terça-feira, 30 de dezembro de 2014

REFLEXÃO DE FIM DE ANO


Galhetas, na divisa com Caraguatatuba      (Arquivo JRS)
      Diretamente da Praia da Enseada,  Roberto Ferrero, um caiçara da nova geração, neto do Zé Henrique e bisneto do Tio Rita, nos dá esta gostosa reflexão no encerramento de 2014. Que legal! Que venham muitas outras junto com um feliz 2015 para todos!

        Curioso, às vezes uma imagem nos transporta para outro lugar. Perdido entre memórias e causos que muitas vezes se aproximam do realismo fantástico, pondero. Poderiam essas coisas todas terem acontecido? Não importa, embarquem comigo, se aconcheguem no bojo dessa história que eu vou firme no remo. E se segura que vamos se alagá. Cuia na mão!

    Achei uma foto do meu amigo Zezeca tirada num dia de mariscada na Praia das Conchas. Carregávamos o tachão, uma caixinha de fósforos e um punhado de limão. Era basicamente o que precisávamos. Outros apetrechos eram um balaio, tênis velho e uma faca de manteiga cortada na metade. Tirávamos só os maiores, escolhidos a dedo. Era esse o costume do caiçara, e era assim que aprendíamos. Eu gostava de fazer a limpeza dos mariscos que iam sendo descarregados nos buracos naturalmente escavados nas lajes. Quantas horas eu fiquei curvado sobre aquela vida toda, separando pequenos santolas, cracas, saguaritás, guaiás, nereis, lebres do mar, anêmonas, pindás e piranjitas. Às vezes penso se foi tudo isso que me levou, anos mais tarde, a escolher o curso de Ciências Biológicas. Seja como for, decerto tenho: o Zezeca foi o meu primeiro professor. Com ele aprendi um punhado de coisas que levo comigo até hoje. Assobiar para guaiá, abacaxi pra guaiamum, picaré na lua escura, buraquinho da pegoava, cruzar picos para achar pesqueiros e decifrar os ventos. O que começa quente e vem pelo espelho d’água escalando as canelas, anuncia o Noroeste. Ele sempre me dizia, que o Noroeste não deixa a Mãe morrer de sede. Bordão Caiçara que poucos se lembram. Como são poucos os que se lembram que não se usa enxada para tirar marisco.

         Quando não era na Praia das Conchas era na Laje do Tapiá que buscávamos o mexilhão. A movimentação começava cedo. Eu e meu irmão éramos arrancados da cama pela minha tia Tuca e meu primo Cleiton. Meus pais já estavam preparando o barco, pequenos lanches e água. Logo a chatinha já estava deixando nossa casa na Praia da Enseada rumo ao boqueirão. Passávamos pelo rancho do Parú onde o pessoal também estava se arrumando pra pesca, saudávamos-nos. Todas pequenas baias até o boqueirão tinham nomes e não me recordo mais deles. Frequentemente as pedras também o tinham assim como as lajes que adentravam no mar. Como é detalhado o mapa do território caiçara! Passávamos o cerco flutuante. Eu gostava de ir na proa, gostava de alertar sobre tocos na água que poderiam comprometer a viagem. Da proa eu avistava também uma enorme canoa a motor vinda da Ilha Anchieta. Não dá para esquecer o póc póc póc do motor. Ouvia-se de longe. Na canoa, todos sentados em fila indiana, vinham uns 4 ou 5. De primeira vista eu conseguia distinguir, com sua cabeleira branca amarelada, o Sr. Joel da Praia do Sul!!! Quem eram os outros? O Betum? O povo da Praia do Sul...Quando atravessávamos o boqueirão, na Ponta do Espia, começavam a aparecer as toninhas. Quantas delas correndo atrás de cardumes de sardinhas e manjubas. Era uma festa de se ver, meu pai desacelerava o motor e ficávamos a admirar o trabalho coordenado de caça delas.  Tímidas, logo iam embora. Diferente dos golfinhos, que nos acompanhavam algumas vezes por um determinado tempo. Já na Laje do Tapiá, tirávamos mariscos no mergulho. Eu ficava aflito com o tempo que meu pai conseguia segurar a respiração. Quase sempre voltava com um punhado na mão. Meu primo fazia linhadas para eu pescar enquanto catavam o marisco. A isca era sempre saguaritá. Não tinha muito sucesso na pescaria, acho que a movimentação toda afastava os peixes. Lembro-me de Garoupinhas, Badejos e Sororocas. Todos miudinhos, voltavam sempre para o mar. Ah, tinha um vermelho também. Olho grande e um espinho nas guelras que sempre me furava. E o Budião, profissional de roubar isca. O Budião dava na mesma época que a tainha. Na mesma época que o João Paru colocava rede de camarão na frente da minha casa. Meados de Junho-Julho. E eram dois os sons desse tempo.  O primeiro era um TOC TOC TOC rápido e seco. Era o João macetando os siris na borda da canoa para tira-los da rede de camarão. O segundo era um TCHUF abafado. Seguido de outro após alguns segundos, e outro e outro. Era a pedrada na água no cerco à Troia, que era o jeito de capturar Tainhas e Paratis. Graves sons do mundo Caiçara.

