quinta-feira, 31 de maio de 2012

AS CORUJAS



Praia de Massaguaçu, território de muitas corujas.

             Há alguns dias, no serão, devido a uma trombada de carro contra um poste, o meu bairro ficou um bom tempo sem luz. A solução: acender velas para se movimentar pela casa. Foi quando eu voltei no tempo; na escuridão, fiquei pensando em tantos momentos assim que fizeram parte da minha infância, quando não havia ainda energia elétrica nos nossos rincões.
             Nas noites sem luz artificial a gente vê melhor o brilho da lua e das estrelas, imagina tudo o que a escuridão pode conter, cria o inexistente e escuta todos os seres da noite, sobretudo a coruja.
             Existe uma variação enorme de espécies de corujas. Todas piam e impresionam demais, sobretudo quando somos crianças. Uma delas parece criança nova chorando. Essa era a assustadora; nos convencia que deveríamos permanecer dentro de casa. Hoje, lendo a poesia do Domingos, pensei em todos aqueles que, aproveitando a enigmática coruja, tantas histórias contaram nas noites de minha vida.


            No continente da noite
            O guarda-noturno
            que é a coruja,
            faz a ronda dos campos
            e basta seus pios,
            com reputação de aziagos,
            para devolver o silêncio
            ao mundo dos notívagos.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

SAUDADE? SÓ DE TAINHA!


A festa de uma redada no lagamar- Arquivo Trindadeiros
                Vovó Martinha, a parteira que tantas crianças trouxe à vida, inclusive eu e mais dois irmãos, falava de seu avô Cabral, um homem de posses: tinha alambique de pinga, criava cabras na Ilha da Maranduba. Suas redes davam lances de milhares de tainhas. Em tais ocasiões, as mulheres e homens passavam o dia inteiro "consertando" peixe na barra da praia do Pulso, assim como outros pescadores tantas vezes fizeram depois. A montanha dos graúdos pescados diminuía,  mas ainda era muito grande no serão. Então, o velho Cabral dava novas ordens: só as ovas deveriam ser retiradas. Tudo o mais era enterrado ali mesmo no jundu. Desperdício. Sinal de que naquele tempo os homens já tinham “olhos grandes”, de cobiça.
                Após a sarjação dos peixes, o sal das entranhas e a ação do sol nos varais, o processo se completava; peixe seco era fartura para comer e negociar. Seguia-se para a capital (Rio de Janeiro), para a região das Minas Gerais, onde os homens só tinham olhos para o brilho do ouro. Novamente as grandes embarcações do velho Cabral deixavam o mar pacato e afrontavam as travessias com as suas cobiçadas cargas: peixe, farinha e pinga. Desse tempo todo ficaram os nossos nomes e uma velha barrica que há  pouco tempo se desmontou no monturo do Sapê.
                Agora olho a ilha, mais conhecida hoje como Ilha do Tameirão. Imagino as cabras em outros tempos destruindo o mato para ser mais uma alternativa econômica ao velho Cabral. Nada disso cobiço a não ser uma tainha ovada para comer com café e farinha de mandioca. Agora é tempo! Vamos espiar!

sábado, 26 de maio de 2012

SEMPRE É TEMPO


Frutos do quintal: não é preciso muito para receber  as retribuições da terra.


                Tio Nestor, de todos, o “Totô”, era quem cortava os nossos cabelos nos primeiros anos de vida, na praia do Sapê. A sua casa era entre árvores que a gente adorava, principalmente bacuparizeiros e laranjeiras. Ele era muito paciente e amoroso; nos agradava sempre com guloseimas. Conversava sobre qualquer assunto e vivia repetindo que “sempre é tempo de aprender”.

                Hoje, pensando no espírito do “Totô”, que sempre nos ensinava alguma coisa, acordei pensando na biodiversidade. Afinal, não passa um dia sem que a gente não escute essa palavra na televisão, sobretudo agora em época de acontecer um encontro importante em relação ao meio ambiente. Apelei ao Antônio Carlos Diegues, um caiçara de Iguape, para ir mais além do tema e chegar até a etnobiodiversidade. A ajuda vem de seu livro A etnoconservação da natureza.

                “Para a ciência moderna, a biodiversidade pode ser definida como a variabilidade entre seres vivos de todas as origens [...] É uma característica do mundo chamado natural, produzida exclusivamente por este e analisada segundo as categorias classificatórias propostas pelas ciências ou disciplinas científicas, como a botânica, genética, a biologia etc.

                As populações tradicionais não só convivem com a diversidade, mas nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e nomes. Uma importante diferença, no entanto, é que essa natureza diversa não é vista como necessariamente como selvagem em sua totalidade; ela foi, e é, domesticada, manipulada. Uma outra diferença é que essa da vida não é vista como ‘recurso natural’, mas sim como um conjunto de seres vivos  que tem um valor de uso e um valor simbólico, integrados numa complexa cosmologia.

