terça-feira, 31 de maio de 2016

A SALGA

Olha o rio Acaraú aí gente! (Arquivo Igawa)
           
Já estamos funcionando! (Arquivo Igawa)

 O Sr. Igawa nunca morou em Ubatuba. Quando estava na cidade, ficava hospedado no Hotel Ubá, que se localizava, creio eu, no começo da rua Tomás Galhardo. No terreno adquirido, local da futura salga, ainda estava amontoados alguns trilhos da ferrovia prevista para o final do século XIX, provando que aquela cabeceira de ponte, a mesma que sustenta o tráfego até hoje, é a original (projetada para receber os trilhos, no final do período imperial).
           No auge da pesca, entre 1977 e 1980, a empresa contratava em torno de cinquenta funcionários, sendo a maioria composta por mulheres.

          “Foi quando tínhamos duas traineiras: Atalaia e Aladim”. O Nelson comentou alguns fatos: 1º) “Dava trabalho registrar funcionários porque a maioria não tinha documento de nascimento. Foi preciso, de vez em quando, fazer uma espécie de mutirão, embarcar uma quantidade no caminhão e rumar até o cartório a fim de fazer as certidões. Nessas ocasiões, se apelava aos taxistas da praça para servirem de testemunhas”. 2º) “Numa ocasião, ao ir buscar peixe no caisão, um motorista nosso deixou o carro desengatado e desceu enquanto aguardava a sua vez de carregar. De repente, o caminhão novinho estava dentro do mar. Não tinha guincho naquele tempo. O jeito foi arrastar por dentro da água até a praia. Desconfio que as traineiras  rebocaram o veículo”. 3º) Ainda hoje temos dois postes de ferro fundido no camping,  são os antigos trilhos, que servem para sustentar fios elétricos. 4º) “Uma vez por ano, o meu pai trazia um pessoal de São Paulo para catar sapinhauá na praia do Itaguá. Tinha demais!”. 5º) “Uma edificação começada por meu pai, na divisa com o Scongelo, mesmo antes de estar terminada, foi vendida ao dono da concessionária Volkswagen de Taubaté. Mais tarde abrigou a  escola  Era uma vez”.

                                                  Salga. 
                Conforme podemos ver, em julho de 1959, o Sr. Igawa se anuncia como comprador de peixes.

         As sardinhas descarregadas no cais do porto eram trazidas de caminhão para a salga e imediatamente colocadas nos grandes tanques com sal grosso e aí ficavam por um tempo determinado de “cura”; depois eram retiradas, prensadas e embaladas em caixetas. Estavam prontas para serem enviadas para os atacadistas de São Paulo e do nordeste brasileiro que por sua vez distribuíam pelos rincões afora (pelo fato de serem muito salgadas não necessitavam refrigeração. Portanto muito úteis em locais sem energia elétrica).

quinta-feira, 26 de maio de 2016

PICARÉ, O PRIMEIRO

Às margens do Rio Maranduba (Arquivo Clayton Oliveira)

               Minha mãe, nascida na Praia da Fortaleza, ainda bem jovem foi trabalhar no Hotel Picaré, na boca da barra da Maranduba, perto da casa do Chico Romão. Meu pai, natural da Caçandoca, andava por ali querendo namorar alguém. As moças que trabalhavam no Picaré eram atraentes. Assim papai e mamãe se encontraram e nós viemos ao mundo. Agora eles se foram e nós continuamos a história.

               O Hotel Picaré, pelo que ouvi da mamãe, era da segunda metade da década de 1950, depois que passou a estrada Caraguá – Ubatuba. Foi o primeiro da região, recebeu muita gente e gerou empregos, sobretudo às jovens caiçaras.

               Além da mamãe, o Clayton afirmou que a mãe dele, a Maria, também trabalhou. “Não tá acreditando? Então veja esta fotografia: a negra é a Marciana, filha do Caliano da Caçandoca, a minha mãe é a outra moça. O rapaz não sei quem é. A menina é a Aurora ‘Lela’, filha da sua tia Tereza Lopes. Ah! É a mãe do Arnaldo, que trabalha de carteiro!”.

