domingo, 30 de janeiro de 2022

A CASA AMARELA

 
Casa Amarela - Arte da minha Gal - Arquivo JRS



    Era uma tarde tranquila. No coração do lugar ficava a casa da Margarida, uma artesã acolhedora vinda há muito tempo de Minas Gerais, mas que se integrara rapidamente com a caiçarada pelo fato de saber tecer taboas e de gostar do estilo de vida do povo dali. Para nós era a CASA AMARELA.
    
    Na casa de Margarida se reunia mais gente para prosear e fazer artesanato. Eu era um deles; me detinha regularmente por ali, na varanda, para fazer uns entalhes. Na CASA AMARELA ficava uma caixa com os formões para isso; qualquer um podia  fazer uso das ferramentas caso tivesse inspiração e tempo de se compor naquele ambiente comunitário. Vez ou outra passava pessoa de fora (turista) para ver as novidades e adquirir artesanato original. 

   Naquela tarde, somente eu estava na varanda com cachorros e crianças se tecendo, os demais trabalhavam e conversavam na grande sala da casa. Vez ou outra saía uma gargalhada prazerosa. De repente, como ocorria de vez em quando, uma viatura policial se aproxima com dois agentes e estaciona debaixo da grande mangueira do terreiro. Demonstrando tranquilidade, eles desembarcam e se arrumam, dão um "capricho na aparência". Um dos policiais, o superior na hierarquia, quer transmitir ao novato que ele está inteirado com o povo dali, que conhece bem a Margarida etc. Passam por mim apenas olhando o que estou fazendo, mas nem me cumprimentam. Não demoram muito tempo no interior da casa. O superior, satisfeito,  volta carregando uma sacola de peixes. Assim que passam onde eu estou, escuto um pedaço da fala: "Sempre que quiser uns peixes frescos é só passar aqui. Essa gente pesca sempre e guarda uma reserva na geladeira. Quem é policial tem de se aproveitar da farda, da autoridade. Tem de ser esperto". Ai que raiva eu senti. Creio que não é lição assim que eles aprendem na formação. Se isso acontece, é por desvio de caráter. Como pode ter gente dessa, que se aproveita dos mais pobres em vez de os ajudar? Que tristeza ver alguém oprimido pelo medo, pela autoridade garantida  em leis. E o pior é saber que quem sustenta esse importante serviço (de manter a segurança) são as contribuições, os impostos de quem trabalha. Está provado que o povo trabalhador é o principal pagador de taxas e impostos neste Brasil, pois os ricos sempre dão "um jeitinho" de escapar dos deveres. Cada produto que compramos tem uma taxa inclusa. Cada serviço que precisamos (água, luz etc.) tem uma cobrança extra que vai para os cofres públicos. Depois vem imposto territorial e mais  outros que estão em constante ebulição na sociedade. E deixa de pagar um deles para ver!

    A viatura já estava para sair quando eu vejo a Margarida sair apressada para perguntar: "O meu filho casado com uma moça de Paraty precisa fazer outro documento lá para conseguir emprego?". O policial do assento do carona, o superior que vai levando os peixes, responde: "Não vai precisar não. O documento que ele tem vale pelo país inteiro". Faz bastante tempo isso. A CASA AMARELA não existe mais porque os pobres daquele lugar não puderam mais pagar os altos impostos. Tudo aquilo virou lugar de gente rica. Quem comprou aquele lugar construiu uma pousada, um resort só para bem endinheirados. O asfalto chega até lá. Pobre mesmo é quem está empregados ali. Será que viaturas ainda param debaixo da velha mangueira e há policiais a repetirem aquele péssimo costume? Quero acreditar que não! 

sábado, 29 de janeiro de 2022

OUSE EDUCAR!

Lindas, no caminho. Arquivo JRS

   Estou atento à estreia de um programa sobre educação no Brasil; dele tirei o título da crônica. Ao mesmo tempo vou pensando que, na próxima semana, inicia-se o ano letivo de 2022 com uma variante do vírus da atual pandemia tendo preferência por crianças. Situação crítica, sobretudo porque é vergonhoso o índice de vacinação dessa faixa etária no nosso país. Maior vergonha - e crime! - é o governo federal fazendo propaganda contrária à vacinação.

