sábado, 30 de junho de 2018

SÃO PEDRO PESCADOR









Procissão marítima (Arquivo JRS)
               É emocionante ver os pescadores, suas famílias e amigos se empenhando para fazer uma apresentação legal, que dá prazer ver e aplaudir. É uma tradição da nossa cidade (Ubatuba), desde quando a população praticamente era só de fiéis católicos, devido à colonização portuguesa. Foram os antigos caiçaras que escolheram Pedro, um dos seguidores de Cristo de acordo com a tradição, como padroeiro dos pescadores. "Pedro era pescador no mar da Galileia". A procissão marítima faz parte da religiosidade caiçara do nosso município e enriquece o nosso folclore, constituindo um importante evento turístico.

             Religião faz parte da cultura humana. Gosto da definição de cultura - e de seus complementos! -  dada por Rubem Alves: "A cultura é o nome que se dá a esses mundos que os homens imaginam e constroem". Isto reforça a minha crença de que "não existe cultura sem educação. Cada pessoa que se aproxima de uma criança e com ela fala, conta histórias, canta canções, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repreende, ameaça, é um professor que lhe descreve esse mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar". 
              A voz da cultura nas diversas manifestações (pesquisas, técnicas, músicas, expressões religiosas, artes etc.) ajuda a entender os nossos desejos. "A sugestão que nos vem da psicanálise é de que o homem faz cultura a fim de criar os objetos de seu desejo (...). Há situações em que ele pode plantar jardins e colher flores. Há outras situações, entretanto, de impotência em que os objetos do amor só existem por meio da magia da imaginação e do poder milagroso da palavra". E nasce a religião... E nascem as inumeráveis tendências religiosas... E continuam nascendo as infinitas denominações de igrejas... E continuam atitudes fanáticas negando que tudo isso é nossa criação, é cultura humana! Assim, dentro da lógica capitalista, os homens vão se dividindo ainda mais, sendo facilmente dominados, caindo na rede que, privilegiando pouquíssimos, leva o mundo (a humanidade) para o fim de tudo mais rapidamente.
                Hoje, estou pensando naqueles pescadores que deixam de aproveitar uma data na cultura local por estarem aprisionados a uma rede de símbolos e de significados. "A minha igreja condena isso". Vejo pescadores perdendo oportunidades de alavancar a sua profissão, deixando de fomentar o turismo dentro das características do lugar onde eles se encontram, nesse meio ambiente fantástico!  Pobres coitados que não percebem que "coisas e gestos se tornam religiosos quando os homens os batizam como tais". Ainda bem que, neste ano, o número de barcos aumentou nesta manifestação cultural denominada procissão marítima! Também achei legal um grupo, remadores em pranchas, acompanhando os barcos no trajeto. Tenho certeza de que essas imagens são atrativos turísticos, dão contribuição à identidade do nosso lugar!
            Enfim, esse sentimento religioso pode ser positivo se criar espaços de socialização, de solidariedade entre as pessoas. Mas eu sou daqueles que preferem a nossa razão construindo diques contra o caos conduzido por modelos econômicos de exploração e destruição de vidas, da Terra. Pobre do discurso religioso totalmente alienante! Pobre dos pobres enredados nesse tresmalho!

sexta-feira, 29 de junho de 2018

A CRUZ... A LENDA

A Cruz de Ferro (Arquivo JRS)


               Meu tio Salvador sempre gostou de cantar umas músicas singulares, dessas que raramente escutamos por aí. Ele tem prazer em continuar repassando aquelas músicas que contém letras interessantes, que falam de fatos históricos e de causos da nossa gente. Foi por uma cantoria dele que eu me interessei pela Cruz de Ferro, na subida da serra, em Ubatuba. Hoje dizem que é lenda. 
               
        O caminho, por onde passava gente e tropas, hoje virou a rodovia denominada  Oswaldo Cruz. Por ela passam carros dia e noite. Oito quilômetros dela é serra íngreme. Pela metade desta distância está a Cruz de Ferro, venerada desde o tempo dos tropeiros. Em sua base está uma história de vingança. Foi o lugar em que o cruel Basílio assassinara Juca, o tropeiro.