                Nesse sentido, pode-se falar numa etnobiodiversidade, isto é, a riqueza da natureza da qual participam os humanos, nomeando-a, classificando-a, domesticando-a, mas de nenhuma maneira nomeando-a selvagem e intocada.

                Pode-se concluir que a diversidade pertence tanto ao domínio do natural e do cultural, mas é a cultura como conhecimento que permite que as populações tradicionais possam entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la e, frequentemente, enriquecê-la, como se viu anteriormente.

                Nesse sentido, os seres vivos, em sua diversidade, participam de alguma forma do espaço, se não domesticado, pelo menos identificado ou conhecido. Eles pertencem a um lugar, um território como locus em que se produzem as relações sociais e simbólicas”.

                Pense nos milhões de migrantes que estão deslocados de seus locais de origem, afoitos pela pura sobrevivência. Quais as contribuições que podem dar aos novos ambientes, onde foram acolhidos? E o que dizer dos caiçaras que agora são dirigidos pelas modas externas, que não fazem nenhuma questão de pensar a respeito do espaço que permitiu essa cultura tão específica?

                Se voltar para tudo isso é valorizar a etnobiodiversidade, pois, de acordo com o  saudoso tio "Totô", "sempre é tempo de aprender".

quinta-feira, 24 de maio de 2012

"SACI É COISA DE CAIPIRA"

Velho pé de jamelão, no Canto do Recife, de onde saía a Luz do Oliveira.

                As surpresas acontecem!  Ontem, por exemplo, recebi um telefonema inimaginável, do Gildenor, caiçara da praia da Ponta Aguda, filho dos finados Aristeu e Odócia, que eu tinha em consideração como “a minha família da Ponta Aguda”.
                O Gil, eu fiquei sabendo então, agora mora no bairro do Massaguaçu, no município vizinho de Caraguatatuba. A sua fala foi um agradecimento pelas citações que eu faço, de vez em quando, da sua família no tempo em que moravam na referida praia, de forma quase isolada. O seu pai era funcionário da ASEL (Ação Social Estrela do Litoral, do frei Pio). Também disse que está cheio de saudade, com vontade de conversar comigo.  É verdade! Os caiçaras são assim mesmo!
                Depois disso,  eu pensei nos muitos momentos de prosas que eu tive com o pai do Gil. Esta história é uma das que eu escutei num serão, naquele terreiro maravilhoso que agora existe somente na lembrança:

                “Sabe, Zé, tem história que arrepia  a gente, mas isso quase não acontece comigo. Agora eu vou contar uma que ouvi do Chico Frade, gente de Catuçaba. Ele morava na roça e tinha que fazer compras na cidade. Eu não sei como é que é porque eu nunca fui para aquelas bandas. Só sei que, de acordo com o homem, a estrada era quase um caminho que mais passava gado do que gente, tinha uma porteira e um bambuzal antes de chegar na sua casa. Todo mundo dizia que aquele lugar era assombrado, mas o Chico não acreditava nessas coisas de assombração. Porém, nunca se descuidou e deixou que escurecesse para ter de passar pelo tal afamado lugar. Só que num dia isso não aconteceu porque encontrou uns amigos do baralho que não o deixaram ver a escuridão chegando. Para encurtar: era noite, estava muito escuro quando ele foi chegando perto da porteira. Ele pensou: quero ver se existe mesmo a tal assombração que o povo tanto fala.
                Não passou um minuto do último pensamento quando o cavalo começou a relinchar, dar pinotes parecendo louco. No mesmo instante  o Chico começou a ouvir um assobio forte e ardido acompanhado de uma risada muito esquisita, que doía nas orelhas. E o cavalo continuava  no desespero. Foi quando ele pensou: é o saci, mas eu não acredito nele. Daí em diante , percebendo que não tinha outra coisa a fazer, ele se pôs a rezar. Ainda demorou um pouquinho de tempo para o saci pular do cavalo.
                Logo o cavalo se acalmou; ele mesmo, empurrando a cabeça, abriu a porteira. Ao chegar em casa, ainda muito assombrado, a primeira coisa que o Chico Frade falou para a sua mulher foi que, daquele dia em diante, ele também acreditava em assombração, mas não teria medo porque estava sempre com Deus”.
                Deste modo, com uma risada muito discreta, o finado Aristeu concluiu:
                - Não era corajoso o meu amigo Chico? Agora, Zé, vamos entrar porque hoje é quarta-feira, dia das almas andarem pelo mundo durante a noite. Saci não tem por aqui; é coisa de caipira. Não que eu acredite nisso, mas... vamos entrando logo.
                (Ah! Também o pessoal de casa deu risada após o telefonema. Perguntaram se eu estava falando alto porque o Gil estava longe, em Caraguatatuba. É mole?)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A COIVARA