  Me lembro muito bem das campanhas de vacinação entre a população caiçara desde o meu primeiro ano escolar (minha carteirinha é histórica, está bem guardada). A famosa  pistola, por ocasião da campanha contra a meningite (primeira metade da década de 1970), foi assustadora. Hoje, tudo evoluiu. Só a ignorância e/ou maldade negam a ciência e as vantagens de prever males piores. E de onde vem toda essa ciência, sustentáculo de tanta tecnologia? Da educação escolar! Portando, a primeira função da escola é desenvolver a ciência para garantir a evolução da história humana. A socialização e outros aspectos surgem na esteira dessa função. Se não continuarmos isso, retornamos à barbárie.

   Retomo às escolas do nosso município de Ubatuba, me recordo das escolas e dos mestres e mestras de outro tempo. Por exemplo, existiu por muitos anos uma escola por nome SESI (Serviço Nacional da Indústria). Eu a conheci funcionando na esquina das ruas Conceição e Rio Grande do Sul, onde hoje é a Escola Infantil Idalina Graça. Fui procurar mais dessa escola no livro da Tia Helô. Que bom que a nossa saudosa mestra nos legou suas memórias!


  Foi trazida [a escola SESI] pela professora Day Ferreira Gomes. Ela, com talento para um jeitinho para tudo, conseguiu esse feito, ou seja, trazer para uma cidade pesqueira um empreendimento educacional destinado às cidade fabris.
 
  Era uma instituição cheia de normas, regras e hierarquias às quais não estávamos habituados; quando um diretor de São Paulo aparecia aqui, nós professores éramos reunidos em uma das salas, e como soldados no quartel, éramos obrigados a ficar em pé, aguardando que o "general" adentrasse.

 Por ocasião de uma dessas visitas, quando um professor mais distraído, não percebendo a presença do diretor, continuou sentado, teve a atenção chamada pelo mesmo, que gesticulando, ordenou que o professor se levantasse. Mas foi, talvez, a escola mais democrática de Ubatuba e a que mais valorizou o professor  no campo salarial. Querida pelos alunos, professores e pais, foi também um marco no ensino de nossa cidade.

  O seu começo foi humilde: funcionou em três salinhas alugadas das Madres da ALA, na Rua Dona Maria Alves, com a aval da inesquecível  Madre Maria da Glória, verdadeira dama no trato com as pessoas, dona de um encanto especial para ministrar suas aulas de música, piano e artes em geral. As salas alugadas recebiam alunos do antigo primário, sob a responsabilidade de excelentes professores com Wanda e Wilma Reis, Josefina Giglio Silva, Elizabeth Valério, Iraceminha, Lourdes Ballio, Cléa e outras. Dessas salas na Dona Maria Alves, mudou para o final da Rua Cunhambebe e depois para a esquina da Coronel Domiciano com Esteves da Silva, numa garagem que foi adaptada para tal. Mais tarde chegou ao seu lugar definitivo [onde eu a conheci, na esquina da Conceição e Rio Grande do Sul] assim que comecei a frequentar o centro da cidade]. Foram vinte anos de funcionamento extraordinário.

 Detalhe interessante nas palavras da saudosa mestra: 

  A definitiva localização da escola era inadequada, pois o lugar era deserto, com trilhas em vez de ruas, cobertas de mato. Rua mesmo só até a Praça Treze de Maio. De lá para trás, era só um matagal, a Mata Atlântica. Mesmo assim, o SESI foi um sucesso, pois o local apesar de deserto, abrangeu uma comunidade em formação, lugar de migrantes que desciam a Serra do Mar, vindos do interior e ali se fixavam.


  Ouse educar! Viva o país de Paulo Freire, de Anísio Teixeira, da professora Heloísa Teixeira e de tanta gente boa que nos legou uma BOA EDUCAÇÃO!