               Tudo começou longe dali, no município de Cunha, quando Basílio, também tropeiro, iludiu e levou embora a esposa de Juca, a Maria, deixando em casa apenas o pequeno Gregório, o Gorinho ainda bebê. O honesto  tropeiro caiu na tristeza, mas não se omitiu na tarefa de pai. Para a criança, a sua mãe tinha morrido. Cresceu acreditando nisso. Porém, Basílio de vez em quando aparecia para lhe fazer desfeita, causando muita vergonha a Juca. Na verdade, a intenção dele era matar o homem, o primeiro amor da sua companheira. Foi por isso que, mesmo não largando a vida de tropeiro, Juca se mudou com o menino para Ubatuba, perto do mar. Ele continuava sempre triste, mas o menino logo se adaptou à cidade e ao mar. De caipira virou caiçara. Só não era pescador. Era tropeiro como o pai.
               Numa das viagens, subindo com uma tropa de tecidos para São Luiz do Paraitinga, bem no meio do caminho, na serra encharcada pela chuva da véspera, um homem descarregou em Juca a sua garrucha, ferindo o mortalmente e fugindo. Era Basílio. O coitado do Juca, percebendo a morte certa, contou ao rapaz, o seu filho tão amado, a sua história, a história deles, pedindo que um dia o vingasse. E ali expirou. Uma cruz de cabreúva marcou por muito tempo o local. Diz a história que após quinze anos, Gorinho esperou na mesma subida e acertou as contas com o assassino de seu pai. Uma punhalada bem dada deu fim ao bandido, ao destruidor de uma família honesta. O corpo ficou largado para que os animais dessem um fim. O rapaz apenas tirou a camisa ensanguentada e levou até a cruz, agora de ferro, que substituíra a de cabreúva. “ Meu pai, o senhor está vingado”. E colocou na cruz a camisa do maldito. E, enquanto viveu, uma vez por semana Gorinho subia a serra para acender velas e rezar ao pé da cruz. O milagre, diz a história, é que do nada surgiu uma roseira vermelha que sempre viveu abraçada à cruz após a morte de Gorinho. Eis a Lenda da Cruz de Ferro. E até hoje pessoas devotas param ali para suas orações.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

O TEMPO RUIM PASSARÁ

O mano Mingo, se valendo da poesia, consegue em poucas linhas, numa folha de papel, dizer o mesmo tanto que cabe em tantos livros grandes. Tenhamos um novo dia, pois qualquer dia desses haverá o amanhã. Quer mais? Visite barbatuba.blogspot.com.




O tempo ruim passará



















Tudo estava em equilíbrio,
o livro caiçara da vida sendo escrito e vivido
nas praias de Ubatuba,
quanto o vento veio e virou a página
para o capítulo da especulação imobiliária,
da grilagem das terras,
do fechamento das praias
e da destruição dos ecossistemas.
Mas continuamos a resistir e praticar
nossas técnicas de pescar,
cultivar, amar a terra, o mar, as pessoas,
rompendo as ondas,vencendo os problemas,
pois a caneta ainda está em nossas mãos
e a nossa história voltará a ser escrita,
e dessa vez será em poemas.

domingo, 24 de junho de 2018

ATENÇÃO NO RUMO

           
Oliveira, o remador. (Arquivo JRS)

Praia do Perequê-mirim (Arquivo JRS)
             Aproveito sempre o silêncio do dia que começa para me recordar de muita gente boa, de pessoas que estão em outros lugares: alguns próximos, outros distantes. Quantos dividiram comigo momentos maravilhosos!?! Se ficaram na memória, é sinal que dividimos coisas do nosso ser; que a nossa comunhão abriu caminhos neste mundo. Neste momento me lembro de um trecho da música do caiçara Francisco Alves da Silva, o Chico Arves: “Companheiro me ajude/ que eu não posso cantar só./ Eu sozinho canto bem,/ com você canto melhor”. E me recordo das rodas de prosas dos caiçaras pelos jundus das praias. Nesta semana, mais um desses proseadores nos deixou: trata-se do Luís Carlos, da praia do Perequê-mirim. De acordo com a comadre Luzita: “Ele morreu pela falta do pai, pois desde que a mãe faleceu há muitos anos, os dois viveram juntos. Agora, tem menos de um mês que o pai se foi. Ele perdeu o companheiro de toda vida, não aguentou, morreu nesta madrugada”.