               Agora, para acrescentar: o hotel ficava num lugar estratégico, perto do porto da balsa. Não sabia disso, que nos largos rios de Ubatuba, no tempo dos Caminhos de Servidão, havia a pessoa que exercia a função de balseiro?


               Em uma canoa de porte médio, o balseiro estava de prontidão para transladar os caminhantes e sua cargas de uma margem para a outra. Era uma função muito importante. Até recentemente, a prefeitura mantinha um funcionário nessa função na confluência dos rios Puruba e Quiririm, fosse para conduzir ao caminho da Justa ou para ir até a praia. Agora o serviço é feito por um particular, mediante pagamento.

terça-feira, 24 de maio de 2016

SENHOR IGAWA CORAJOSO, NÉ?

Vamos ver se em Ubatuba tem peixe mesmo! (Arquivo Igawa)

               Em 1980, durante o Censo Demográfico, eu pude adentrar à “salga do japonês”. Era assim que empresa Iwashi Igawa era chamada por muitos caiçaras. Na verdade, os caiçaras se espantaram quando o Sr. Igawa adquiriu a propriedade do canto do Acaraú, bem ali na barra. Diziam: “O que ele vai fazer ali, naquele canto, na  morada do sapo?”. Dois locais foram apreciados para o empreendimento: canto do Perequê-açu e canto do Acaraú. O bom senso prevaleceu: perto do cais e mais próximo da rodovia. Difícil foi reunir os três irmãos-proprietários, pois eram idosos e moravam em cidades distintas (Santos, São Paulo e Ribeirão Preto). Venderam a parte que era mais interessante ao negócio e insistiram para que o Sr. Igawa adquirisse o restante, quase 2/3 a mais. Assim, num negócio de ocasião imperdível, a área da salga se encontrou com as terras da família Scongelo, defronte ao mar.

               O Sr. Igawa veio conhecer Ubatuba em 1958 e, no ano seguinte, após a avaliação de uma equipe de especialistas, inclusive com recém-formados pela Universidade de Tókio, a fábrica estava implantada. O palpite do Nelson, filho do Sr. Igawa, é que se envolver com pescados “tá no sangue do japonês, acho que faz parte do código genético”. “A decisão foi mais rápida ainda porque esse pessoal, a convite do meu pai, alugou um barco, indo pescar aqui bem perto, na enseada de Ubatuba. Em pouco mais de meia hora, o barquinho já estava abarrotado de baiacu. Ficaram maravilhados!”.

Depois de muitos anos, me tornei amigo da família Igawa (Nelson, Mary e filhas). Hoje, orgulhosamente apresento a primeira parte do relato deles.

              Suekazu Igawa veio para o Brasil com a família quando tinha cinco anos de idade para uma fazenda de lavoura de café no norte do Paraná. Na adolescência teve ajuda de um professor japonês (Sr. Sunaga) que via para ele um futuro promissor, tanto que quis enviá-lo de volta ao Japão para estudar. Com o advento da segunda guerra mundial esse plano é cancelado. Jovem ainda começa a trabalhar como mascate – logo adquire caminhão próprio (americano, à gasolina, marca International, modelo KB7) com empréstimo do futuro sogro. Começa a levar os grãos de safra do Paraná para São Paulo e no retorno traz querosene, cordas, alpargatas, lonas, ferramentas para agricultura entre outros. Logo monta um armazém no Paraná e outro na zona cerealista de São Paulo para a estocagem de mercadorias (na época não existia ainda o Ceasa). Casa-se e vai morar em São Paulo onde abre um escritório de sua empresa Igawa e Cia no prédio da Bolsa de Cereais na avenida Senador Queiróz.