Referência: A saga de uma caipira em terra caiçara de Ubatuba, de Heloísa Maria Salles Teixeira.

Em tempo: longa vida ao programa Ouse Educar! Parabéns Eduardo Moreira e equipe! 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A QUEDA DO CÉU

Bicuda na praia da Mococa - Arquivo JRS

    O mar está calmo. Uma bicuda (timbale) enorme me deixa contente. Teremos peixe frito. 

     Penso no planeta, a nossa casa. Eu, vivendo agora a praia, a mata, os demais seres no entorno, estou em casa. 

   Me coloco no lugar de Viveiros de Castro prefaciando A queda de céu, obra magnífica de Davi Kopenawa e Bruce Albert: "A queda do céu é rico em lições, entre outras, sobre a incompetência eficaz, a irrelevância maligna, o ufanismo bufão da teoria e prática da governabilidade "nacional" (...) O Estado? Muito bem, muito bom; mas, muito antes dele, há os espíritos invisíveis da floresta, as fundações metálicas da terra, as fumaça diabólica das epidemias e a doença degenerativa do céu - e nada disso tem fronteira, porteira ou porteira (...) Hoje o Brasil está mais para uma incorporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivadas de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minérios para exportação, coberta por uma nuvem espessa de petróleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes na produção automotiva, entupida por milhares de quilômetros de rios barrados para gerar uma energia de duvidosíssima 'limpeza' e ainda mais questionável destinação, devastada por extensões de floresta e cerrado grandes como países, derrubadas para dar pasto a  mais de 211 milhões de bois (...) Enquanto isso,  a gente... Bem, a gente continua dizendo adeus - às árvores. Adeus a elas e à República, pelo menos em seu sentido original de res pública, de coisa e causa do povo.

    O depoimento-profecia de Kopenawa aparece, assim, em boa hora; porque a hora, claro, está péssima. Neste momento, nesta República, neste governo, assistimos a uma concertada maquinação política que tem como alvo as áreas de preservação ambiental, as comunidades quilombolas, as reservas extrativistas e em especial os territórios indígenas. Seu objetivo é consumar a 'liberacão'  (a desproteção jurídica) do máximo possível de terras públicas ou, mais geralmente, de todos aqueles espaços sob regimes tradicionais ou populares de territorialização que se mantém fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lógica da propriedade privada, de modo a tornar 'produtivas' essas terras, isto é,  lucrativas para seus pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação imobiliária".

      Estou em casa, na terra que me recebeu. Esse peixe também é da casa. A casa sustenta a vida, as vidas. Cuidemos da casa.



 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

NOUTROS TEMPOS

Outros tempo - Aquivo Ubatuba


    Noutros tempos é uma música composta pelo Tio Maneco. De repente encontro uma imagem do ambiente que parece ter inspirado o titio: trata-se do Hotel Budapest, onde hoje é o Casarão, na boca-da-barra dos pescadores, no Rio Grande de Ubatuba. Imagem antiga, antes da abertura da estrada Ubatuba-Caraguá. Parece até uma cena de faroeste, daqueles filmes americanos e italianos que eu não perdia um na adolescência. Certamente que os cavaleiros eram da Serra Acima, talvez condutores de tropas que subiam e desciam o penoso caminho devido ao porto da cidade e ao comércio local (apesar da condição pacata).

  Neste momento, me recordando de partes esparsas da citada música, posso dizer que se trata de uma composição com muita consciência social. Pelo tanto que a ouvi em cantorias, posso afirmar que o grupo, aqueles companheiros do Tio Maneco, a aprovaram. Quando eu perguntei como ele tinha aprendido a fazer músicas, eis a resposta: "Isso vem dos antigos, menino. Parece que herdei deles". Uma conversa nesse teor com Kilza Setti, por ocasião do aniversário do Seo Lica, aprendi que, de fato, vem de longe: "Envolve a gênese da música portuguesa, remontando à ocupação romana, às invasões dos povos nórdicos, à influência  mediterrânica e à cultura oriental que marcou a Península Ibérica. Enfim, às prováveis vertentes tributárias que resultaram, afinal, nessa nossa herança musical". Só lamentei porque ela não se lembrou de falar dos africanos e indígenas. Creio que ainda falta muitos estudos nessa direção.