             O Luís Carlos era quem cuidava da praia do Perequê-mirim. Assim que o dia amanhecia, ele já estava rastelando e carregando tudo aquilo que encalhava no lagamar: folhas, galhos, lixo plástico, vidros etc. Fez isso por décadas. Assim, a areia continuava agradável de se ver, convidativa para nossas caminhadas. Numa dessas ocasiões, eu permaneci com ele e o Oliveira por mais de uma hora conversando  no porto do Pedro Cabral, recordando de tantas coisas da gente.

                       Testemunhar uma vida chegando a este mundo é uma experiência maravilhosa! Maria Eugênia e Estevan são as nossas realizações máximas, né Gal? Vovó Martinha, a parteira, contava detalhes engraçados e/ou impressionantes: “Sinfrônio, o Velho, sofria as mesmas dores da sua mulher Maria. Era como se ele também estivesse esperando um filho naquela barriga murcha. Até vomitar vomitava o coitado. Desde o Pulso até o Saco das Bananas não tinha quem não se impressionasse com o sofrimento dos dois. Tudo se acabou quando eu peguei a criança, numa madrugada de um domingo, numa época de tainha. Pai e mãe voltaram ao normal, aquelas dores se foram, a criança cresceu, a vida continuou”. Creio que os mesmos sintomas acompanham  a perda de uma vida. É, a vida é assim! As pessoas passam em nossas vidas, nós passamos nas vidas das pessoas. Edirani Lopes assim se expressou: “Sinto saudades de pessoas que nem imaginam o tamanho da falta que me fazem”.          E, com certeza, cada uma dessas pessoas deixou um pouco dela e levou um pouco de nós.  Oliveira, o velho caiçara da Fortaleza, naquela manhã de prosa no jundu, junto com o agora saudoso Luís Carlos, disse: “A vida continua. Eu sigo remando nela com a minha canoa até que este corpo aguente ou que nenhuma tormenta me alague. Não pretendo desembarcar tão já. Só presto atenção no rumo que vou tomando”.     

sexta-feira, 22 de junho de 2018

NENHUMA BULHA MESMO!

Olha o Pico do Corcovado, gente! (Arquivo JRS)

           Somente uma vez eu fui no Sertão do Corcovado (onde o Pico do Corcovado domina a visão), acompanhando a vovó Eugênia, na casa de sua prima Izabel Ribeiro e do primo Jehú.  Muitas outras vezes fui sozinho por lá. Aquele dia já está distante, mas a história que escutei na casa da Tia Izabel ainda me vem em detalhes.

          “Eu nunca fui no Morro do Corcovado, onde a mocidade de hoje chamam de pico. Também não tenho coragem. Muita gente, desde os mais antigos, diz ser um lugar mal-assombrado. Cruz credo! Os meus finados contavam uma história assim: naquele morro mora a alma de um preto desde o tempo da escravidão. Lá, após ser chicoteado pelo fazendeiro ruim, ele se refugiou. Só se sabia que ainda estava vivo porque, de vez em quando, ele descia para comprar alguma coisa que lhe faltava. Não trazia dinheiro, pagava com ouro que trazia dentro de um gomo de taquaruçu, despertando a cobiça de muita gente. Queriam saber de onde o preto tirava ouro. Muitos tentaram seguir o preto, mas nunca ninguém conseguiu. Ele desaparecia no mato. Muita gente ainda jura até hoje que, em noite de luar, quando se avista toda a grimpa do morro, num ponto do paredão está uma figura escura cantando entre assobios de flauta. Cruz credo!”.  E as duas se benziam constantemente, como se assim ficassem livres de algo ruim só de relembrar a lenda. Mas... ninguém consegue se segurar diante de narrativas assim, né?!? É fantástico se arrepiar com tais histórias! E a vovó, mesmo sabendo de cor e salteado, queria que eu escutasse a Tia Izabel.

