira de pedir a proteção da casa. Muitas pessoas da cultura caiçara ao verem aquilo sabia do que se tratava. Aquele galho permaneceria no alto por ao menos uma semana, quando perderia as folhas. Até hoje não sei de onde veio esse ritual, mas sigo repetindo-o por acreditar na mensagem, por lembrar do meu pai e por gostar dessa tradição.

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

PENSANDO ENTRE TIJOLOS


 

Domingos da Sete Fontes - Arquivo Memória

     Eu  estava na obra até agorinha mesmo assentando tijolos. A colher de pedreiro, o prumo e o nível são importantes instrumentos nessa etapa. De repente me deparo contemplando o nível. É de ferro, pesado, grande. Bem antigo. Nunca tinha visto um igual até aquela data, há alguns anos, quando o recebi de presente da amiga Mirtes Harumi Honda. “Pertenceu ao meu querido pai. Acho que estava com ele desde os primórdios, quando chegou do Japão. Agora é seu”. Outros muitos presentes (molinete, martelo etc.) aceitei com muito carinho naquele dia, quando a estimada Mirtes estava se mudando de casa.

 

    A  história do Sr. Honda  eu guardei apenas em partes. Soube que era um exímio calígrafo, função muito respeitada na sua terra natal. No Brasil se tornou comerciante. Tive o prazer de apreciar seus fragmentos de textos, suas mensagens que ocupavam espaços em sua residência, no centro da cidade de Ubatuba. Admirei suas esculturas, escutei suas  aventuras e  aprendi muito das suas paixões. Devotado à família, juntamente com a esposa (Dona Hamako), educou magistralmente seus rebentos. Em Ubatuba, pescou muito pelas costeiras sempre acompanhado pela fiel companheira, cuja honra eu tive em transcrever as memórias, sob o título O caderno de Hamako. Agora, olhando esse instrumento, imaginei o Velho Honda ali, fazendo comentários, segurando aquela peça, dizendo dos trabalhos que realizou, se sentindo feliz por eu tê-la recebido.  Talvez até dizendo que eu herdei  traços de sua personalidade que acompanham seus instrumentos. Eu acredito nisto e creio que faz parte da mística caiçara. É assim que vamos conhecendo o mundo. Já escreveu o filósofo Nietzsche: “O homem conhece o mundo à medida que se conhece: a sua profundidade desvela-se-lhe à medida que se espanta de si próprio  e de sua complexidade”. Portando, olhar, admirar, imaginar os momentos que alguém viveu ao utilizar ferramentas, máquinas etc., me leva a contemplar a grandiosidade da humanidade, de acreditar que grande parte dela sustenta profundas esperanças capazes de reorientar nossas vidas e de garantir a vida dos demais seres que compartilham deste planeta.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

NAS ALTURAS

    A Mantiqueira está verdejante. A Serra do Mar está depois do Vale do Paraíba. O mar está longe. Por todo lado a classe trabalhadora dá a dinâmica da sociedade humana. Há uma grande massa que se movimenta desde a madrugada, que dá vida ao país.  Exuberante mesmo é a natureza! Os estragos (pequenos e grandes) são causados pelos homens, sobretudo os mais cobiçosos e ignorantes. Assim vai se poluindo rios, mares, ar, matas etc. O grande desafio é refazer narrativas, rever conceitos para compreender o que significa a interdependência de tudo que há na Terra. A verdade é uma só: nós até podemos nos dizimar, mas a natureza se reconstruirá sem nós. Pena que muitos seres também serão dizimados certamente para sempre. Por isso é essencial o papel da educação (formal e informal, popular e erudita...). Assim, neste começo de ano letivo por todo o Brasil, quero desejar à classe dos professores e professoras muita energia. Muita boa energia! Vamos nos libertar de toda a negatividade, de todo espírito de destruição que por ventura resista em nós. Desejemos/construamos um ar puro, uma água renovadora, uma sociedade solidária, um mundo de justiça... Já dizia o finado tio Clemente, nascido na praia da Fortaleza: "Todos nascem filhos de Deus, mas no decorrer da vida há aqueles  que  se tornam discípulos do Diabo". Concordo com ele. São estes últimos que jogam contra a felicidade para todos, que seduzem mais gente para o lado deles e infernizam a vida dos mortais. Ou seja: céu e inferno é aqui, dependem de nós. Enfim, uma vida melhor para todas as pessoas é o espírito deste dia e de cada novo alvorecer em minha vida. Espero que para cada leitor deste blog seja o mesmo. Força, minha gente!