      Noutros tempo era cantada em ritmo de Alvorada. Assim eram as partes que consigo me lembrar:

Cá na lembrança tenho
Daquele grande hoté
Na praça da entrada da barra
De animá em tropé.

Tudo gente d'outra terra
Aqui'stão de passage
Venda e compra de  produto
Farinha e peixe seco segue viage.

Debaixo da árvore grande
Os animá fica no sombreado
Chico Piché emborsa dinheiro
Pondo água e capim cortado

Depois que se vão embora
À mingua fica o Piché
Rezando por outra leva
De freguês para o hoté.


     De tudo o que pude ouvir do Tio Maneco Armiro e da sua companheirada,  jamais me esqueço do som superior da rabeca  que parecia puxar  a cantoria. Mais tarde pude conhecer o violino, parecendo falar como a rabeca, mas aparentando ser mais chique. O finado Juvenal, em 1979, deu a seguinte explicação para a Kilza: "Antigamente era rabeca; hoje eles qué que seja violino traveiz. Mais é a mesma coisa; a rabeca tem diferença, que é feita de madeira daqui, como justamente é feita no violino também lá; mas lá tem outra preparação. Bem preparado; com bom arco, né? Preparado com bom, qué dizê, como é que vô dizê? Ela já vem envernizada  - lá fora  - aqui não. A senhora compra um violino de madeira branca, fazem de caxeta ou guaiarana". 

     Aqui encerro este texto em homenagem a alguns dos (as) rabequistas  de hoje e de outros tempos: Chico Garcêz, Fernanda Justo, Carolina Rangel, Maria Estefânia, Benega do Avelino, Mario Gato, Marinho, Ostinho, Roberto Ferrero, João Paulo, Dirce da Lagoa, Paulina da Ponta Aguda, Joviano, Olívio Bráz, João Miguel, Tio Maneco, Jovino Leite, Ricardo Nunes...
   

  

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

CHARCO DE GUANXUMA

Ubatuba - Ilha dos Pescadores (Arquivo Ubatuba)


    Eu, chegando na cidade de Ubatuba, avistei a faixa convidando os visitantes a conhecerem o Mercado de Peixe. Onde fica? Ali, na desembocadura do Rio Grande de Ubatuba, mais conhecida como Barra dos Pescadores. 


    Minha primeira lembrança desse lugar, dessa ilha fluvial, no acesso à praia do Perequê-açu, data da primeira metade da década de 1970, quando estava acompanhando alguém que ia fazer compras na Cooperativa dos Servidores do D.E.R (Departamento de Estradas de Rodagem). No Arquivo Ubatuba achei uma imagem aérea antiga da ilha, com o edifício que existe até hoje e muito espaço ao redor, totalmente diferente de como se apresenta nos dias atuais. Se eu não me engano, atualmente, em estado meio que abandonado, aquele edifício pertence à Secretaria da Agricultura do Estado. Ao lado, entre ela e a Escola Esteves da Silva, fica o Mercado de Peixe Municipal. Mas como tudo começou? Será que havia algo antes desse empreendimento?


  Do velho Ubatuba Hotel, na Praça da Matriz, escreveu a caiçara Idalina as suas memórias de meados do século XX:

  "Cheguei da praia. Durante a minha ausência tinha chegado hóspede. Um deles conquistou-me desde logo. Simpático, alegre, dono de uma prosa que fazia muitos meses eu não tivera oportunidade de ouvir no hotel. Tornamo-nos bons amigos. Disse-me ser professor aposentado.

  - Sou filho do município de Ubatuba. Nasci lá para os lados da Ribeira. Saí criança daqui, estudei, me formei. Porém, na minha mocidade, lecionando por este mundo afora, nunca esqueci minha terra; aqui estou agora, incumbido pelo governo do Estado de fundar o Entreposto de Pesca .