       De pesca de Tainha eu nunca participei. Sempre observei a movimentação das canoas fechando cerco, rodeando cardume, procurando... mas nunca participei. Me restava perguntar para o Zezeca. Como faziam para achar o cardume? Ele me explicava que sempre tinha alguém, o Espia, que subia nos morros e pedras altas para avistar o cardume. O Grosso da Água denunciava a sua presença. O Espia mandava sinal para os pescadores. Como eu não podia participar da pesca, quis participar da Espia.Ele me levou num final de tarde. O caminho era o mesmo que levava à Praia de Fora, mas a certa altura pegamos uma saída lateral da trilha principal. Chegamos a um ponto alto, onde podíamos observar quase toda a Baia do Flamengo e a Ilha do Mar Virado. Sentamos ali naquele pequeno descampado e esperamos, eu sem saber ao certo o que esperar. Ele me apontou a Ilha do Mar virado e me contou do Boitatá, uma luz esverdeada de forma circular que subia da Ilha e rondava até quase o continente, assustando toda a gente. Era isso que eu estava esperando??? Meu coração batia em todas minhas artérias e veias enquanto meu olho não desgrudava da Ilha. Mas não era. Esperávamos um cardume de Tainhas. A luz do dia já estava acabando e começávamos a desistir de ver um cardume quando, da direção da Praia do Flamenguinho, pareceu surgir uma modificação na superfície da -água. Eram elas! Um enorme cardume de tainhas fazendo algazarra na superfície do mar. Fiquei ali maravilhado com o espetáculo mas infelizmente a tarde foi caindo e o Zezeca achou por bem voltarmos. E assim foi. Perdemos um pouco o tempo e a escuridão tomou conta do caminho. Foi difícil, avançamos vagarosamente por essa saída lateral da trilha da Praia de Fora. Quando alcançamos a trilha propriamente dita, foi mais tranquilo e seguimos bem. Pouco antes de um descampado onde hoje tem um pé de Ingá, tinha uma abertura na mata e conseguíamos ver, não tão do alto, mas ainda assim do alto, um pedaço da Baia do Flamengo. Paramos ali para tentar adivinhar onde eram nossas casas (naquela época não tinha a iluminação pública na Praia da Enseada). Pedi para ficarmos um pouco ali, que eu queria ver se não aparecia a tal da luz misteriosa na Ilha do Mar Virado. E ficamos. Olhando atentamente toda aquela imensidão escura, qual não foi a minha surpresa quando comecei a ver clarões esverdeados-azulados no mar. Seria ela?  Era isso? Não era!? Uma mancha luminosa que se modificava e se transportava pelo mar. As vezes sumia  para reaparecer novamente nas imediações de onde havia sumido. Uma hora a mancha dividiu-se em duas, que andaram por um tempo para lados opostos mas logo se juntaram novamente. Tinha horas que brilhava tanto!!! O Zezeca me falou que só podia ser o cardume de Tainha agitando a água e fazendo brilhar a Noctiluca, um pequeno ser vivo (Dinoflagelado) que emite luz quando é estimulado. Que espetáculo foi aquele cardume brilhante de Tainha! Ficamos observado aquela dança de luzes no mar completamente calados até ela desaparecer do nosso campo de visão. Até hoje eu penso nessa noite. Naquelas luzes. Uma espécie de aurora boreal no Mar. O Zezeca morreu poucos anos depois disso. Também a pesca farta da Tainha, a Lage do Tapiá, o Sr. Joel foi expulso da Praia do Sul, as canoas foram encostando, o camarão mirrando...

          E muito da cultura Caiçara foi se perdendo. 

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

AH! BONS TEMPOS, MINHA SENHORA!

2014- Painel na escola do Perequê-mirim  (Arquivo JRS)

               Apreciando um mural, provavelmente de alunos, na parede da escola (Florentina) do Perequê-mirim (Ubatuba- SP), tantas recordações me assolam... Primeiramente penso nas transformações ao longo da história: de um lugar bem natural, um território livre tupinambá, onde os portugueses e franceses sonharam outros destinos. Os padres jesuítas (Anchieta e Nóbrega) forçaram os arranjos que permitiram a posse dos lusitanos. Foi cruel, Minha Senhora! A Igreja Matriz, assentada a pouca distância da Praia do Cruzeiro, atesta a força da crença dos europeus sobre as crenças indígenas daquele tempo.


               Até o começo de 1800, quase nada há a registrar da sobrevivência dos caiçaras. Somente com a chegada do café a despertar o brilho do lucro nos olhos dos empreendedores, principalmente portugueses e franceses, a Minha Senhora ganha um mapa.
Ubatuba no século XIX  (Arquivo histórico)
          Os ingleses, senhores do mundo naquele período, além dos mares, assinalaram os seus interesses. Seus mapas têm incríveis precisões! Foi o século das grandes fazendas, das devastações para o cultivo da riqueza rubiácea. Também foi quando as etnias africanas pisaram – e sofreram! – no solo da Minha Senhora. Chegaram os favores forçados do continente negro ao nosso país! No fim dessa cobiça passageira, com fazendeiros arruinados ou que migraram, restaram as contribuições africanas ao nosso ser caiçara. Na pobreza, as técnicas de subsistência para plantio, coleta, caça e pesca foram essenciais ao meu povo caiçara. Nunca os moradores miscigenados tinham sentido o quão grande era a interdependência com a natureza, com os recursos naturais. O sistema de pousio, de cultivar espaços em revezamento, foi a solução. As técnicas de caça e pesca, de escolha de árvores, de construção de embarcações e tantas outras tornaram se vitais.  Os ciclos da natureza, das estações e de todos os seres, passaram a ser respeitados. A Minha Senhora achou isso melhor. Afinal, a necessidade forçou um equilíbrio.

domingo, 21 de dezembro de 2014

AH! ELES SÃO MUITOS, MINHA SENHORA!

Pobre rio Acaraú! (Arquivo JRS)

                        Esta terra (Ubatuba) que possibilitou a cultura caiçara parece que está fadada a ser destroçada, juntamente com sua diversidade de ambientes e de seres. Neste rio (Acaraú), quantas vezes participei das pescarias com o João de Souza! Traíras, bagres, acarás e outros peixes serviram à nossa sobrevivência. Hoje é um canal de esgoto oficial  a feder desde a alvorada radiante no Canto do Baguari.Eis a Minha Senhora e senhora de todos os caiçaras! Os caiçaras -e todos! -, são convocados a zelar pelo nosso ambiente natural, pela nossa "galinha de ovos de ouro"! Não nos deixemos cair no engodo do lucro fácil às custas da destruição daquilo que nos deu a vida!

               Ela vivia assim, pisada mais intensamente apenas em época de coleta, de caça e de pesca, quando as tainhas apareciam vindas do sul frio. Mas não se importava com isso.
               A Minha Senhora, pouco tempo depois do “achamento” por aquele que descendia de criadores de cabras, foi descoberta e disputada e até serviu de base aos antigos habitantes confederados. E ficou triste pela Traição de Iperoig.
               Nas terras da Minha Senhora, as matas caíram para ceder espaços aos canaviais, aos cafezais e outras culturas. Vieram as fazendas e os sobrados dos mais ricos. As moradias dos pobres de outros tempos deixaram marcas apenas pelas frutíferas plantadas pelos terreiros.
               Mais recentemente, novos colonizadores chegaram cobiçosos pelas paisagens da Minha Senhora. Os pobres que migraram atraídos pelas construções também são novos colonizadores. Desses colonizadores, uma mínima parcela não são depredadores. Prova disso é a sujeira que arruína as vestes e os enfeites da Minha Senhora. “Até no rio do Félix está acontecendo descargas”. Os outros seres agregados também estão se esvaindo, morrendo indefesos.
               Hoje, na ânsia de levar vantagem em tudo, o descaso e a corrupção grassam em todos os níveis. “É a grande miséria cultural!”. E o pior: cada aproveitador – pequeno ou grande! -  se apresenta com falsa humildade, tal como no romance quixotesco, dizendo: “Eu, Senhora, sou o gigante Caraculambro, senhor da ilha Malindrânia”.