        “Até o fazendeiro ruim, que tanto maltratou o preto, se aventurou com alguns escravos naquele morro em busca da riqueza do preto, do tão cobiçado ouro. De lá nunca mais voltou. Do tanto de escravos que seguiram com ele na empreitada, somente um voltou assombrado. Depois de alguns dias conseguiu soltar a fala. Disse que, quando já estavam quase em cima, no Morro do Corcovado, um passarinho muito diferente chamou a atenção deles pela picada, onde o mato que havia era só pés de candeia cheirosa. Lá, depois do lugar conhecido como Sombreado, numa casa que parecia brilhar, estava o preto sentado num banco no terreiro. Em volta dele, convivendo como se fosse uma só família, se encontrava toda sorte de bichos e de aves. A visão fez com que todos perdessem a fala. Era milagre. 'Só gente de coração bom vive desse modo, numa paz nunca vista. Creio que nunca hei de ver nada parecido nesta vida. Do mesmo modo que chegamos fomos saindo. Nisso uma manada de cateto apareceu mostrando os dentes e rosnando com muita raiva. No desespero todo mundo se desembalou morro abaixo; foram se despencando nas grotas. Acho que morreram todos a julgar pelos urubus voando nos dias seguintes por ali, desde o Costão até o pé do Corcovado. Nem sei como escapei com vida. Eu acredito que é milagre divino para, assim, a notícia ser dada para todo mundo' ”. Pensei comigo: “É, deve ser  mesmo".                                                                                                                   
          O meu compadre Sérgio, visitador regular do Pico do Corcovado, jura que, de fato, em noites claras, se escuta mesmo um assobio fininho e uma melodia que é agradável, mas que não se entende as palavras. “Nessas ocasiões, compadre, nenhum barulho se escuta no mato. Nenhuma bulha mesmo! Parece que tudo se cala para poder escutar a toada, a música que parece escapulir da greta da pedra.  A gente fica encantada. Precisa ver!”.

         Na próxima vez que você apreciar a visão da serra, tente se lembrar dessa história que é do Morro do Corcovado.
                                                                                                                                                   
           

domingo, 17 de junho de 2018

ANARRIÊ

Mestra Laureana (Arquivo JRS)

Mestre Élvio (arquivo JRS)

Mestre Ostinho (Arquivo JRS)

         A amiga Rosa participa da comunidade católica da praia da Lagoinha, onde,  entre outras coisas, se destaca a Quadrilha do  Mestre Tonhão. "Estou ensaiando a dança da quadrilha, com o Tonhão, Zé".

         A dança da quadrilha,  bem tradicional no nosso litoral no mês de junho (nas Festas Juninas), na comunidade citada acima, é ensaiada pelo amigo Tonhão que, desde que veio de Minas Gerais se engajou na comunidade que ainda estava em formação. E assim, a cada ano, acontecem ensaios, apresentações na festa da capela (São Maximiliano Kolbe), nos outros bairros e até mesmo em outras cidades. "Legal, né Rosa?!? Agora, pelo que sei, apenas duas quadrilhas continuam empolgadas no nosso município: a de vocês e a do Itaguá, onde Mestre Élvio se esmera com a turma da comunidade. Ah! Tem também a Caiçarada do Cortiço, os herdeiros do Velho Rita!".

        Adoro dançar quadrilha! Quando criança até ganhei um prêmio pela dança bem caipira. Na verdade, eu e minha dama (Kátia Coimbra) ficamos bem contentes pelo guaraná e sanduíches daquela ocasião. Pena que essas nossas tradições (quermesses nas capelas, arraiás nas escolas, comidas típicas, leilões etc.) estejam se apagando. Me alegro quando aparece no radar caiçara gente retomando coisas da nossa terra. Agora, por exemplo, tem os grupos de fandangos na região central e no norte. Me afiançou o primo Ostinho: "A criançada do Prumirim, herdeiros do Mestre Orlando, estão empolgadas nos ensaios. Você precisa ver, Zé!".