  O professor Teodorico de Oliveira foi o primeiro homem que conheci naqueles dias, a serviço do governo do Estado, disposto a amparar o pequeno pescador.

  Outros dias vieram. E era de ver a alegria que ele irradiava, metido em uma calça de zuarte grosseiro, camisa aberta ao peito, uma inseparável piteira nos lábios, movimentando-se entre os operários, exposto ao sol causticante que, no dizer dele, rejuvenescia.

  E, daquele charco de guanxuma e lama, surgiram pouco a pouco os alicerces do edifício que atualmente é a sede do D.E.R.".

   Estou, agora, imaginando agora aquela ilha totalmente deserta de gente, coberta de guanxumas e outras plantas típicas de mangue, cheia de caranguejos, passarinhos e pequenos animais; rodeada de água piscosa. Certamente, tal como era no mangue da Praia Dura nessa mesma época, ainda havia jacarés vivendo na água salobra, comendo do bom e do melhor. 

   Por volta do ano 2002, o saudoso Ney Martins me convidou para uma reunião no Casarão, sede da Fundart, com a presença de um grupo de estudantes dinamarqueses que apresentou um projeto de revitalização da Ilha dos Pescadores, um sonho do nosso grande folclorista. Será que morreu com ele ou permanece em alguma gaveta da Prefeitura?

   

domingo, 23 de janeiro de 2022

O QUE IMPORTA É A TERRA SEM MALES

Arte da minha Gal - Arquivo JRS


    Estudando a demografia histórica de Ubatuba, escreveu a pesquisadora Maria Luiza Marcílio: 

    "Pelo mar chegaram os primeiros conquistadores e segundos povoadores:  de Portugal e Ilhas, mas também da África ou dos portos da própria colônia. Vieram também europeus de variada procedência e em todas as épocas. Os índios remanescentes, que conseguiram sobreviver ao etnocídio do século XVI ou que não escaparam para as montanhas ou outras Capitanias , tiveram que assimilar-se logo aos novos-vindos. Uma simbiose biológica, social e cultural que permitiu a permanência e a sobrevivência de uns e outros". 

   A citação nos permite entender as origens da cultura caiçara e a importância de cada grupo para a formação de núcleos populacionais surgidos ao longo da costa brasileira, sempre assentados na monocultura, naquilo que a elite portuguesa apostava como lucro certo. Na sequência da retirada de madeiras, começou o ciclo da cana-de-açúcar, depois o do café... O comércio de gente escravizada na África foi muito lucrativo. Mesmo após a proibição do tráfico, pela costa do litoral norte paulista eram muitos os portos de desembarques clandestinos. As trilhas que ainda existem ligando o alto da serra às praias até hoje são provas disso. Aqueles escravos que, devido a fraqueza e doenças da travessia pelo Oceano Atlântico não conseguiam subir a serra, esses caminhos que permanecem e atestam quão dura empreitada era aguardada sob peso do açoite e agrilhoados, acabavam sendo vendidos aqui mesmo por valores bem abaixo do mercado. Não demorava muito para esses sobreviventes serem descartados, se  juntarem em quilombos e nas atividades de sobrevivência dos outros pobres que aqui resistiam. E assim se fizeram, fundaram essa nossa cultura caiçara com base na pesca, agricultura  e caça. Tudo entremeado pelos aspectos festivos e místicos.