               Ah! Ia me esquecendo: eles são muitos, Minha Senhora!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

SAQUINHO MANSO

Saquinho Manso (Arquivo JRS)
Conchas de preguaís (Arquivo JRS)

               Parece que foi ontem que nadávamos diariamente entre as praias do Perequê-mirim e da Santa Rita. Depois da Pedra Redonda, onde disputávamos os melhores saltos, o outro lugar onde juntava mais gente era no Saquinho Manso.
               No Saquinho Manso demos os nossos primeiros mergulhos com máscaras "profissionais". Grandes mergulhadores começaram ali. O principal dos nossos foi o Dominguinho Barreto, campeão paulista de mergulho livre. Morreu cedo em virtude das grandes profundidades que venceu. Nesse lugar, sobretudo no verão, a diversão da gente era pegar preguaí, um molusco que os caiçaras adoram refogado. Também ali capturamos nossas primeiras lagostas.
               Olhando por esses dias o Saquinho Manso, lembrei-me de uma ocasião em que eu e mais alguns moleques estávamos nos mergulhos quando, de repente, avistei um estranho nadando com uma criança nas costas. Logo reconheci o pequeno como sendo o mano Clóvis, que devia ter cinco anos. Dei uma braçadas para saber o que estava acontecendo. O homem, um turista, falou: “Estou levando ele até a praia porque ele pisou nos pindás e não consegue andar. Encheu os pés de espinhos”. No mesmo instante eu larguei os colegas e fui junto, nadando com os dois. Ao chegar na Praia do Perequê-mirim, sendo sete anos mais velho do que o Clóvis, dei um jeito de carregá-lo, ajudado pelo Luiz Carlos (filho do Luiz do Pito), até onde morávamos, numa das casas do Miguel Cabral, vizinho do Seo Viktor, o russo. Chegando lá, a mamãe, com uma agulha fina, conseguiu tirar quase todos os espinhos. Os que restaram, saíram com o tempo.

               Agora vem um detalhe, uma coincidência: encontrei, nesse dia de reminiscências, o Luiz Carlos rastelando a praia, e, ao atravessar a rodovia, avistei o mano Clóvis que passava pedalando em direção à Praia do Saco da Ribeira, onde tem a sua oficina mecânica. Que legal, né?

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MEMÓRIAS CAIÇARAS


          
Chegando da pescaria (Arquivo JRS)

              Ao ler o que a minha amiga Liih Figueiró escreveu do tempo da sua infância na Praia da Enseada, também me recordei desse tempo, do Nequinho e das suas crianças catando sapinhauá, indo para a costeira pescar e trabalhando nas obras. A coincidência é que, nesta semana, encontrei o seu irmão e a mãe. Estavam voltando de Caraguatatuba. Que gostoso se encontrar nos textos dos outros! Agradeço a ela por isso.

          Quando eramos crianças na praia da Enseada, era tudo tão lindo e mágico. Papai contava causos e histórias de antigamente, do tempo da lamparina a querosene e do peixe seco, escalado em cima da casa e coisas da guerra também. 

        Corríamos na praia e banhávamos no mar azul, pescávamos e comíamos tudo fresquinho (siri,guaia, vôngoli, pindá, preguaí entre tantos outros). A chegada da canoa do "cerco" do primo Eduardinho, aquele da peixaria, para nós era tudo, corríamos recepcionar os pescadores, entre eles meu tio Heitor, avô do Rogério Ferreira.  



          Nessa frenética alegria que nos causava, crescíamos tendo o melhor pescado, frutas, essas que apanhávamos no pé (cacau, banana, jambolão, jabuticaba, carambola). Esta última, outro dia, um cidadão estava vendendo no calçadão, até ri quando perguntei o preço, pois era R$ 7,00 o quilo e pra nós caiçaras era tudo ali na mão sem precisar pagar.



         Na Enseada tinha um pé de cravo da Índia, centenário, acho que pra mais de 250 anos. Meu pai era construtor. Construiu 99 casas em Ubatuba, mas alegria dele era quando pegava o velho samburá e ia pra ponta grossa, ferrar uma garoupa pra comer num azul marinho no domingo... É vivíamos assim como um todo e para poucos, porque ser caiçara é simplesmente presente de Deus.
(Por: Liih Figueiró).

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

CHEIO DE LOROTA

O nosso estimado Elias (Arquivo JRS)

               Dias atrás fui visitar o primo Elias. Sempre é bom sentar um pouco com pessoas queridas para recordar de tantas coisas que vivemos juntos, no mesmo lugar, na mesma cultura.
               Depois da acolhida e das novidades iniciais, ele fez elogio a um texto que eu até já tinha esquecido. Trata-se de umas descrição feita por mim, de  quando éramos vizinhos no morro da Fortaleza. Faz tempo isso!
               A cachoeira perto da casa dele era farta em camarões. “O meu pai afundava um balaio com uma cabeça de peixe num lugar  fundo, na cachoeira. No dia seguinte, logo cedo ele trazia aquilo cheio de camarões e de lagosta do rio”. Por todo lugar se avistava bananais, mandiocais e outras tantas cultivares. Todos eram pobres, mas havia muita solidariedade. Não havia luxo para nada. Os pitirões (mutirões) estavam sempre acontecendo. Uns acudiam aos outros. Os moradores, mesmo das praias distantes, se conheciam e se divertiam juntos. “Você lembra, Zezinho, que a rapaziada da Fortaleza sempre ia jogar bola na Praia Grande [do Bonete]? O campo deles era pra lá da capela, perto do lugar onde era a roça do Virgílio. Na intermediária do campo, no meio da grama tinha uma pedra grande. Eu nunca joguei bola, mas certa vez, o João de Grilo me escalou porque faltava alguém. Eu, coitado, só fiquei tonteando, mas não ajudei em nada o nosso time. Não demorou muito e o João chamou outro para o meu lugar. Depois disso eu nunca mais joguei”.
               Lógico que eu me lembro de todos esses bons momentos! E das coisas engraçadas, você se lembra bem?