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

ONDE?

     

Natureza - Arquivo JRS

                                                                                                                                                                                                               Estou escutando os passarinhos. A mata é perto, além de toda a diversidade que rodeia a nossa moradia. É festa por todo o bairro. Agora estou sem celular, sem mandar ou receber mensagens de tanta gente. Deu pane geral no aparelho. Lógico que penso nisto! O que fazer? Comprar outro está fora dos planos devido aos gastos que estamos tendo nos últimos tempos. Estou pensando nas vantagens e desvantagens dessa situação. Como continuar me mantendo em contato com a minha gente? Tenho que retornar a hábitos deixados para trás, dar um jeito de remediar a crise. Eu sou do tempo das cartas, mas acredito que o blog e o e-mail conseguem sanar parte do problema. Mas quem disse que é problema?   Tenho meus artesanatos, livros para ler, cadernos para fazer anotações e escrever textos. Mais importante: tenho gente ao meu redor e estou sempre disposto a uma prosa! A minha gente entenderá. Ah! E a gente pode se visitar para um forte abraço que mata a saudade!

 

       Agora vivo a espera de novidades: do bebê do casal amigo que vai nascer, da correria de tanta gente que trabalha, da minha filha e do meu filho na luta do dia a dia, de livros que pessoas talentosas estão escrevendo, dos títulos que um amigo certamente está lendo, de músicas que estão animando os fandangos caiçaras, da chuva que atrasa um pouco as expectativas etc.

       

     Portanto, minha gente estimada, verei regularmente o e-mail para me comunicar virtualmente. 

      É o de sempreronaldo.jrszero@gmail.com

 

    Abraços. Até.

 

domingo, 28 de janeiro de 2024

É GENTE NOSSA!

  •  
  •  Arquivo R. Ferrero 


  •       Adoro ouvir histórias,  sobretudo quando elas transmitem aspectos da resistência da cultura caiçara. O texto a seguir é do estimado Roberto Ferrero, da praia da Enseada.  Gratidão, irmão. 

  •   Em 2014, um grupo de amigos deu o ponta pé inicial na @aarcca_ubatuba. É uma associação com o objetivo de fomentar a cultura caiçara na região através da corrida de canoas, que já ocorria de forma espontânea em algumas comunidades de Ubatuba. O primeiro desafio foi mapear todas comunidades que realizavam a festa ou aquelas que deixaram de realizar. Entender os gargalos e dificuldades de cada uma para traçar um plano de ação. Era muito legal ver o empenho de cada comunidade e a vontade de outras em participar. Teve ano que tinha corrida até duas vezes por mês! Mas também era muito difícil encontrar um plano que contemplasse todas comunidades, que tem realidades diferentes entre si. Foram inúmeras reuniões e desgastes! Uma década de luta se completa esse ano, muito legal ver onde chegou!
  •     Na foto Juarez e Eu, numa barraquinha que arrendamos na Caiçarada para vender bolinho de arraia e tainha frita para arrecadar fundos para a associação! E tempo!

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

POUCAS VEZES FOI SORTE...

 




   Avisto uma coisa sobre a mureta, me aproximo. Vejo que meu sobrinho faz o mesmo. "Que é isso, tio?". Seguro aquela delicadeza na mão, peço a ele que tente adivinhar.    "Não sei, mas parece um osso". Confirmei e expliquei: "É um osso,  do peito do frango. O povo caiçara, a nossa gente mais antiga o nomeia como osso jogador. Na verdade,  este título  se justifica porque ele era recurso para encerrar disputas, concluir apostas etc.". Notando que o jovem ainda não compreendera quase nada, fiz uma demonstração. Segurei uma haste do ossinho e pedi que ele fizesse o mesmo do outro lado. "Tá firme aí? Agora vamos apostar: quem perder lavará toda a louça que lota a pia. Tá bom assim?". Ele concordou mesmo sem ter captado toda a lógica. Eu continuei: "Segura bem  na ponta usando o polegar e o indicador. Vou contar até três.  Aí puxamos estas perninhas do osso. Quem ficar com a maior parte é o vencedor. Lá vai: 1...2...3!". Adivinha quem teve um monte de louças para lavar?

  São detalhes assim, aparentemente insignificantes, que se compõem,  resultam numa cultura. Cultura é cultivo. Se a gente não cultivar...Onde vamos parar?