Investindo em Ubatuba:

Como estava indo muito bem resolveu expandir seus negócios, montando armazém de secos e molhados na cidade de Caraguatatuba e outro no centro de Ubatuba  - Igawa & Cia - no cruzamento das ruas Cel. Domiciano com a Condessa de Vimieiro [atualmente o local pertence à Igreja Presbiteriana, se não me engano]. Foi quando percebeu o potencial da cidade no negócio de pescados. Dizia-se na época que o mar era tão piscoso que se pescava na própria baía sem precisar sair ao longe. Em 1959 compra um grande terreno no canto direito da praia do Itaguá e constrói o primeiro galpão para a salga de peixes. Fecha o comércio em Caraguatatuba e se concentra nos negócios em Ubatuba, onde deixa nas mãos do sr. Irineu Stoppa a parte de administração ( funcionário desde o Paraná, se muda com a família para Ubatuba ). É o Sr. Irineu que conta : “vendia-se de tudo no armazém, a única coisa que encalhou foi um lote de graxa para sapatos – tão importante para aquela terra avermelhada do Paraná, aqui de nada servia !” E na época todo o comércio fechava para almoço, exceto o armazém de secos e molhados. Pouco a pouco os comerciantes ao redor começaram a adotar essa prática.

domingo, 22 de maio de 2016

A CONVERSÃO DE SATANÁS

No nosso quintal (Arquivo JRS)


         Já postei em outra ocasião sobre Odilon, um colega de obra, mais conhecido por "Satanás". Quando isso? Ah, o tempo está longe, final da década de 1970! A obra era a construção de um condomínio na Praia do Perequê-mirim (Ubatuba), cujo nome até hoje é Casa Grande, onde era o sítio da querida Dona Belinha. Guardo boas lembranças daquele pessoal, quase todos nordestinos e "pião de trecho" (quem roda o mundo vivendo pelos barracos onde as construções estão acontecendo). Além do "Satanás", outros que se destacavam: "Zé do Quepe", "Dito Preto", "Capoeira Ipatinga", "Nolasco", "Dito Pinguinha", "Pó de arroz" e "Sapato Branco".

         "Satanás", acho eu, tinha este apelido porque, além de muito feio, não gostava de tomar banho e era viciado em cocaína. Natural da Paraíba, tinha um coração de ouro, era amigo de todos e sempre puxava um bom papo. Difícil mesmo era só ter de aguentar aquele aroma desagradável que lhe era característico. Sempre, para mim, a sua fala carinhosa era: "Você é gente boa, Zezinho".

            "Zé do Quepe", o vigia do canteiro de obras, natural do Rio Grande do Norte, era muito espirituoso. Numa ocasião, depois de vários meses, quando os prédios já se encontravam em fase de acabamento, quando eu e mais três ou quatro retiravam pregos de caixarias, ele chegou espalhafatoso anunciando o primeiro milagre realizado pelo "Irmão Venâncio", na igreja que ficava na rua que vai para o Sertão, perto do Dito "Pijeca": "Satanás se libertou, piãozada! Agora está tomando banho e não usa mais cocaína!". Pensei na hora: "Isso não é verdade". Mais tarde pude constatar que era mesmo. Foi uma alegria para todos, pois o cidadão estava muito melhor!

             Na semana seguinte, novamente o nosso vigia chegou desafiando: "Satanás agora está numa boa, né? Qual é a moral que podemos tirar disso tudo, piãozada?". Vários foram falando: "Nunca é tarde para se converter", "Pião bom é pião cheiroso", "O Velho Odilon nunca mais será o mesmo", "Quem gosta da gente é a gente mesmo" etc. Mas a melhor mesmo foi a frase do próprio José Bezerra Sobrinho, o nosso "Zé do Quepe", a verdadeira pérola:
               "Agora, para nós, Satanás não fede e nem cheira".

terça-feira, 17 de maio de 2016

DE ONDE VEM O CLÓVIS

Clóvis (mais alto) e Zeca Giraud. Ao fundo: João Oliveira e outros no campo da Maranduba. (Arquivo Clayton)

               O meu irmão Clóvis recebeu este nome em homenagem a outro Clóvis, filho do "Zé Chico", natural da Praia da Maranduba.