    Com o passar de tempo, com a intensificação do povoamento, se usa o termo caiçara para quem é morador tradicional daqui, sem diferenciação se pratica ou não as atividades tradicionais, querendo manifestar orgulho, sendo um atestado de identidade cultural, como se dissesse: "Eu sou caiçara porque eu pertenço a este território". Está valendo! Prova disso é gente de fora nos fandangos, se tornando pescador, participando das provas de canoas, gerando novas reflexões, produzindo artesanato, querendo vida simples, preservando a natureza etc. A grande verdade é que ser caiçara envolve dinâmica constante da relação entre o homem e o meio ambiente (mar, terra, rio e serra), marca o pertencimento a um território que garante a sobrevivência. O que se mostra como desafio após o advento do turismo é como as transformações do espaço vão sendo acompanhada pelas mudanças culturais. Tenhamos em mente que a nossa origem foi de agrupamento de etnias, de gente desvalorizada e/ou perseguida pela classe dominante europeia. Portanto, que esse princípio seja a marca principal da cultura caiçara. Não nos acomodemos e tenhamos claro o horizonte, a firmeza incessante da busca da terra sem males que já servia de farol aos povos originários desse território. Esta é a nossa esperança contra as forças opressoras e espoliativas que chegam de fora, muitas vezes sorrateira como uma cobra. O que me preocupa há muito tempo são os mecanismos dinâmicos que reduzem as pessoas a enxergarem  a natureza e os seus próximos apenas como fonte de acumulação do capital, esquecendo (ou desconhecendo) que este espaço já possui uma organização anterior. Bem anterior!

  Enfim, cabe discutir, fazer e celebrar nas comunidades, nos diversos grupos existentes e na sociedade civil organizada os diferentes projetos relacionados ao mesmo espaço: o NOSSO ESPAÇO CAIÇARA. Da resistência nasce a TERRA SEM MALES.

sábado, 22 de janeiro de 2022

TERREIRO DO TIO TOTÔ

A menina e a flor - Arte: Estevan


    Tio Biduca era contador de histórias. (Mais um da minha infância). Tinha a preferência por falar do tempo em que trabalhou nos bananais em Santos, das viagens nos barcos de cabotagem que circulavam entre Ubatuba e a Baixada Santista até metade do  século XX. De vez em quando me vem à memória aquelas rodas de conversas, aquele pessoal que se reunia no terreiro do Tio Totô; me recordo de nomes, de fatos trazidos e comentados naqueles momentos. Conforme a história, eu olhava e apurava mais a audição para escutar os assuntos dos mais velhos, mas sem deixar de brincar no espaço que eu adorava. A nossa casa, mais tarde vendida ao Tio Antônio do Prado, era circundada pelas demais: Livina/ Leôncio, Andrelino/ Jorgina, Ana/ Dioclécio, João Paulo e Ana... Entre ela passava o caminho que seguia até o Sertão da Quina. Tudo na Praia do Sapê.

    "Quase arrumei uma noiva na penúltima vinda para cá". Era a vez de todo mundo prestar atenção no Tio Biduca. "Catarina era a 'mocinha da proa' do 'Ubatuba-Santos', do Mestre Luiz Camilo. Diziam que era filha dele  que estivera na Santa Casa de Santos em tratamento médico. Creio que foi tudo bem; parecia feliz segurando uma flor, de vestido roxo e com uma tiara, um arco na cabeça. Sempre estava na proa olhando as paisagens, as gaivotas e atobás. Sorria para toda gente da embarcação. Vim saber que que o mestre Luiz era filho do fazendeiro Camilo Lellis Vieira, dono da Fazenda Jundiaquara, no Itaguá. É herdeiro do francês Camille Jam. Disseram que, no alto do morro, eles têm uma casa grande, branca, que se vê de longe. Não produzem mais café para fora porque as terras estão cansadas, mas seguem fazendo cachaça, mesmo que as vendas tenham diminuído muito. Agora, eu não entendo uma coisa dessa: como um filho de fazendeiro foi se tornar mestre de barco?". 
  