         A dança de quadrilha deriva das danças aristocráticas realizadas nos palácios europeus. Veio para o Brasil junto com a Corte, em 1808. A maioria das suas marcações ainda trazem traços da língua francesa. Quando criança, na escola do Perequê-mirim, ouvia o Mestre Altamiro (e depois o Mestre Dito Carneiro, a Mestra Alice e a Mestra Lúcia da Bá) comandando a coreografia: "Avantu" (en avant tous): de ir para frente; "Anarriê" (en arrière): ir  para trás; "Changê" (changer/ changez): trocar o par; "Otrefoá (aute fois): repetir o movimento; etc. As outras marcações (Caminho da Roça, Caracol, Grande Roda, Olha a Chuva, Coroa de Rosas, Coroa de Espinhos etc.) são bem nossas, da cultura brasileira mesmo! E o casamento na roça, gente! Tem outra encenação mais gostosa e tão à vontade ?!?

          Houve um tempo em que, em todas as escolas, a Festa Junina era a marca principal. Era o Evento! Havia competição e empenho de todos, sobretudo das famílias dos alunos. Hoje, conforme o amigo Manoel: "Ninguém tem animação. Poucos alunos querem ensaiar porque são evangélicos, os pais não permitem. Também há professores que, por motivo religioso, não se comprometem nessas manifestações populares. Muitos dos pais nem comparecem em outros eventos da escola, imagine em festa junina!".

         Apesar do notório anarriê, tem gente sustentando as coisas, fazendo despontar novos sinais no nosso radar caiçara. Grande força, Mestra Laureana! Grande força, Mestre Tonhão! Grande força, Mestre Élvio! Grande força, Mestre Ostinho!

               À minha filha e o meu filho, uma pequena parcela do ser caiçara: estudem bem, vivam o melhor possível sem perder de vista a nossa identidade, o nosso lugar e a nossa família.

domingo, 10 de junho de 2018

CADÊ O CHICO?

O peixe do Chico Goiabeira (Arquivo JRS)

Chico Goiabeira na varanda (Arquivo JRS)


               Na noite passada tive um sonho engraçado: eu me encontrava com o Seo João “Madruga” e ele me perguntava: “Cadê o Chico, Zé?”. Perdi momentaneamente o sono, fiquei pensando sobre o sonho. Achei a resposta ao me lembrar de uma escultura, feita a alguns anos, a partir de um galho da goiabeira do nosso quintal. Certamente que ele se referia ao Chico Goiabeira.
               O “Madruga” é o meu vizinho mais antigo, foi um dos primeiros do loteamento. Trabalhou sempre limpando terrenos dos outros e fazendo outros serviços temporários. Agora vai se virando com uma aposentadoria minguada, mas vai vivendo. De vez em quando eu vou até a sua casa para prosear um pouco e ver se está tudo bem. Assim que eu terminei a nossa casa, depois de estar morando nela há um bom tempo, eu o contratei para espalhar uma viagem de barro no quintal. A minha goiabeira já estava frondosa, com tralhas de batata doce se espalhando à sua volta. Seo João, assim que viu a área disse:

               - Bem ali, onde está a goiabeira, um homem morreu. Aqui era tudo mato; pouca gente morava. Chamaram a polícia assim que descobriram o morto. Nem sei se era gente daqui; também nunca soube o nome do falecido. Alguém, na época, disse que era Chico. Não sei se era mesmo. Depois disso, as pessoas evitavam passar por aqui, diziam que era um lugar assombrado. Você não tem medo? Nunca viu nada estranho por aqui?

               Lógico que não tenho medo dos mortos! Temo mesmo só os vivos, sobretudo os pilantras e maldosos. Sou da opinião que as assombrações, após a iluminação das nossas vias, deixaram este mundo. Já não há espaço para as medonhas coisas que imaginávamos existirem na escuridão. Nem vaga-lume se vê mais! Por fim disse:

               - Valeu, Seo João! Vou me lembrar sempre dessa história ao olhar para a goiabeira!