Coivara no Ubatumirim  -  Arquivo Olympio Mendonça
               
                A coivara, para quem não conhece, é a técnica de cultivo mais simples que os caiçaras herdaram dos índios. Na verdade é uma queimada sobre o mato cortado, tendo o cuidado de ter um controle sobre a área cobiçada para o plantio, ou seja, com aceiros bem definidos para o fogo não extrapolar e causar danos demais.
                Geralmente o fogo era ateado em dias sem vento, começando da parte mais alta do terreno, de preferência na parte da tarde, quando predomina uma viração de fora refrescante. Nas divisas se postavam as pessoas com galhos de bastoeiros, de folhagem espessa, apropriado para apagar fogo (servindo como abafadores). Porém, quase sempre o fogo dava um olé no grupo, provocava até um princípio de sufocação, com olhos ardendo etc.
                Depois da queimada, os tocos maiores eram deslocados para as margens, as covas eram feitas e o plantio acontecia sobre as cinzas. Logo se via a maravilha de frutos da terra. Bem mais tarde aprendemos que isso não era o ideal. Afinal, ocorria um desgaste da terra; os nutrientes eram queimados. Ainda tinha os bichos que morriam ou fugiam desesperados por causa do fogo. Só sei dizer que, em meados de cada ano, os morros eram queimados, parecia disputa para ver quem estava disposto a plantar mais. As coivaras deixavam a paisagem marrom por pouco tempo. Depois da primeira chuva, tudo se esverdeava para garantir a subsistência dos caiçaras.
                Haja pitirão para tantas coivaras!

terça-feira, 22 de maio de 2012

MENTIRA OU CRIAÇÃO?



Rodrigo, outro pescador caiçara que confirma a pesca do Bauzinho


                Remexendo nuns papéis da Gláucia, achei algumas pérolas coletadas por ela ao longo de sua pesquisa sobre causos. O entrevistado de hoje é o saudoso João de Souza.

                Em relação aos acréscimos feitos aos causos (invenções a partir de um acontecimento) no ato da narração oral ou, principalmente na escrita dos causos – que se tornam contos, no entender de alguns contadores – o entrevistado explica:

                “Você diz ‘o escritor é mentiroso’. É, porque ele cria. Ele é mentiroso porque ele cria, mas tem uma parte, uns sessenta por cento, uns setenta por cento que é verídico, que aconteceu. São fatos, né? Então ele acrescenta, ele enriquece aquela cultura. [...]

                Tem o causo e tem a imaginação que é o seguimento do conto. Então quem escreve mistura uma coisa com outra pra dar uma pitadinha de sal, um gostinho no ponto. Pois se você vai fazer uma história sem ter uma pitadinha, não fica legal, né? [...] Então tem que ter uma brincadeira, e eu faço os meus contos, no fim eu faço uma brincadeira, você tem que relaxar um pouco, né? Muitas vezes é coisa verídica... [...]

                Eu fui pescar...isso é verídico! Eu fui pescar com o Bauzinho – o seu marido conhece – pescar a garoupa e a garoupa é um peixe que entoca, pega e vai pras pedras. Com a linha grossa, a gente pôs um pedaço de peixe grande, bonito, né? Foi lá na Ponta Grossa, aí jogamos e entocou. A garoupa era enorme e eu com ele não conseguia tirar e ele não queria cortar a linha. Ele ‘E agora?’, agora não tem jeito, e ai olhamos em cima da pedra vinham dois pescadores, chamamos, eram quatro, os quatro fizeram força, nada de sair, aí pegamos mais dois que chegavam de canoa...aí pegamos em seis...aí a linha tiniu quando chegou na beira da pedra: a garoupa ficou, mas veio o bucho e a guelra que é formidável pra fazer pirão, deu pra quinze pessoas almoçarem...Então...

                História de pescador...agora você imagine se viesse a garoupa. Se você pensa que é mentira o Bauzinho tá aí, o pescador...”

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O QUARADOR


Uma simples bica com uma maravilhosa água!


                Quando eu era criança, eram poucas as casas da cidade de Ubatuba que tinham água encanada. Ou seja, para a maioria das pessoas os rios eram a serventia para tudo. Dele vinha a água para beber, tomar banho, “consertar” peixe, lavar louça e roupa e muitas outras coisas.

                Era comum, no capim rasteiro do caminho, nas proximidades do rio, sempre encontrar roupas espalhadas. Tais lugares eram os quaradores. Explico: quarar roupa era um procedimento das lavadeiras. Depois de bater a roupa, ensaboava de novo essa mesma roupa e depositava sobre o mato rasteiro para quarar. Isto quer dizer que as peças ficavam expostas ao sol para ficarem mais limpas. Seria como se o sol cozinhasse a sujeira antes da definitiva esfregada e passagem pelas águas do rio. Pronto! Estava limpa! Caso se tratasse de uma roupa branca especial, de festa, ela podia ainda ficar numa solução de anil a fim de ganhar um branco azulado e se destacar mais.