               “Ah! Um tempo desse, depois de ter lido aquelas coisas que você escreveu, eu me recordei de quando, num dia santo, assim que o sino badalou na capela, eu desci com os meus pais lá do morro, onde foi a nossa primeira casinha. No meio do caminho encontramos com o tio Zé Armiro e a tia Eugênia. Aí, né, o meu pai que sempre foi cheio de lorotas, fez uma graça que causou muitas risadas. O tio Zé Armiro, que também não ficava pra trás, disse que eles estavam atrasados porque a tio Eugênia tinha se engasgado com caroços de jaca, quase morreu. ‘Ainda bem que os caroços saíram pelo nariz!’. Ao escutar isso, a tia Eugênia deu um tapa nele e pediu para que ninguém acreditasse porque era mentira. O jeito era rir e continuar andando para o lugar da capela, onde o padre já esperava o povo todo paramentado. Mas eu imaginei a imagem dos caroços saindo pelo nariz da titia, do possível desespero se isso acontecesse  e sempre me recordo disso. Que lorota boba, né?!?””

sábado, 29 de novembro de 2014

ZÉ CAPÃO


O símbolo dos pescadores foi descaracterizado por inteiro

       O respeitado Nenê Velloso, assim que foi inaugurada a estátua do pescador, na chegada da cidade, nos deu um histórico do antigo pescador que afirmaram ser o inspirador da obra, porém discorda do acabamento. E não é opinião solitária.
                          Em matéria publicada no semanário A Cidade, em 04/10/2003, a profª Heloisa Teixeira, acertou o tiro na mosca, quando declarou: olhando a esta estátua, não me vem a memória "Seu Zé", o esguio homem e seu remo, é qualquer um, menos o Seu Zé. Prezada profª Heloisa, será que só nós dois sabemos disso?  



A foto de Zé Capão tirada por Carlos Borges Schmidt e a estátua.
           Nome de batismo: JOSÉ VIEIRA MENDES, mais conhecido pelo apelido de Zé Capão ou Zéca Pão, nativo, olhos miúdos e azuis, de estatura mediana, de físico entroncado. Residia a rua Professor Thomaz Galhardo nº 136, ao lado da Santa Casa, onde sempre morou. Nasceu nesta cidade de Ubatuba, em 19 de março de 1912, e faleceu em 04 março de 1974. Zé Capão era funcionário público municipal, lotado no cargo de coveiro, exímio pescador e carnavalesco por natureza. Era pândego, e muito falante entre os companheiros da pesca e turistas.
Os turistas rapidamente ficavam maravilhados com suas histórias e explanações sobre táticas de pesca. Zé Capão não sabia nadar. Por esse motivo não se arriscava em pescaria embarcada. Nunca entrou em uma canoa. Também não pescava na costeira pulando pedras, devido sua miopia acentuada. Das 4 horas da madrugada até as 9 horas da manhã, ficava puxando rede de arrasto artesanal (arrastão de praia), era camarada dos donos de rancho de pesca. Se a pescaria fosse farta, saia vendendo em um carrinho de mão pelas ruas da cidade.
          Após o almoço, retornava a pesca profissional, mas de fundo esportivo. Na frente de sua casa, mantinha um estaleiro forrado com folhas de coqueiros diversos, porque nos arredores da cidade não tinha a famosa palmeira "Guaricanga", que seria a mais indicada, por ser comprovadamente a mais forte e durável, usada também na cobertura de ranchos de pesca, e casas dos pescadores. As vezes, usava treliças de bambu, um pouco mais trabalhoso, formando uma espécie de jirau para secagem de peixes. O arrastão raspa tudo do fundo mar, depois da escolha, são descartados os peixes pequenos, sobrando os chamados de "miuçalhas".
          Aí, Zé Capão passava um pente-fino nessas miuçalhas, fazia a devida limpeza, salgava e ia para o estaleiro secar ao sol. Na roda de pescadores, simplesmente Zé ou Zé Vieira. Mas, às vezes escapulia... Zé Capão, ele nada respondia. Os seus locais prediletos de pesca eram: Boca da Barra, no centro, Pedra do Cabo, na Prainha do Matarazzo e o Cais do Porto. Os peixes preferidos para pescar eram: Robalo, Bagre-Cumbaca, Bagre-Amarelo, e as valentes Pirajicas. No seu roteiro de pesca ia sempre acompanhado de sua mulher, Dona Sebastiana Conceição Vieira Mendes que nasceu em 1913 e faleceu em 20 de dezembro de 1994, mais conhecida como "Tiana do Zé Capão", sua fiel e inseparável companheira de pesca.
          Foi em umas dessas pescarias de Pirajica no Cais do Porto que Zé Capão se consagrou com essa célebre frase, ao ferrar uma Pirajica de mais de 6 kg. E a luta travada com o peixe, já passava de 15 minutos, o povão agitado em cima do cais esperando o desfecho. Tiana então, muito nervosa, corria de lado para o outro e aos gritos dizia: leva na escadinha... leva na escadinha do cais! Quando a vara envergou e aponta chegou ao pé, foi quando Tiana gritou: - VAI ESCAPAR... ZÉ!Zé Capão, que suava o topete para tirar a enorme e valente Pirajica fora d’água, respondeu - QUE NADA... TIANA! PASSA O BIROTE, QUE ESSA TÁ NO NALHO DO ZÉ VIEIRA!
        A notícia rapidamente chegou a cidade, e por várias semanas não se falava em outra coisa. A frase, rapidamente foi cortada, aproveitando somente, o final, TÁ NO NALHO DO ZÉ VIEIRA. Qualquer um pode usar, desde que tenha praticado uma proeza qualquer, principalmente aqueles que gostam de levar vantagem em tudo. Podem ser momentos esportivos, amorosos, negócios etc. Os jovens caiçaras usavam por qualquer motivo, principalmente quando conquistavam uma garota, aí saiam aos quatro cantos da cidade dizendo: "MULHER COMIGO É ASSIM! CAIU NO MEU PAPO, TÁ NO NALHO DO ZÉ VIEIRA!" Quer dizer que está bem segura, está presa, não sai mais daqui. Esta frase foi usada pelos caiçaras do centro por muito tempo. Eu ainda uso. O Birote é uma corda mais resistente, com mais ou menos 10,00 metros, que os pescadores mais antigos e precavidos, usavam devido à fragilidade da vara de bambu. Essa corda mais grossa, era amarrada em continuação da linha do anzol a partir da ponta da vara, até o pé, onde fica enrodilhada como um coque. Se o peixe for muito grande, joga-se a vara na água, para não quebrar, e fica com o birote na mão, para tentear o peixe até que ele fique cansado. O nalho, que ele se referia, era a linha de nylon, da vara, que, sendo dele, era mais forte que as demais, impossível do peixe arrebentar.