               Clóvis de Oliveira e meu pai eram amigos desde pequenos, quando começou a chegada do turismo em nossas terras. Ambos eram caiçaras bem típicos, mas pertenceram à primeira geração ligada à construção civil, edificando casas para turistas (ou veranistas).

               Clóvis era ótimo construtor e gostava de ajudar as pessoas. Tinha um prazer especial na pesca e em andar em meio à natureza. Adorava  ir à costeira para pescar e levar os filhos para aprenderem a catar guaiá, siri, pindá e outras iguarias que sempre sustentaram o ser caiçara. Outro costume dele era o de passar rede com os amigos. Sempre aproveitava todas as ocasiões para levar os filhos nas subidas dos mais altos morros na intenção de mostrar as paisagens.

               Clóvis, como a maioria dos caiçaras, tinha o hábito de contar histórias. Fazia os filhos dormirem com contos e fábulas. Outras diversões: jogar dominó, contar piadas e brincar de pega varetas.

               No ano passado (2015) conheci o jovem Clayton, no Massaguaçu. Conversa vai... conversa vem, descobri que o mesmo é filho do Clóvis. Agradável surpresa! Estas lembranças se devem à sua participação empolgante e orgulhosa em referência ao saudoso pai:


               “Meu pai deixou enraizado em mim coisas simples, mas que me servem de bússola ao meu viver. Uma dessas coisas é que não preciso passar por cima de ninguém para conseguir alcançar meus objetivos. Na verdade, meu pai tinha atributos simples, de grande valor. Hoje digo que tudo de bom viveu com ele. Me deixou muitas alegrias e saudades”.

        Creio que foi uma justa homenagem do meu pai ao amigo, dando o seu nome ao meu mano.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

HISTÓRIAS DE UM PESCADOR






          Não tem como deixar de reproduzir esta matéria do blog do Peter! Parabéns, amigo!


          Vovó Eugênia, cuja vó viveu como escrava na Praia do Lázaro até quando veio a abolição em 1888, assim dizia

"Meu pai, João da Barra, era dono de um pedaço de terra na Praia do Lázaro, com duas medidas de dez braças de imbé, indo até o morro que vira para o Rio Escuro. Essa terra ainda tá lá, faz limite com a Tia Maria, mãe do Antônio Peres. Tudo de frente pro mar, no jundu, comprado do padre João Manuel da Conceição. Era nesse chão que se sustentou João Faria, um coitado que aos sessenta anos já vivia numa cama por estar lázaro. Dessa doença vem o nome do lugar".

          A minha estimada Larissa Peres, neta do Velho Peres, acrescenta: "Oi, Zé, o nome da bisa é Maria Tomé, mas era conhecida como 'bobó Tomé', porque assim a chamavam quando eram pequenos [meu pai e meus tios]. Obrigada por lembrar do meu avô e de sua história. Toda a família tem muito orgulho dele, nos deixou muitas lições de vida, respeito e exemplos".
     


História de um pescador - entrevista realizada por volta de 1993
Marcos Malta Migliano


















Eu particularmente tive muitos mestres e deles guardo grandes recordações. Sou-lhes profundamente grato pelo pouco que sei. Um deles, Antonio Peres, conheci em 1963, em Ubatuba. Juntamente com Lothar Bamberg, ele me ensinou muitas coisas sobre pesca e mar.