                Imagine as broncas que as crianças distraídas escutavam. Andando sem reparar por onde andavam, era comum as nossas pegadas nas peças de roupas que quaravam. Os animais também atrapalhavam sempre, mas depois de umas cacetadas, aprendiam a respeitar o lugar do quarador.
                Em tempo: a água para beber era geralmente recolhida bem cedinho, antes de qualquer outro uso do rio. Ou senão, um lugar especial (uma fonte, por exemplo) era guardado (protegido) para essa utilidade. Lembro muito bem do nhonhô Almiro chegando da biquinha, no pé do morro, com uma talha de barro, onde a água permanecia sempre fresquinha. Sobre a tampa desta, num canto da cozinha, repousava uma caneca de ágata para a gente se servir do maravilhoso líquido

domingo, 20 de maio de 2012

CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO


Um mar assim nos convida a escutar tudo ao redor.
                A cada pessoa conhecida que morre ou que deixa a cidade em busca de melhores condições para se viver, ponho-me a pensar a respeito de sua vida, dos momentos de convivência, das prosas etc. Agora, por exemplo, estou pensando no “Carlos”, alguém que morava no Perequê-mirim, na mesma época que eu.
                “Carlos” teve um berço distante, num lugarejo da distante Iugoslávia, mas está sepultado, há duas décadas, no nosso cemitério central, no coração da cidade de Ubatuba, de onde se sente a maresia e a aragem a tocar as pequenas embarcações, a envolver os casais que se acariciam no jundu e a refrescar as crianças que brincam no lagamar.
                Era um ótimo eletricista, foi casado com uma caiçara. Tiveram um filho que foi uma das primeiras vítimas da AIDS, essa  doença que surgiu no começo da década de 1980. Em seguida, ele também morreu não sei por qual doença. Também a viúva não durou muito tempo, mesmo tendo escolhido outro companheiro maravilhoso para a convivência. Infelizmente acabou a geração desse pessoal.
                De “Carlos”, ao questionar sobre o porquê de sua trajetória desde a sua terra distante até a nossa terra escondida (na época o nosso município estava chegando aos 15 mil habitantes), assim ele, um apaixonado convicto, me respondeu:

                “Eu vivo perseguindo ilusões, desprezo a tirania das convenções sociais e prezo muito a minha liberdade individual. Tudo isso me trouxe aqui; faz-me viver tão tranquilamente longe do meu torrão natal”.

                Mais tarde, logo após a morte de seu único filho caiçara, eu tive outra oportunidade de me encontrar com o “Carlos”, de escutá-lo no rancho de canoa do Licínio “Teteco”. Estava muito abatido; assim desabafou:

                “Agora choro, e, as minhas lágrimas caem no vazio. É uma forma de expiar a falta de ternura àquele que agora está morto. Fiz muitas coisas para o meu filho, mas muito mais deixei de fazer”.

                E nesse clima deixamos o jundu naquele dia de outono. Parece que era tempo mais propício de diálogos e de gestos concretos pelas dores e alegrias que nos cercavam.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

VELHOS CAIÇARAS

Leopoldo Louzada, pescador de outros tempos.
         Eu comecei a escrever um texto sobre caiçaras de outros tempos. Parei logo no começo. Pensei: certamente que outros mais gabaritados já escreveram sobre isso. O primeiro nome que me veio à mente foi o de Eduardo Souza; eu tinha quase certeza de que o título (Velhos Caiçaras) lhe pertencia, tinha sido escrito há certo tempo. Não demorei a achá-lo graças ao arquivo de O Guaruçá! Espero que muitos façam bom proveito!

         Ah! Reforço o elogio feito ao Ezequiel! Bom moço do Sertão da Quina! Vida longa e muito sucesso em seu empenho!

Milan Kundera diz que: ..."Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu subitamente numa terrível ambiguidade: a única Verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu..." (A Arte do Romance, Editora Nova Fronteira) Por que citar aqui o escritor tcheco? Para me dirigir ao amigo Ezequiel dos Santos, que luta, lá pelas bandas da região sul de Ubatuba, o bom combate para manter viva a memória daquela cultura em que fomos forneados, e lhe dizer que seus textos, no jornal Maranduba News, sobre a Tia Maria Gorda e o Chico Romão, transportaram-me à infância, fizeram-me refletir sobre a cultura caiçara, sobre os velhos caiçaras e lembrar de minha vó materna.

Penso que uma palavra resume bem o que foi essa cultura: religiosidade. A religião católica tradicional, com sua riqueza de rituais e símbolos. Sem esquecer do sincretismo, da herança de negros e índios. Basta pesquisar as danças e outras manifestações que hoje fazem parte do folclore. Lembro-me de que, nas casas, fossem elas de alvenaria ou de pau-a-pique, os oratórios ocupavam um canto privilegiado da sala ou do quarto, todo enfeitado, cheio de imagens dos santos da devoção, a Virgem Maria, o crucifixo ao centro, a vela e um vasinho com pequenas flores colhidas no canteiro da casa. Na casa de vó Maria, o oratório era no quarto, e havia, dentre tantas, uma pequena imagem de um santo por quem tenho simpatia até hoje: São Benedito. Praticamente todo o folclore caiçara tem um fundo religioso, católico.