FONTE: O GUARUÇÁ

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A SANTA CRUZ

As orientações do Tio Dico, junto ao Rio Puruba. (Arquivo JRS)

                O nosso país, assim como os demais colonizados e cristianizados pelos europeus, mantém tradições que muitos desconhecem as suas origens. Num dia desses, estando pensando a respeito disso, veio à mente as festas religiosas tradicionais dos caiçaras, de um tempo em que nem existiam as capelas, mas em determinadas casas, nas diversas praias, eram comemoradas as datas festivas. “Na casa da Gertrudes acontecia a festa do Sagrado Coração de Jesus. O dia de São João era uma senhora festa na casa do João da Mata”. Assim se recordava o finado Aristeu Quintino.

                Na prosa que eu tive com o Seo Genésio, lá no Camburi, a lembrança mais forte nele era a Festa da Cruz, comemorada no dia 3 de maio. “Era uma grande festa. Vinha gente de todo quanto era canto para esse nosso lugar”.

                Outras comunidades no município de Ubatuba (Centro, Marafunda e Praia do Puruba) têm como festa principal a Exaltação da Santa Cruz, comemorada em 14 de setembro. Diz a história que a mãe do imperador Constantino, Helena – a santa, foi quem encontrou a suposta cruz de Cristo lá no Oriente Médio. Porém, na tomada de Jerusalém, os persas se apoderaram dela. Somente depois de quinze anos, em 628, o imperador bizantino Heráclio, após vencer Cosroes II, devolveu a relíquia numa emotiva cerimônia ao seu lugar de origem. Desde então, esse dia, 14 de setembro, ficou marcado para sempre como  a Festa da Exaltação da Santa Cruz.

                Conversando com o Élvio Damásio a respeito de certos eventos de outros tempos, ele também é da mesma opinião de que as comunidades católicas já não têm o mesmo ardor nas comemorações populares (quermesses com danças e pratos típicos, regatas de canoas com disputas em outras modalidades, procissão marítima e apresentações folclóricas em geral etc.). Mais recentemente, o saudoso Ney Martins, quando predominava uma pastoral popular na religião católica, conseguia unir “o profano e o sagrado” nas festas da cultura caiçara. Foi em ocasiões assim que pude conhecer Ocílio Ferraz, Inezita Barroso e outros nomes da cultura popular brasileira.

                É mérito da Igreja Católica essa religiosidade popular. Os leigos do Brasil, num tempo de pouca assistência da religião oficial, foram responsáveis por isso.  Quem me afirmou nesse sentido pela primeira vez, em 1991, foi o Zé Pedro, lá na Praia da Picinguaba. Ao lhe perguntar por que as tradições (Ciranda, Cana-Verde, Xiba...) estavam morrendo, ele foi categórico: “É por causa de religião. O motivo é este. Veja você: quando eu era mais jovem, aqui na Picinguaba só tinha a religião católica. Todas as festas eram em torno dela. Todo mundo era católico e participava de tudo. Ajuntava muita gente nas nossas festas. Depois, foi chegando outras igrejas que diziam que tudo era pecado, vaidade, que não se podia dançar e nem adorar os santos. Desse modo foi morrendo tudo, as pessoas foram se esquecendo. Agora tá assim. Já tem quatro igrejas diferentes nesse nosso lugar. E as pessoas estão cada vez mais desunidas. Essa tem sido  a nossa cruz nos últimos tempos”.

                Creio que se faz urgente repensar a mística na cultura caiçara. É lógico que, se depender das orientações vindas de Roma, uma teologia mais ligada às paixões do povo deverá sucumbir. Também a doutrina da mídia é converter a todos em realizados consumidores. No fundo, a individualidade predomina e fortalece atitudes acomodantes e individualistas. Em síntese, é dizer: “Eu não quero me incomodar com mais esse aspecto, essa tal de cultura popular e de religiosidade se complementando, dando esperanças mais festivas aos pobres”. Porém, as minhas mais importantes lembranças de vida em comunidade aconteceram em datas festivas, com a caiçarada preparando algo para compartilhar após a parte devocional, inclusive as bebidas, danças e folguedos. Prova maior disso nos ainda vemos na Congada e na Dança de São Gonçalo. Pensando agora, quantos momentos marcantes eu vivi às margens do Rio Puruba tendo a comunidade da Capela Exaltação da Santa Cruz como referência? E as festas da Comunidade do Itaguá? E os leilões que me recordo nas praias da Fortaleza, Perequê-mirim, Sapê e Sertão da Quina?

                Era uma alegria genuína que passava de pai para filho, que se mantinha pelas gerações. Eram mutirões e mutirões por todo lado (embarrear casa, puxar canoa, roçar, plantar etc. Aquilo era é divino! Enfim, era Tempo de Santa Cruz! Certo estava o meu povo quando repetia: “Não troco essa fé pelo lenho da cruz”.

A SANTA CRUZ

As orientações do Tio Dico, junto ao Rio Puruba. (Arquivo JRS)

                O nosso país, assim como os demais colonizados e cristianizados pelos europeus, mantém tradições que muitos desconhecem as suas origens. Num dia desses, estando pensando a respeito disso, veio à mente as festas religiosas tradicionais dos caiçaras, de um tempo em que nem existiam as capelas, mas em determinadas casas, nas diversas praias, eram comemoradas as datas festivas. “Na casa da Gertrudes acontecia a festa do Sagrado Coração de Jesus. O dia de São João era uma senhora festa na casa do João da Mata”. Assim se recordava o finado Aristeu Quintino.

                Na prosa que eu tive com o Seo Genésio, lá no Camburi, a lembrança mais forte nele era a Festa da Cruz, comemorada no dia 3 de maio. “Era uma grande festa. Vinha gente de todo quanto era canto para esse nosso lugar”.

                Outras comunidades no município de Ubatuba (Centro, Marafunda e Praia do Puruba) têm como festa principal a Exaltação da Santa Cruz, comemorada em 14 de setembro. Diz a história que a mãe do imperador Constantino, Helena – a santa, foi quem encontrou a suposta cruz de Cristo lá no Oriente Médio. Porém, na tomada de Jerusalém, os persas se apoderaram dela. Somente depois de quinze anos, em 628, o imperador bizantino Heráclio, após vencer Cosroes II, devolveu a relíquia numa emotiva cerimônia ao seu lugar de origem. Desde então, esse dia, 14 de setembro, ficou marcado para sempre como  a Festa da Exaltação da Santa Cruz.