"Seu Peres" nasceu na Praia do Lázaro, em Ubatuba, e é um mito, pois até esta data ninguém sabia informar sua idade. O conheço há mais de 30 anos, durante os quais, seu físico pouco se modificou.
Eu era um moleque e ouvia fascinado as histórias que "Seu Peres" contava sobre suas andanças como pescador. Hoje ele é um próspero comerciante, dono do Hotel Canoeiro e do Restaurante do Peres, que por sinal, são muito bons na Praia do Lázaro.
Na semana santa deste ano fui a Ubatuba e aproveitei para passar pela praia do Lázaro e rever os amigos. Tive e idéia de entrevistar "Seu Peres". Afinal, se aprendi tanto com esse homem, porque não dividir isto com os amigos pescadores. Vamos lá!

"Seu Peres", em que ano o senhor nasceu e onde exatamente?

Nasci aqui no Lázaro em 11 de novembro de 1912. Meu pai nasceu na Ilha Anchieta e era descendente de espanhóis. Minha mãe era negra e nasceu no sertão do Rio Escuro.

Isto explica porque o senhor, embora tenha pele escura, possui traços delicados. Seu avô, espanhol, provavelmente era descendente de algum comerciante ou mesmo pirata... Mas, continuando, como era a vida no Lázaro naquela época?

A vida não era fácil. Pra você imaginar, fósforo era uma coisa rara. Quando tinha, era vendido por unidade. A gente acendia o fogo com laranjeira, em uma vala no chão cercada de três pedras (tacuruba) e, à noite, cobríamos com cinza para não apagar. A isto chamávamos de mãe do fogo. Quando ela apagava pegávamos um tição emprestado do vizinho. Daqui à cidade eram 4 horas de caminhada pela mata. Quando morria alguém, colocávamos o corpo em uma rede e transportávamos até a cidade pela mata. E naquela época havia inúmeros animais selvagens pela mata, onde abundavam onças.

E a pesca, "Seu Peres"?

Quando eu era menino, ninguém pescava por aqui, pois não tinha como conservar o peixe. Nós trocávamos ovos, pinga, pimenta e banana por querosene, sal e sabão. Tanto é que com 15 anos fui para Santos trabalhar num sítio de bananas. Havia um barco chamado "Santense" que, de 8 em 8 dias, fazia ligação com Ubatuba. Eu voltava pra cá a cada 2 ou 3 meses para deixar um dinheiro para a família. Em 1943, por causa da guerra, a exportação de bananas fracassou e a procura por peixe aumentou. Então voltei e comecei a trabalhar com minha primeira canoa, feita de timbaúba. O peixe salgado tinha muito valor na época. Foi ai que comecei a pescar. A gente usava espinhel, mas não existia o náilon. As linhas eram verdadeiras cordas de algodão e para que não apodrecesse, a gente fazia um caldo de arueira e aplicava nas cordas, isso dava uma impermeabilização. A linha "madre" tinha mais de um dedo de espessura, dai saia os "estropos" com os anzóis.

Onde o senhor soltava os espinhéis?

Aqui na frente mesmo, pegávamos inúmeros cações, alguns chegavam a pesar 250 quilos. Às vezes soltávamos no canal do ilhote do sul da Ilha Anchieta. Ali existiam cações enormes. Atrás do Mar Virado, cruz credo! Era soltar o espinhel e perder. Os cações desgraçavam com tudo e, quando sobrava alguma coisa do espinhel encontrávamos cações de 70 quilos cortados pela metade. Nos meses de maio a junho, pescávamos tainha. Pra isso utilizávamos dois "espias".

O que eram "espias"?

À noite saíam duas canoas e ficavam observando as tainhas se aproximarem da praia. Quando elas apareciam, eles davam um sinal e os demais pescadores que pernoitavam na praia, punham logo outras duas canoas com a rede e cercavam o cardume recolhendo-o à praia. Numa daquelas noites, um bando de cações se aproximou e um deles mordeu o fundo da canoa de um dos espias, que começou a fazer água. Ele só se salvou porque o companheiro encostou logo a outra canoa e ele mudou de embarcação. Depois comecei a pescar sardinha na traineira de Pedro Leandro (pescador muito conhecido que faleceu com mais de 90 anos. Com ele tive o prazer de uma vez pescar garoupas). Quando saíamos em busca de sardinha, toda vez que recolhíamos a rede, os cações arrodeavam a traineira e nós lançávamos na água verdadeiras cordas munidas de anzol de 20 cm, com um reforço soldado na curva do anzol para que ele não abrisse, fazíamos um cacho de umas 15 sardinhas e era só soltar na água que o bicho ferrava, depois segurávamos a corda e mais ou menos 8 homens. Pegávamos cações desta maneira de 350 quilos.