Aquele universo caiçara, de comunidades isoladas do resto do mundo, incrustadas em sertões e praias de difícil acesso, tinha um Juiz supremo, a Verdade, que permitia discernir o Bem do Mal, que estribava a existência e que permitia consolidar uma comunidade. Hospitalidade, generosidade também são palavras plenas de sentido quando me lembro das casas caiçaras em que fui recebido desde a infância até boa parte da juventude. Nas casas mais humildes sempre havia para a visita um café com farinha de milho ou com peixe seco assado nas brasas de um fogão à lenha. Naquele universo havia ordem e hierarquia. Os velhos eram estimados. Não havia necessidade de um código do idoso para que lhes reconhecessem a dignidade. Era prudente ouvi-los. Respeitava-se também a parteira, a benzedeira, o padre e a professorinha, espécies de autoridades naquelas praias e sertões.

Quando se perscruta o rosto de um velho caiçara, como o de Chico Romão, na foto publicada no Maranduba News, o que se lê? Há ali uma sabedoria esculpida na lida com a terra e o mar. Expressão de uma cultura resultante do enfrentamento e dominação da natureza, de um sentido para o sofrimento alicerçado na fé. Não quero de modo algum dizer que todos os velhos caiçaras que conheci eram repositórios de sabedoria, não, havia aqueles que cerziam e condimentavam a vida da comunidade com a alegria, com o humor dos causos, com o pitoresco de suas vidas: Zé Capão, Sidônio, Macuco, Dito Olinto, Pica-Pau, Santinho, Chico Sapo, Chico Alves, Lindolfo, dentre outros, foram alguns desses personagens.

O texto do Ezequiel também me fez recordar minha avó materna, Maria Amaro de Oliveira, sentadinha num banco de madeira, à beira do fogão de lenha, a acolher os netos na "barra da saia" - porque nós, os netos, na iminência de um castigo por alguma peraltice, corríamos para ela - e a contar histórias dos tempos dos bugres e dos escravos lá para os lados da Praia Dura. Vó Maria era comadre e madrinha de meio mundo e a todos recebia em sua casa. Foi nessa humilde casa, de porta sempre aberta para a rua, que tive meu primeiro contato com algumas manifestações que hoje fazem parte do folclore como a Dança de São Gonçalo e o Xiba. Era também naquela pequena sala que ela recebia a Folia do Divino, cujos integrantes nunca deixavam de visitá-la. Morreu com pouco mais de 100 anos. Tinha os olhinhos pequenos, mansos, usava sempre um vestuário de luto pelo marido, meu avô Bento Paulista, exercia, só com um aceno ou um lance de olhos, aquela autoridade matriarcal que as mulheres de hoje já não têm mais e em cada ruga de seu rosto esplendia essa sabedoria que se norteia na caridade e na fé.

"Pois é, o tempo tá virando!" - disse o Chico Romão à filha, antes de morrer. Pois não é que virou, Ezequiel. Um tempo terrível, um sudoeste bravo, que entrou com suas nuvens plúmbeas e que permaneceu sobre estas terras até hoje. Mas esse vento veio de longe, Ezequiel, dos confins do mundo, virando tudo de pernas pro ar, relativizando tudo, afastando o Juiz Supremo, entronizando ideias cujos frutos hoje estamos colhendo. O homem se colocou no centro do universo e reduziu a vida ao econômico e ao político, ao dinheiro, ao partido, à ideologia, à imanência, ao hedonismo.

Esse vento trouxe o fim da nossa cultura. Chegou por aqui pelos meados do século XX. Acabou com a tradição, com a hierarquia, com a ordem, com a família. Trouxe-nos os bezerros de ouro da modernidade para adorarmos. Deu-nos também a angústia generalizada. O sentido da terra reduziu-se ao valor monetário. A explosão imobiliária introduziu a onipotência do dinheiro. Simone Weil diz que "... o poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor uma influência estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento"; que "o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar"; que o dinheiro "vence sem dificuldades os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor" e que nada é mais claro e simples que uma cifra. Veio também, nesse tempo, o ciclo do turismo e da construção civil, a imigração desenfreada com sua mão-de-obra barata; a energia elétrica, o telefone, a televisão, o contato com uma classe média paulistana infectada de modernidade, o tombamento da Serra do Mar e a Polícia Florestal; as novas seitas religiosas, a nova teologia da prosperidade, de igrejas compradas prontas e a relação mercantil com a fé. O caiçara experimentou de tudo e ficou com o que havia de pior. Hoje somos espécie em extinção, um reduzidíssimo cardume de tainhas posto numa lagoa artificial e rasa.
                                                                    Eduardo A. de Souza Netto
                                Fonte: O Guaruçá

quinta-feira, 17 de maio de 2012

UM PÉ DE...