               A goiabeira cresceu, exigiu uma poda mais radical. Então, olhei um galho e imaginei uma escultura. De pouco em pouco, aproveitando os espaços de tempo, dei forma e batizei a obra: “Este é o Chico Goiabeira. É para ajudar a recordar sempre do coitado que morreu onde nasceu a goiabeira”.

               Cadê o Chico Goiabeira? Tá aqui, ó! O lugar dele agora é junto aos nossos livros!

sexta-feira, 8 de junho de 2018

ONDE GANHEI CABELOS BRANCOS

            
Praia da Justa e Ilha da Pomba (Arquivo Ubatuba Antiga)
          Nesta fotografia antiga (aproximadamente 1950), na tomada aérea, como se estivesse olhando do morro, pouco depois das terras do saudoso tio Durval, se avista bem a Justa e não tem como negar que a área era bem ocupada, com roças e moradias. Dentre caiçaras de muita importância para o município, eu cito a Maria Balio que dizia assim: "O meu umbigo está enterrado na Justa, onde nasci". Era filha do telegrafista que mais tarde foi morar na praia do Sapê. Sim! Na praia da Justa havia um posto de telégrafo! Era o último posto estadual (o seguinte já se localizava em Paraty, no Rio de Janeiro). O destaque, ali bem tranquila naquele mar que nos faz cochilar, é para a Ilha da Pomba, da história que eu já contei em outra ocasião.
               Você não sabe a história da pomba? O dó! Assim o tio Dico me contou: 

               "Na Pomba, aquela ilha de frente da Justa, morava uma mulher já idosa. Quase no fim da vida ela teve que enfrentar uma causa na Justiça porque alguém, dessa gente de fora que tinha muito dinheiro, estava grilando a sua terra, a Ilha da Pomba. Essa foi a sina de tantos caiçaras:  perder a terra, a única posse que tinha, para os ricos que vieram com o turismo. Assim, depois de anos em litígio, ela perdeu mesmo a causa. Quem vai olhar pelos direitos dos pobres, meu filho? Mas dizem que na última audiência, ela desabafou inutilmente: 
                 'Escuta aqui, seo doutor, eu sei que tenho poucas chances de vencer esta causa porque eu sou pobre, sempre vivi da roça e do mar desde que me entendo por gente, mas mesmo assim eu vou desabafar. A Pomba é a minha terra desde muitas gerações. Os meus pais eram da Pomba; os pais e avós deles também nasceram na Pomba. Na Pomba eu nasci. Na Pomba eu me criei; cresci sem nem mesmo conhecer a vila. Esta causa foi que me trouxe pela primeira vez aqui, na cidade. Na Pomba eu me casei. Na Pomba eu tive meus filhos. Na Pomba eu ganhei cabelos brancos. Agora querem me tirar a Pomba?'".

segunda-feira, 4 de junho de 2018

VELHAS TOADAS

Grupo de Fandango (Arquivo JRS)
João Alegre e Renato Teixeira (Arquivo Ubatuba Antigo)



               Eu não sou bom em canto, nem instrumento toco, mas sempre gostei de apreciar a minha gente cantando e embalando nossos momentos caiçaras com as “modas da gente”.  Acho que o meu filho Estevan e o meu sobrinho Régis vão nessa direção. Que alegria!

               Na minha infância me encantava ouvindo o Maurício do Bonete, o Ondino e o João de Grilo da Fortaleza, o Elias do Dário, o tio Maneco Armiro, o Doquinha da Ribeira, o Zacarias Julião do Corcovado, a Rosinha e o Jovelino do Lázaro, o Galvão do Centro e tantos outros. Numa ocasião, o cantor Renato Teixeira citava outros caiçaras que exerceram influência no seu estilo musical. João Alegre e Chico Alves estavam entre os que, na Praça da Matriz, encantavam o jovem Renato. Hoje, para recordar o “Chico Arves”,  o nosso Francisco Alves da Silva, vai esta tontinha:


               Companheiro me ajude/ Que eu não posso cantar só.
               Eu sozinho canto bem/ Com você canto melhor.

               Cadê o meu companheiro/ Que me ajudava a cantar.
               Decerto ele já morreu/ Deus lhe dê um bom lugar.