Com esta quantidade de tubarões o senhor deve ter visto muitos acidentes.

Não. Nunca vi ninguém mordido ou morto por cação.

Mas como nunca houve nenhum acidente, com essa quantidade de cações grandes, se hoje em dia, com menos peixes temos notícias de vários ataques de tubarão?

Muito simples: os caiçaras da minha geração não sabiam nadar. Nuca entravam na água, nem na praia e por isso mesmo só saíam com tempo muito firme. Hoje em dia o pessoal pula no mar em qualquer altura só para tomar um banho. Isso nunca acontecia naquele tempo.

Fora o cação, qual foi o maior peixe pescado pelo senhor na linhada?

Foi um mero de 150 quilos fisgado aqui mesmo na ponta do Lázaro. Demorei umas 3 horas para tirar e ele arrastou a canoa por mais de 500 metros. Eu perdi um maior na ponta da Enseada. Devia ter uns 300 quilos. O mero é danado: quando percebe que está ferrado, sai como um louco. Se a gente folga um pouco ele fica quase parado no fundo, vai nadando muito devagar.

Depois destas características descritas pelo senhor, aliadas a lembrança de um mero que perdi em Natal, conclui que o peixe - batizado por mim de "coisa" - que perdi na Barra do Pujuca, na Bahia, devia ser um mero de mais de 100 quilos. Mas voltando as suas lembranças, o senhor não gostava muito de pescar de linha?

Eu gostava sim. Muitas vezes ia à noite à Ilha Anchieta e nas Palmas pescar garoupa. Naquela época pegava grandes bitelos. Usava como isca bonito ou sardinha.

Agora o senhor vai me revelar um segredo: durante mais de 20 anos em que faço pescarias por aqui, o senhor sempre acertou o tempo. Lembro-me que eu levantava às 5 horas da manhã para ver como estava o mar e já o encontrava na praia. Então me dizia: "Hoje tudo bem, pode ir". Às vezes, me falava: "Hoje o mar vai virar". Todas as vezes que não ouvi seus conselhos me arrependi. Como o senhor acertava?

("Seu Peres" dá um sorriso amarelo e começa a contar)
Como não sabíamos nadar e nossas embarcações eram meio primitivas, não podíamos correr nenhum risco, por isso observávamos bem os sinais do tempo. Quando as estrelas estão brilhando demais no céu, é sinal que vai "noroestar" (vento forte a noroeste). Quando no nascer do sol ou no por do sol estiver muito vermelho o tempo vai virar. Antes de nascer o sol, se as folhas das árvores tiverem bastante orvalho o tempo será firme. Se elas estiverem secas o tempo vira. Outra prática infalível é observar o Pico do Corcovado (em Ubatuba): se estiver bem limpo, o tempo normalmente é bom; se estiver encoberto, vai chover.

Quando começou a acabar os peixes por aqui?

Depois de 1970 o peixe foi desaparecendo. Em primeiro lugar, acho que foi por causa do excesso de arrasto. Por mais de 15 anos arrastarem dia e noite aqui na baía do Lázaro, matando peixe que vinha reproduzir ou crescer. Depois pelo desrespeito ao defenso na pesca da sardinha. A sardinha é o pasto do mar, se não tiver sardinha os peixes vão procurar alimento em outro lugar. Agora pararam de arrastar porque não tem mais nada. É possível que o peixe volte. Uma coisa que voltou foram as baleias. Durante muitos anos elas vinham aqui na praia do Lázaro. Depois ficaram mais de 20 anos sem dar as caras. Agora, todo ano tem uma visitinha. Não na quantidade que havia 40 anos atrás, mas estão voltando. As tartarugas também estão aparecendo em maior número. Acho que é devido ao Projeto Tamar.