Era assim...
Agora está assim...
Dando estes deliciosos frutos.

                     Cheguei agora da escola estadual do bairro (Idalina A. Graça). Aproveitei para recolher alguns frutos (cajá-manga) da frondosa árvore dali. Afinal, cair frutos era o previsível após o vento forte da madrugada. Outra pessoa fez o mesmo cálculo: encheu uma sacola e se foi.

                Pois bem, é sobre a história desse pé de cajá-manga, que há muitos anos vem dando alegria às pessoas, que eu escrevo agora. Tudo começou em setembro de 1999, quando eu e mais cinco professores decidimos promover um gesto concreto, que marcasse a entrada da primavera. Iríamos plantar algumas árvores no terreno da escola para abrandar o calor em épocas quentes, oferecer sombras e frutos, dar mais equilíbrio no ambiente etc. Afinal, quem não prefere um espaço arborizado para quebrar a frieza e/ou feiura das nossas construções? Assim fomos até o amigo Arisson, no Monte Valério, escolhemos algumas mudas e plantamos no referido local (do bairro do Ipiranguinha). Um pé de jambo ficou perto do portão, em seguida vieram as amendoeiras perto de um pé de uva japonesa que já estava bem crescido. Eu decidi, juntamente com a finada Cleuza e o José Aparecido,  que o nosso cajá-manga ficaria o mais protegido possível, perto da secretaria da escola. E ali foi plantado o ser que media 30 ou 40 centímetros. Era o dia 21 de setembro de 1999.

                Ao longo desses anos todos, sempre vejo que as pessoas, sobretudo os meninos, aproveitam bem, apreciam os frutos. Estão constantemente vasculhando por sua volta. Ela, a árvore,  cresceu muito.              Agora, calculo que a gigante, distante do velho tarumã alguns metros, esteja alcançando os seus 15 metros de altura. Também tem um diâmetro considerável. Está linda! Deixa muita gente contente! Só um telhado construído recentemente está sendo castigado pelo impacto das frutas que despencam a partir da metade do outono. Outra coisa ridícula são as marcas deixadas em seu tronco por “seres sem-noção”.

                Para encerrar: de acordo com quem produziu a muda, antigo funcionário da ONG WWF (Fundo Mundial para a Natureza), cuja sede era no Monte Valério, a semente primeira foi recolhido no terreiro da antiga  Fazenda Velha, dos Irmãos Chiéus, os fabricantes da nossa pinga Ubatubana, aquela que deixou muita saudade. Pesquisando um pouco mais, descobri que a origem desta espécie está na Oceania, bem longe daqui. Então, não poderíamos  chamar os navegantes portugueses de “ótimos polinizadores”?

quarta-feira, 16 de maio de 2012

RETRATO DA JUVENTUDE


Só mesmo a beleza da orquídea para superar a minha bisavó

Minha bisavó
foi a moça mais rica
com colares e anéis
pra mais de um conto de réis.

Minha bisavó
foi a moça mais alegre
que já teve uma camarinha
com uma paisagem marinha.

Minha bisavó
foi a moça mais bonita
que já posou em preto e branco
em um vestido de chita.
                                             
                                                         (Domingos Fábio dos Santos)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

POBRE CRIATURA!


"As ondas sempre existirão e sempre nos desafiarão". (Tio Maneco Mesquita)
  
                Pelas madrugadas e em outras horas do dia eu sempre encontro pelas ruas do bairro, em condições repugnantes (dopada, suja, fedida etc.), uma mulher ainda jovem. Neste domingo, Dia das Mães, enquanto esperava embaixo de um toldo comercial pela abertura da farmácia, avistei-a mais ou menos perto, andando debaixo da chuva fina e fria. Da mesa do bar escutei o seguinte diálogo entre dois homens que desde cedo tomavam cerveja:
                - Conhece aquela mulher?
                - Não, mas parece que tá um bagaço.
                - Essa situação é por causa da droga. Até o aposentado que a acolheu, deu casa e conforto não a aguentou. Agora vive assim, pelas ruas como cachorro sem dono.
                - Parece coisa do destino.

                Fui para a proteção do outro prédio, mais perto da farmácia, mas continuei por ali. Vi o pessoal do supermercado levantar as portas. Um senhor devidamente trajado para as condições atmosféricas se aproximou e puxou conversa. A primeira coisa que ele perguntou, indicando a moça:

                  - Você a conhece?
                - Não. Mas sempre a vejo por aí. Eu a encontro, juntamente com mais algumas pessoas, ainda no escuro, quando estou saindo para o trabalho. Amanhecem na rua.