                Conversando com o Élvio Damásio a respeito de certos eventos de outros tempos, ele também é da mesma opinião de que as comunidades católicas já não têm o mesmo ardor nas comemorações populares (quermesses com danças e pratos típicos, regatas de canoas com disputas em outras modalidades, procissão marítima e apresentações folclóricas em geral etc.). Mais recentemente, o saudoso Ney Martins, quando predominava uma pastoral popular na religião católica, conseguia unir “o profano e o sagrado” nas festas da cultura caiçara. Foi em ocasiões assim que pude conhecer Ocílio Ferraz, Inezita Barroso e outros nomes da cultura popular brasileira.

                É mérito da Igreja Católica essa religiosidade popular. Os leigos do Brasil, num tempo de pouca assistência da religião oficial, foram responsáveis por isso.  Quem me afirmou nesse sentido pela primeira vez, em 1991, foi o Zé Pedro, lá na Praia da Picinguaba. Ao lhe perguntar por que as tradições (Ciranda, Cana-Verde, Xiba...) estavam morrendo, ele foi categórico: “É por causa de religião. O motivo é este. Veja você: quando eu era mais jovem, aqui na Picinguaba só tinha a religião católica. Todas as festas eram em torno dela. Todo mundo era católico e participava de tudo. Ajuntava muita gente nas nossas festas. Depois, foi chegando outras igrejas que diziam que tudo era pecado, vaidade, que não se podia dançar e nem adorar os santos. Desse modo foi morrendo tudo, as pessoas foram se esquecendo. Agora tá assim. Já tem quatro igrejas diferentes nesse nosso lugar. E as pessoas estão cada vez mais desunidas. Essa tem sido  a nossa cruz nos últimos tempos”.

                Creio que se faz urgente repensar a mística na cultura caiçara. É lógico que, se depender das orientações vindas de Roma, uma teologia mais ligada às paixões do povo deverá sucumbir. Também a doutrina da mídia é converter a todos em realizados consumidores. No fundo, a individualidade predomina e fortalece atitudes acomodantes e individualistas. Em síntese, é dizer: “Eu não quero me incomodar com mais esse aspecto, essa tal de cultura popular e de religiosidade se complementando, dando esperanças mais festivas aos pobres”. Porém, as minhas mais importantes lembranças de vida em comunidade aconteceram em datas festivas, com a caiçarada preparando algo para compartilhar após a parte devocional, inclusive as bebidas, danças e folguedos. Prova maior disso nos ainda vemos na Congada e na Dança de São Gonçalo. Pensando agora, quantos momentos marcantes eu vivi às margens do Rio Puruba tendo a comunidade da Capela Exaltação da Santa Cruz como referência? E as festas da Comunidade do Itaguá? E os leilões que me recordo nas praias da Fortaleza, Perequê-mirim, Sapê e Sertão da Quina?

                Era uma alegria genuína que passava de pai para filho, que se mantinha pelas gerações. Eram mutirões e mutirões por todo lado (embarrear casa, puxar canoa, roçar, plantar etc. Aquilo era é divino! Enfim, era Tempo de Santa Cruz! Certo estava o meu povo quando repetia: “Não troco essa fé pelo lenho da cruz”.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

NOSSAS TRADIÇÕES

Acompanhando tudo.  (Arquivo JRS)



                   Olá, Marcos Prado! Seja bem-vindo ao blog!

                Agora mesmo, no último domingo, fui à Praia da Barra Seca para rever os amigos caiçaras e assistir a uma regata de canoas. Que belas canoas!
                A acolhida, preparada pelos moradores, era um legítimo café caiçara incrementado. As pessoas se empenharam na diversidade (frutas, bananas, batata doce cozida, bolos...). No cerimonial, logo que pisei na areia, encontrei o Élvio, o narrador oficial dessas provas e mestre da dança-da-fita do Itaguá. As “feras do remo”, inclusive os veteranos, estavam ansiosos: Higino, Carneirinho, Nélio, Nelson, Neco, Jorge, Paulo, Zeca, Jorge e tantas outras feições familiares. Rapidamente, os poucos turistas também se aculturaram. De outras praias vieram outros remadores com muita disposição de mostrar seus talentos. Afinal, era uma genuína confraternização. Estevan, meu filho, mesmo tendo de pedalar muito, adorou esse dia.
                O mar da Barra Seca, na regular calmaria, deixava em evidência o “peito de areia”, onde uma arrebentação distante mostrava o quanto as águas invadiram, no último século, esse local. “A caiçarada teve de correr”. 
             As provas tiveram início: canoa de um, de dois e de três remos; prova para as crianças, mulheres e casais... Todos eram atores principais sob aprovação dos mais antigos. Conforme a tradição, em dia de festa, vestidos a rigor eles apuravam a vista e não perdiam as emoções dos momentos. Que graça vê-los contentes, engrandecidos pela tradição que as novas gerações se esmeram em atualizar!

                

sábado, 22 de novembro de 2014

LEGISLAÇÃO E PESCADORES

Pescador caiçara (Arquivo Ubalino)

  •       Olá, Rute Miranda! Seja bem-vinda!

  •     O meu amigo Peter Németh continua atento às injustiças aos pescadores caiçaras. Agora, a sua manifestação é contra a decisão do Ibama, o famoso “meio ambiente” citado e  temido pelos mais pobres, de querer expulsar os pescadores de cerco da Ilha Anchieta, antiga Ilha dos Porcos. A história se repete: a mesma coisa aconteceu no começo do século XX, quando centenas de famílias de roceiros-pescadores tiveram de deixar a ilha porque o governo resolveu construir uma Colônia Correcional. A situação agora é esta: 1º) O parque da Ilha Anchieta é só a parte da terra, e é estadual; 2- O polígono de interdição à pesca é da Sudepe de 1980, e é federal, onde a pesca é proibida. O governo federal e o estadual não se bicam e, para piorar, o fiscal atual tem a visão preservacionista (natureza sem o homem) e hoje o correto é o socioambientalismo (natureza com o homem).


         A questão me faz recordar de tantos pescadores que tiveram até recentemente a atividade pesqueira na ilha como a única garantia de sobrevivência. Dito Funhanhado, Elídio, Sansão, João da Mata, Gonçalo, Guilherme Bureta, Dito da Mata, Horácio são alguns dos tantos nomes que passavam mais tempo naquele espaço do que em terra, com os familiares. Deles escutei muitas histórias, muitos causos. Era de suas pescarias que o saudoso Sabá entregava o nosso peixe de cada dia. “Olha o peixe fresco!”. E o que dizer daquela variedade de jaca, bem redondinha e verde, parecendo uma bola de futebol, preservada pelos pescadores da Praia do Sul? Tenho quase certeza que não se encontra mais delas no continente!