E o senhor ainda pesca?

Profissionalmente e esportivamente. Ainda tenho meu cerco na Anchieta, inclusive no ano passado, entrou uma tintureira de 250 quilos. E as vezes eu saio para apanhar um espada ou uma garoupa na Ponta da Cruz.

Agora revele-nos um último segredo: o que faz para estar assim em plena forma?

("O velho Peres dá uma risadinha, levanta-se, vai buscar uma cerveja gelada e um camarão no bafo. Ao voltar, me diz:)
Conte um pouco das pescarias que você tem feito por ai, em outras terras...

Embora ele dissimulasse bem, eu não me perdi. Quando deu uma folga, chamei o Edinho, um de seus sete filhos, que toma conta dos negócios do pai na Praia do Lázaro, juntamente com os irmãos Carlinhos e Josué, e pedi que me contasse a formula do velho para continuar assim, do mesmo jeito de quando o conheci, há 30 anos. Ele também não fala, mas eu acabei descobrindo: "Seu Peres" não come frituras; peixe, só ensopado; e salada quase a semana toda; carne vermelha no máximo uma vez por semana; bebida, muito pouco; levanta muito cedo; caminha uns 5 km de manhã e outros 5 km à tarde, ai ele entra um pouco na água do mar e nada muito... Só, mar alimentação sadia, caminhadas, enfim, uma perfeita harmonia com a natureza, o que resulta em muita paz. Assim nem dá para perceber o tempo passando. É por isso que ele nunca vai envelhecer.

Fonte: canoadepau.blogspot.com

terça-feira, 3 de maio de 2016

TRILHA DO TELÉGRAFO


Restou isso  de um poste (Arquivo Clóvis)
O nosso grupo (Arquivo Clóvis)


               Há quase trinta anos, quando eu comentava com a saudosa Dona Maria Balio que estivera na Justa, partindo da margem do Quiririm, cujo balseiro ainda era o Tio Dico, ela perguntou: “E você viu onde funcionava o telégrafo?”.

               Lógico que eu havia visto as ruínas, onde tinha funcionado o último posto telegráfico de Ubatuba! Dali, cruzando as terras do Altivo, do Dito Custódio e outros, passando pelo Sertão do Pasto Grande, pelo terreiro do Mané Grande,  grimpando pelo bananal do Lacerda, a linha plantada em postes de ferro ganhava o Estado do Rio de Janeiro. Satisfeita pela minha resposta, a Dona Maria esclareceu: “O meu pai trabalhava lá, tendo sido mais tarde transferido para o posto telegráfico do Sapê. Eu nasci na Justa. Ali está enterrado o meu umbigo”.

               Em 1990, um japonês cultivava mexilhão na Justa. Eu fiquei encantado porque jamais tinha imaginado aquilo. Naquela ocasião,  no caminho de servidão, passando pelo morro onde o Tio Durval e a Tia Belinha tinham seus roçados, ainda encontrei três postes de ferro da antiga linha telegráfica. Estava num sapezal, seguido de mata rala que se reconstituía. O meu primo Giovani, do Sapê, era o meu parceiro de caminhadas. Tenho uma fotografia dele no caminho, no meio de um milharal. Coisa que continua tendo fartamente: capim-navalha.