                Nesse momento escutei o impensável, pois aquele senhor, “devido a um alinhamento de planetas” conforme repetia na gozação o velho Tibúrcio Mesquita, era o aposentado citado na primeira conversa. Ele tinha sido a “bondosa alma” que resolvera um dia dar uma oportunidade à moça. Talvez em troca quisesse pouca coisa mais que a “tão cobiçada fruta”. E assim ele continuou:

                - Ela tem 35 anos. Eu já tive um relacionamento com ela. Eu lhe dei uma casa boa. Nós tivemos um filho.
                -  Naquele tempo ela  já usava droga?
                - De vez em quando ela fumava maconha. Mas depois que entrou no crack aí desandou. Também passou a beber. O dinheiro que eu dava para comprar roupas e comida para a criança acabava tudo nas mãos dos traficantes. Vi a miséria invadir a nossa casa. Me separei logo dela.
                - E a criança?
                - Eu peguei a guarda e passei para uma tia que mora em São Paulo. É um menino; já tem seis anos. É saudável, mas nasceu com as mãos atrofiadas porque a mãe tomou remédio para abortar. Logo deve fazer algumas cirurgias para tentar melhorar os movimentos.
                - O senhor ajuda a criar?
                - Eu mando todo mês duzentos reais. Agora ele também recebe uma aposentadoria. Está bem e vai melhorar!
                A farmácia abriu; comprei o que precisava. Fui para casa pensando nos fatos, na tristeza de vida dessas pessoas que não têm forças para superar as suas carências, os seus vícios.

                À tarde, por volta das 16:00 horas, quando as ruas estavam desertas (afinal era domingo, final do campeonato de futebol!), novamente saí de casa para comprar alguma coisa. Quem eu encontrei sentada diante de um copo, numa solidão e chorosa? Isso mesmo! Aquela mulher continuava a sua via sacra. “Pobre trapo humano!” diria a amiga Nara, caso a visse.

                Depois fiquei pensando no que possivelmente a angustiava tanto; nos seus possíveis remorsos. Será que percebia a miséria da sua vida? Pensava no filho ou no carinho que não recebera nem como mãe, nem como ser humano? Qual será o fim dessa mulher? Conseguirá se libertar dos seus vícios?

                Pensei em meus filhos, nos muitos pais e nas muitas mães que são responsáveis. Refleti sobre a importância de se ter laços culturais que rememore os seus passos, os seus momentos comunitários, festivos, de apoio, de solidariedade concreta a servir de base de sustentação contra as investidas de uma sociedade que aposta na miséria de muitos para que poucos se deem bem!

                Pensei na falta que faz refletir sobre a nossa cultura específica. Foi a falta de convicção nos valores e nos modos de vida do nosso povo simples que preparou o terreno às espoliações que se seguiram ao advento do turismo. Os outros que chegaram também perderam os seus vínculos culturais, ficaram ao “sabor das marés”. Desse jeito se vai a caiçarada. Depois disso, qualquer droga é bem vinda para o corpo.

domingo, 13 de maio de 2012

QUANDO AS PESSOAS SE ATURAVAM MAIS

        Hoje, depois de rir muito ontem de passagens engraçadas da vida da minha finada mãe, acordei com saudade dela. Depois pensei em outras mães queridas. Foi quando resolvi telefonar para a dona Maria, do saudoso João de Souza. Eu a escolhi, depois da minha Gláucia, como a mãe do dia. Cumprimentei-a, perguntei pelo pessoal; quis falar com a Fátima, a nossa escritora caiçara. Foi quando perguntei se poderia publicar o seu texto (Quando as pessoas se aturavam mais). A Fátima, companheira desde o tempo de ginásio, ainda tem muito a contribuir com a cultura desta cidade. Eu lamento que a maioria da juventude atual não tenha assistido as suas peças produzidas na comunidade do Itaguá. Em datas especiais, como hoje, ela emocionava muita gente com produções simples, mas carregadas de reflexões profundas. Quem sabe a gente possa um dia voltar a apreciar os maravilhosos diálogos produzidos pela nossa Fátima. Eis o texto:
       Encontrei no ponto de ônibus um amigo comum de minha família. O conheço desde criança. Olha que faz tempo! Um tempo onde as coisas andavam devagar, quase parando.

     Dava para ouvir o assoviar do vento no bambuzal do velho Paratiano ou o mesmo vento que desdobrava o sapezal que embelezava a estradinha da casa de Seu Ari Vieira.

     Que vá! Dizer que tudo antes era melhor... é mentira. Tudo nessa vida tem seu ônus, seu custo. Mas naquele tempo as pessoas se aturavam mais. Era esse o enredo de nossa conversa no ponto de ônibus, até então.

    Começamos a desfiar um rosário de situações vividas. Como por exemplo, quando as famílias saiam em peregrinação às casas de parentes por ocasião de festas. Outras vezes só pra saber como ia indo o compadre, a comadre e as crianças.