         É bom lembrar, ou ensinar aos mais novos ubatubenses e aos novos colonizadores, que as moradias e as diversas técnicas dos pobres roceiros-pescadores nunca ameaçaram a existência dos outros seres. O que está acabando com o nosso patrimônio natural é um modelo de espoliação e exploração que tem por base a sociedade industrializada.

         Medidas assim, que expulsam indefesos pescadores, tornam o nosso meio ambiente mais fragilizado. Afinal, esses trabalhadores são aliados da natureza, pois sabem que dependem dela para se manterem vivos. Também perde o município porque deixa de existir um turismo cultural.
            
           O fato assombroso e incompreensível, é que isso aconteceu mesmo após a lavra da MOÇÃO do CONSELHO CONSULTIVO do PARQUE ESTADUAL DA ILHA ANCHIETA Nº 1/2013, DE 14 de janeiro de 2013, referente a permanência da atividade da pesca com cerco flutuante exercida por pescador artesanal, atividade prevista como “atrativo turístico” no próprio Plano de Manejo da Ilha.

         Desejo ao Peter muita força e clareza para não esmorecer na luta. Um abraço.

sábado, 15 de novembro de 2014

DE QUEM É A COSTEIRA?

Escavando na Prainha (Arquivo JRS)
                            Para a leitora Cristiane Cerqueira, uma paulistana que nunca mais quis deixar Ubatuba.
               
               Quando criança, a minha diversão preferida era ir pular pedras pelas costeiras. Coisa boa! Desconfio que esse prazer e as pedaladas constantes deram-me as forças que tenho nas pernas. Também foi assim que aprendi as diversas denominações dos lugares dado pelos antigos caiçaras. Pedra do Alçapão, Costeira do Tolino, Pedra do Zé Bráz, Lage Preta, Toca do Mero... são alguns exemplos. O legal é que eles trazem uma carga emocional muito importante na minha história. Só para ilustrar: foi na Pedra do Alçapão que eu vi o papai pescar a maior garoupa da minha vida. Era uma tarde, pouco antes do serão, quando a vara se retesou. A danada entocou, mas o ardiloso pescador tencionou a vara numa greta de pedra e, no dia seguinte, logo cedo, lá estava a bitela boiando. Que beleza! Comemos e repartimos com  mais gente!
               Ainda continuo gostando de estar pelas pedras das costeiras, mas agora a agilidade já não permite pular como antigamente. Num dia desses, lembrando do casal que morava na Prainha do Padre, deu uma vontade de rever o outro lado do Morro do Ocaraçu, “onde a gruta desemboca no mar”. E assim, na maior disposição, me dirigi à prainha que também já foi do Matarazzo, o Cicillo,  prefeito de Ubatuba de 1964 a 1969. É a chamada fase áurea na administração desta cidade. Depois... só penúria! Prova?
               A prova está no nosso tesouro que dia a dia é encolhido e não sabemos como impedir, e nem como fazer mais. Explico melhor: chegando onde moravam os saudosos Antônio e Benedita, os últimos caseiros de um espaço que eu e tantos circulavam livremente, uma senhora declarou: “O senhor não pode entrar aqui, não pode passar para o outro lado. Eu cumpro ordens”. Nem perdi tempo para argumentar com alguém que é "pau mandado". Também sei que, há muito tempo, os administradores municipais perderam o rumo do desenvolvimento baseado na sustentabilidade, nas riquezas naturais e culturais que temos. Em casos assim, a Marinha do Brasil não poderia ser acionada? Quantas histórias e belezas têm do outro lado do Ocaraçu!!!

               “Ah! Se eu fosse um homem de visão, com a política adequada que temos aqui e o tanto de dinheiro que tenho de sobra, a primeira coisa que faria na Prainha do Padre era uma escavação arqueológica!”. Assim brincava o Velho Ademar nas prosas do jundu de Iperoig.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

ZÉ DO QUEPE

Praia do Perequê-mirim (Arquivo JRS)


               Na Praia do Perequê-mirim, na casa da Dona Belinha, foi onde eu conheci a ave chamada arara. Fiquei encantado por ela. Por isso, sempre que podia, eu adentrava àquela chácara maravilhosa, que começava no jundu e chegava até a nossa escola e na pista (a estrada Ubatuba-Caraguá). Diziam que o finado marido dela tinha sido o engenheiro responsável pela obra (estrada) na década de 1950.
               No quintal da Dona Belinha tinha de tudo um pouco. Até uma fruta estranha, por nome de kiwi, eu conheci naquele quintal. E ela sempre nos acolhia muito bem. De vez em quando eu ganhava uma deliciosa maçã. Ficava imaginando que a fruta vermelha e brilhante da história da Branca de Neve era igual, inclusive no tipo de embrulho, um papel fino e roxo. A história da Branca de Neve e os sete anões? É! A minha irmã tinha um disquinho que a gente não se cansava de ouvir, na vitrola das filhas  do Almeida (Sueli e Miriam)! Eram paulistanas e para lá voltaram. Nunca mais tivemos notícias.
               Quando chegou a minha adolescência, a Dona Belinha vendeu a sua propriedade. No lugar de tudo aquilo que me encantava foram surgindo prédios. Tudo aquilo, depois de pronto, recebeu o nome de Casa Grande. Virou um condomínio chique. Assim é até hoje. “Bote reparo quando estiver passando por lá”. Quando olho por sobre o muro daquele condomínio e avisto enormes árvores de fruta-pão, logo penso: “Ainda é plantação da Dona Belinha”.
               Eu acompanhei toda a obra, fiz amizade com a piãozada toda (Nerso Pinguinha, Odilon Satanás, Osvaldo Capoeira, Zé Paraiba, Francisco Ceará, Toninho Mineiro, Dito Preto e tantos outros), mas um deles era especial. Era o Zé do Quepe.
               Zé do Quepe era cearense, da família Bezerra. Na obra, ele era o vigilante e apontador das horas de trabalho. Andava fardado, de quepe e um cassetete de borracha.Na verdade, ele cuidava do relógio-ponto, controlando as entradas e saídas do pessoal. Ali todo mundo “era do trecho”, migrantes que viviam em barracos de obras. O detalhe era que, sempre que estava mais folgado, o Zé do Quepe ultrapassava o limite da bebida, ficava um bêbado chorão. Era quando se punha a declamar poesias, recitar trovas dedilhando um violão muito surrado. Aqui vai uma de pinga que aprendi com ele:

         
Aguardente é  jiribita                                                                     Feita de pau de capucho                                                                      Bate comigo no   chão                                                                         Bato com ela no bucho.                                                                                                           
Aguardente é   jiribita,                                                                         Não há bebida tão  boa!                                                                       Até os padres gostam  dela,                                                                 Quem dirá quem é à toa.                                                                                                                                                                                  Aguardente é  jiribita,  
 Feita de cana  crioula...                                                                       Quem bebe em  demasia,                                                                   Perde a calça e a ceroula.                                                                                                                                                                                                                                                                   

               É essa gente toda que, convivendo com a gente, levou um pouco de nós e deixou um pouco deles.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

NOSSAS BRINCADEIRAS

Miringuitos nos Caminhos de Servidão (Arquivo JRS)

               Há pouco tempo o primo Cláudio, que vive no Rio de janeiro desde o tempo em que estivemos na Marinha, me perguntou sobre as sementes pretas e brilhantes que faziam as vezes de bolinhas de gude na nossa infância, na Praia da Fortaleza. Eis a resposta: “É miringuito, semente de cubatã”.