               Dias atrás, ao me encontrar com o Roberto Ferrero, logo escutei: “Legal as fotos da trilha, né Zé? Eu já estive muitas vezes no Puruba, ali na barra, mas nunca soube da Trilha do Telégrafo”. Pois é! Penso que é preciso conhecer, amar e defender tantos espaços de energia positiva que ainda temos. Por esse caminho de servidão, na década de 1960, além do passa-passa da caiçarada, ainda trafegava um carro de boi. Ele ia do canto do Puruba até a Justa, carregado de caxeta, onde acontecia o embarque. Testemunhou o Antônio Alexandre: “O Guelo Fileto era o condutor do carro puxado por dois bois. A fábrica era do Espanhol; só beneficiava caxeta tirada desse rio acima, dessa mata alagada por aí”.

               Os postes sumiram... ficaram as histórias:
               “Na encosta do primeiro morro – entre a Praia do Puruba e a Prainha do Ubatumirim – Sidônio, caiçara-pescador, foi surpreendido com a invasão se sessenta e um homens armados à sua modesta choupana recoberta de sapé. Aturdido atendeu às exigências dos bandoleiros visitantes.
               - Qual a cidade mais próxima aqui para cima? – Perguntou Lino.
               - É Parati – informou assustado Sidônio.
               - Grande?
               - Num é cidade grande cumo Ubatuba, não.
               - Muito bem – interpôs-se Ferreira – E quanto tempo demora para chegar a pé?
               O caiçara passou a pensar, mexia o corpo, receoso de errar:
               - Se subé toma o ataio do telefone, mais de cinco léguas”. (do livro Joatão e a Ilha)


                Um toco de um desses postes restou como prova. E o mano Clóvis fotografou.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

LIDA CAIÇARA


Pescadores da Justa (Arquivo Clóvis)


Parabéns a todos do Grupo Cantamar. O lançamento do CD foi um sucesso. No dia seguinte, como agradecimento, o Júlio me enviou a seguinte poesia. O meu atrevimento foi apenas em dar um título. A lida caiçara deve ser registrada como patrimônio. Por isso devemos brigar contra todos os abusos (fechamento dos caminhos de servidão, poluição dos rios e do mar, construção em áreas impróprias, destruição do jundu etc.) sobre este território.



Mês de maio vem chegando
Vem trazendo ar de frio
Trás também sabiá una
E tainha em cardume

Para a vida caiçara
Era o que interessava
A tainha em cardume
Que do sul aqui chegava

Athanásio e seu Alfredo
Já estavam a esperar
Com canoas e suas redes
Na beira do lagamá

No alto do Curuçá
Zé Vieira a espiar
Quando o mar se refolhar
O seu búzio vai tocar

Foi depois de uma semana
Que o mar se refolhou
Era um grande cardume
De tainha que boiou

Foi ao sol de meio dia
Que a vila escutou
O búzio de Zé Vieira
Que do morro ecoou

Euforia foi tão grande
Que chapéus pro ar voaram
Todo mundo festejava
A tainha que chegava

Braços fortes e mãos seguras
Em canoas a remar
Ruma a proa remador
Ao cardume a saltitar

Larga a rede, bate a troia
Malha o peixe a sobejar
Puxa o cabo companheiro
Tá na hora de fechar

Nunca vi tão grande lanço
É pra mais de oito mil
Peixe seco vai durar
Até o mês de abril.

A tainha é sagrada
Traz na escama a imagem
Da Divina nossa mãe
Senhora Aparecida

Ao divino criador
Rezo agora e beijo o mar
A São Pedro pescador
Umas mil vou ofertar

Vai ter tainha assada
Na festa do arraiá
Ova frita, concertada...
Muito Xiba vão dançar

Isso que aconteceu
Já se faz bastantes anos
Dos que viram tal fartura
Hoje tem setenta anos.

Esses versos que eu faço
É só para lembrar
Dos costumes dessa terra
De outrora, da fartura.

Fotografia ainda existe
Graças a seu Edson Athanásio
Que preserva com carinho
A memória ubatubana.

Se sobrar um dinheirinho
Peço aos nossos governantes
Que preservem essas fotos
Como grande patrimônio

Patrimônio que relembra
A memória de um povo
Povo que não tem memória
Fica ao léu a desvairar.