     Dizia ele:

     - Me lembro que por ocasião da Festa do Divino, casamento, Natal, Ano Bom, até velório, nossa casa ficava cheia. Tinha gente que ficava semana afora, até sentir vontade de ir embora. Era animado. Ali se arranjava casamento, se acertava eito de roça, quarto de forneio, terço de rede, apadrinhamentos e afilhados, até moda de viola, verso de folia e causo que mais tarde era registrado nos pasquins anônimos, ou quase. E olhe que muitas vezes não eram parentes, não. Conhecidos e conhecido do conhecido. Viajantes de passagem pelo lugar. Não havia diferença. Gente era gente. Tudo era divido, a comida, o agasalho... O conforto que um tinha os outros também tinham. Era assim...

     Então nossa conversa definhou por alguns segundos como a meditar e refletir sobre o tema.

       Joguei uma frase em aberto:

       - Hoje em dia ainda é assim...

      Meu amigo esfregou seu rosto com as mãos franzidas pelo tempo, me olhou desanimado e como num sussurro contido, falou:

     - Sabeis que por esses dias, fui visitar uns parentes. Parentes mesmo de primeiro grau. Me senti um estrangeiro na casa deles. No começo a conversa fluía, mas depois nossos olhares não se encontravam mais. Então só eu falava. Todos da casa ficavam no ram, ram, pode deixar, outra hora eu faço, estão me esperando, até chegar no volta aí quando quiser, agora você me dá licença, mas tenho que... Aí, o que aconteceu, um camarada vivido como eu, percebi logo que já estava sobrando. Lotando os pacovas dos parentes. Meti a viola no saco e me mandei antes que eles me jogassem no vento. Camarada, ninguém tem tempo pra mais ninguém. Ninguém suporta mais ninguém, a não ser que esteja precisando da gente. Aí são outros quinhentos. Sabeis, o que acontece: as pessoas criaram um mundo só delas. Cada uma tem seu mundo imaginário, onde pensam e sentem que não precisam de ninguém. A não ser para satisfazerem suas vaidades. Um mundo descartável, onde se usa e joga fora, sem direito a reciclagem. São auto-suficientes em tudo.

     Contra-ataquei com meu parecer:

     - Mas hoje em dia as pessoas não respeitam mais as casas e vidas das outras. Talvez isso tenha criado nas pessoas um medo de se relacionarem.

     - Que nada - disse ele - tá certo que antigamente se respeitava um pouquinho mais, mas era quase a mesma coisa nessa questão. Que se sucede é que, antigamente não havia tanto recurso como existe hoje em dia. Para sobreviverem as pessoas careciam de se juntar, estreitar os laços de afinidades para sobreviver às intempéries da vida. Hoje, as pessoas acreditam que o Deus informatização resolve tudo. O que necessitam acham num tal de chip. Como tudo tem um preço. Ninguém percebeu que estão sendo marionetes desse camarada.

     - Que camarada? - perguntei.

     - Tá vendo, até você não sabe mais pensar!

     Até ele perdeu a linha comigo.


Nota do Luiz Moura (O Guaruçá): Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.

    

sábado, 12 de maio de 2012

RAFAEL E MÔNICA


Um exemplar de musgo de "queimada"
                Também eu me aventuro na área da poesia, embora passe ao largo do Jorge Ivam, Domingos, Zé Carlos Góis, Joban, Fernanda Liberal, Bado Todão, Edgar Izarelli, Ane, Neiva Nunes, Eliana de Oliveira, Pedro Paulo e mais gente que segue poetando neste chão caiçara.
                A de hoje foi selecionada pelo júri da Fundart, há mais de quinze anos. Eu a ofereço ao Rafael e Mônica, cujas raízes caiçaras se assentam nas praias do Félix e da Fortaleza. Daqui a algumas horas, eles estarão apresentando à comunidade o compromisso de vida em comum como marido e esposa:

O que era cerca agora virou muro:fechou ainda mais o espaço.
                
                 AS CERCAS

                 As cercas nos tiraram a convergência;
                Já não há peixe-com-banana verde, nem pimenta,
                E, nem se avista uma identidade.

                 As cercas mataram abricoeiros e pitangueiras;
                Retiraram os sustos dos vaga-lumes
                E o gosto de passear.

                 As cercas trouxeram discórdias;
                Não vivemos mais os pitirões
                E, nas pedras não há o que sonhar.

                 As cercas mataram a criatividade;
                Deixaram morrer o brilho dos olhos,
                E, amorteceram cada irmão.     

                 As cercas me limitam, te limitam...
                Permitem musgos estranhos,
                Diferentes dos da “queimada” de então.

                 As cercas fizeram crescer os matos;
                Deixaram acumular muito lixo,
                Próprio ao homem da cidade.

                 As cercas mudaram caminhos;
                Já não há pegadas claras:
                Nem para hoje, nem para posteridade.