A árvore denominada de cubatã é muito comum nos nossos Caminhos de Servidão e pelas costeiras. No meu quintal, quase sempre estou achando mudas dela. É que as sementes são trazidas pelos morcegos e germinam com muita facilidade.

O miringuito, bem antes de eu conhecer as bolinhas de vidro (gude), fazia parte de nossas disputas. No terreiro da Tia Martinha, onde estudávamos, em qualquer intervalo de tempo, a molecada estava disputando partidas. Eram pequenas caçapas e triângulos no chão duro, sob gritos de “pega risca”, “tudo”, “livre eu”, "cafifa, cafifa" que cobiçávamos as mais belas sementes (pretas, marrons, avermelhadas e amareladas). Depois da aula, muitos se dirigiam ao Canto do Cambiá, perto da casa do Tio Maneco Armiro, onde sabíamos da existência de um grande cubatã. Era debaixo da sua copada que vasculhávamos em busca das sementes mais bonitas. Elas eram jogadas por último pelos perdedores. Por isso que os melhores jogadores (na estecada e na mira) nunca precisavam se rebaixar ao ponto de quase que varrerem debaixo da frondosa árvore. Eles rapelavam tudo, se vangloriavam das belas sementes conseguidas apenas pelo talento no jogar bem. 
             

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

LÁ VEM O ROGÉ!

Tio Salvador, Silas e outros posam com caçoa na Praia da Fortaleza (Arquivo Salvador)

             Rogério Mesquita, o primo  Rogé,  nasceu na Praia das Sete Fontes, passou um tempo em Santos, mas viveu o maior tempo de sua vida em Ubatuba, principalmente na Praia da Fortaleza. Nesta poesia o mano Mingo consegue falar melhor desse caiçara que viveu tal qual um andarilho entre nós. Como adorava pescar o Rogé!

Rogé Mesquita
vendia sardinha,
bebia cachaça,
comia farinha,
fazia graça,
cantava modinha,
não tinha morada
nem namorada.
Atravessou incólume
Muito trecho de mar
e acabou naufragado
na porta de um bar.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

PETER E OS PESCADORES CAIÇARAS

O Projeto Colonial Capitalista de extermínio dos Pescadores Tradicionais.

Trecho do texto CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS DE VALORAÇÃO ECONÔMICA DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS ASSOCIADOS AO CONHECIMENTO TRADICIONAL DOS PESCADORES ARTESANAIS. autor Peter Santos Németh.:

Para Moura (2013) “a conquista dos mares e oceanos pela modernidade, incluindo as ciências modernas”, são parte de um “projeto colonial” no qual:

(...) força-se a modernidade ao setor pesqueiro na conquista de territórios marinhos de pesca pelos Estados Modernos em favor das indústrias de pesca nascentes e em prejuízo da pesca artesanal, que passa a ser desvalorizada culturalmente e pilhada em seus recursos materiais. Esta conquista de territórios marinhos de pesca tem sido chamado de modernização capitalista da pescaem diversos países, inclusive no Brasil, conforme relatado em McGoodwin (1990), Pálsson (1991), Lalli e Parson (1993), Vandergeest e Peluso (1995), Parsons (2002) e Roberts (2007). (MOURA, 2013, grifos do autor)

Para Breton e Estrada (1989, apud CARDOSO, 2001) o Capitalismo ao invés de conseguir dominar o conjunto dos fatores da produção pesqueira, como fez com “todo o plano da tecnologia; há que conformar-se com um controle e planejamento parciais dos outros elementos constitutivos das forças produtivas, ou seja, os recursos haliêuticos como objeto de trabalho e os pescadores como força de trabalho” (CARDOSO, 2001).
Assim, a extrema especialização necessária para exercer a atividade pesqueira, ainda garante certa “liberdade” (DIEGUES, 1983) e autonomia ao pescador, “pois à beira-mar não se passa fome, por isso nunca vai haver pescador amansado” (NÉMETH, 2010). 
Outro ponto vivenciado foi que o peixe capturado é considerado, pelos pescadores de canoa, como dinheiro em caixa. Chegando na praia, o balaio de peixes se transforma em dinheiro vivo, pois a venda é feita diretamente ao consumidor, que muitas vezes está aguardando o pescador chegar (KANT DE LIMA e PEREIRA, 1997).
Assim o pescador garante o sustento certo de sua família, proporcionando a experienciação de um grau de liberdade e autonomia extremamente elevados. Esse aspecto, o de transformar através do PHT do Mestre pescador, o pescado em valor econômico, é o mais precioso pois, funcionam o meio natural e os estoques pesqueiros quase como uma despensa ou um caixa eletrônico de banco, onde o pescador pode, a qualquer momento, baseado em seu PHT, conseguir o dinheiro suficiente, ou, na pior das hipóteses, o alimento necessário para a subsistência familiar.
O antropólogo Viveiros de Castro (2014) em entrevista concedida à revista Piauí, cita o norte-americano Marshall Sahlins que nos anos 1970 se ocupou da dimensão econômica de sociedades mais “pobres” que, segundo a visão então consagrada, mal conseguiam assegurar a própria subsistência com técnicas pouco desenvolvidas e baixa produtividade. Segundo Viveiros de Castro, o que Sahlins argumentou, “colocando em questão a santíssima trindade do homem moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista”, é que não fazia sentido, para esses grupos, acumular bens.

Tampouco era lógico produzir estoques, quando esses estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar pouco era uma escolha, e aqueles grupos constituiriam o que o antropólogo chamou de primeira “sociedade de afluência”. (...) Em vez de símbolo de atraso, a “sociedade primitiva”, escreveu o antropólogo carioca, “é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo”.  (VIVEIROS DE CASTRO, 2014, grifos do autor)

Fonte: canoadepau.blogspot.com