               Minha camisa de folha/ Minha calça de cipó.
               Eu já vou tirar imbé/ Pra fazer meu paletó.

               Paulino era uma criança/ Tinha dezessete anos.
               Que pedi: Tome cuidado/ Por sua mãe não engano.

               Eu já fui passar por serra/ Para ver a santidade.
               Só nunca vi terra tão santa/ Gente com tanta maldade.

               Tava na beira do cais/ Quando meu bem se embarcou.
               Foi a prenda mais bonita/ Que a onda do mar levou.

               Pescador que vai à pesca/ Com anzol de alegria.
               Bota no peixe dourado/ No tombo da maresia.

               Essa casa tá bem feita/ Com a cruz na cumeeira.
               Eu saúdo o dono da casa/ E sua família inteira.

               Lá detrás daquele morro/ Tem carvão, muita faísca.
               Peguei te querer do bem/ logo na primeira vista.

(Recolhida por Marcus Pereira, em 1973)

sábado, 2 de junho de 2018

VENTO SALGADO

Canoa grande da praia Mansa (Arquivo Rê)


               Olhando a fotografia, parece que foi ontem a minha despedida da praia Mansa, na Ilhabela, onde uma comunidade caiçara me acolheu tão bem, com tanto carinho. Numa ocasião anterior, foi a mesma coisa com um grupo de jovens, estudantes que me acompanhavam, todos da escola “Aurelina”, no bairro da Estufa, em Ubatuba. Por alguns dias, puderam ouvir e conviver com pessoas que viviam bem distantes de tudo (das facilidades do progresso), cultivando banana, mandioca, batata doce, cana, feijão e milho;  dependendo do mar em muitas coisas; festando sempre que uma oportunidade aparecia. Ali, fazendo parte de quase tudo, estava o amigo Pedro, o professor, cidadão de São Luiz do Paraitinga que se acaiçarou há muito tempo. 
Praia Mansa  e escola(Arquivo Rê)

         Na escolinha, no jundu, ficamos protegidos e alimentados por alguns dias. Assim que a noite chegava, conversávamos a respeito de tudo, sobretudo daquilo que estávamos vivendo. Conforme fala recente do Cláudio do Juquinha, um daqueles jovens da citada experiência: “Não tem como a gente se esquecer dos dias que ali vivemos. Devemos muito a você pela oportunidade”. É, já está completando vinte e cinco anos. Saudações a todo mundo que encarou o desafio, que enfrentou frio e chuva, que tomou banho na cachoeira gelada, que deu gostosas risadas, foi solidário e sentiu o que é solidariedade. Abraço forte a vocês!

               Na fotografia acima está o momento em que embarquei de volta,  na ocasião seguinte, deixando por lá pessoas muito estimadas. “Vamos, Zé. Vamos no rumo do porto da Ilha. Você vai gostar de sentir o vento salgado”.  Creio que foi a única vez que deixei de enfrentar a trilha dos Castelhanos, de sete horas bem caminhada, até o porto principal de embarque e desembarque da Ilhabela. 
Ponta da Cabeçuda. Lá em cima a Pedra Cortada (Arquivo Rê)

       Na embarcação, fui escutando, entre berros (porque o motor era muito barulhento), detalhes dos lugares (praias, costeiras, lajes etc.) e de causos da Ilha: “Aquela é a Ponta da Cabeçuda. Dizia o meu finado pai que, bem antigamente, um velho morava ali. Ninguém sabia de onde veio porque ele não falava. Diziam que se tratava de um sobrevivente de um navio que afundou perto da costeira, por ali mesmo. O coitado passava a maior parte do tempo olhando o mar, como se esperasse a chegada de alguém, possivelmente de algum lugar do estrangeiro. Nunca pareceu ninguém para lhe dar essa alegria. Até que num belo dia, o avistaram sem vida na Pedra Cortada. Ali mesmo, na cepa do coqueiro indaiá, ele foi sepultado. Seus ossos devem estar lá até hoje. De vez em quando alguém diz que avista um vulto olhando o mar no mesmo lugar onde ele morreu, na Pedra Cortada”.

               O ano em que escutei a história? 1993.