      Tio Totô entrou nessa parte: "Eu entendo. Os filhos agora vivem outro tempo, os desafios são outros. Passou a fase das importantes fazendas. No caso presente, um foi ser mestre de barco, o  irmão dele, o Vivi [Leovigildo Dias Vieira], tá correndo atrás de novos negócios, a irmã Astrogilda  agora é funcionária da Prefeitura...e por aí vai. Essa gente, assim como nós, precisa se adaptar. Nós menos, né? Afinal, sempre fomos pobres, vivemos da roça e do mar. Deve ser bem mais difícil para quem foi se empobrecendo no decorrer da história. Eu admiro muito a ousadia, a coragem do Mestre Luiz Camilo. Já fiz viagem com ele no comando e vi o quanto é corajoso e conhecedor do mar e da arte de navegar. Eu presenciei ele lendo na cabine, estudando aqueles mapas feitos pelos ingleses. Eu admiro gente assim, passa mais confiança a todo mundo. Na primeira oportunidade que aparecer pela frente, vocês não acham que o Biduca deve ter mais coragem, deixar de ser medroso e falar com a moça?". Todos riram a valer.

    Comecei esta história após permanecer um tempo na Avenida Leovigildo Dias Vieira, no Itaguá, bem rente ao Rancho dos Pescadores, onde meu saudoso pai, Leovigildo Félix dos Santos,  passou seus últimos dias de pescador e de carpinteiro.  Ali, onde todos eram seus amigos,  ele reparou várias embarcações. A manhã estava radiante.

Em tempo: o nome do meu pai foi em homenagem ao Vivi. Parece que era muito estimado pelos caiçaras mais velhos.

     

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

DESEQUILÍBRIO


Desequilíbrio: carcará na cidade (Arquivo JRS)


   O dia já completava hora que clareara. As grimpas dos morros brilhavam. Pensei: "O calor hoje esturrica a nossa terra. Bom para praia e para secar roupas". De repente, um grupo de adolescentes/jovens vem pedalando em sentido contrário, vindo da cidade. Certamente estiveram festejando na avenida, em alguma balada.  Antigamente se dizia que quem passava a noite em claro, perambulando, era lobisomem que "passou correndo sete praias". A noite era para dormir, descansar. Não demora muito para vermos mais gente preferindo viver intensamente pelas noites, evitando os dias. O que é isso? É desequilíbrio! 

  O mano Mingo, na poesia Desequilíbrio, indica que muita coisa mudou a partir da invenções que desnudaram as noites. Aqueles fenômenos fantásticos de outros tempos se foram, buscaram outros refúgios. Então esta é uma verdade: a luz elétrica quebrou o encanto da escuridão, acabou com as assombrações. Outra verdade: devemos usar a luz da razão, entender que não devemos cultivar o instinto de morte que caracteriza o atual domínio das sombras que paira sobre o nosso país e no mundo. 


Antigamente o tempo era dividido direitinho

entre a claridade do dia e a escuridão da noite.

A luz iluminava os seres humanos e seus ofícios,

que, de tanto elucubração,

inventaram archotes, lâmpadas a óleo, lampiões de gás,

luz elétrica e foram avançando

sobre os domínios das sombras,

chegando ao ponto de  não restar aos boitatás

senão o refúgio no espaço das lendas.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

SOMBRA LUMINOSA

Campos do Jordão -  Sombra luminosa - Arquivo JRS


    A Prefeitura acabara de cortar umas árvores naquela semana a pretexto de melhorar a via para carros na avenida da praia. Elas estavam naquele lugar há muito tempo. Nasceram espontaneamente ou foram plantadas? Não sei. Próximo delas morava alguém que, em outros tempos, foi pessoa muito influente na sociedade local. Naquele momento, eu que por ali passava, escutei um pouco da conversa dessa pessoa já idosa com uma senhora, mais idosa ainda, a respeito da ação daqueles dias praticada pelo prefeito. "Eu as vi crescerem, embelezavam, davam sombras e, além de nós,  serviam aos passarinhos. Onde já se viu uma coisa dessa? Sabe o que vai ser ali agora? Será uma estrada, pois a prioridade são os carros. Será que não basta uma via só, sem essa desculpa de duplicação? Os carros, a cada ano, devem se multiplicar. O que farão depois? Construirão uma terceira via? Removerão as casas antigas? Construirão sobre a praia? E depois de tudo cimentado, asfaltado etc. será prazeroso viver aqui?". A senhora, que escutava atentamente, falou com sabedoria: "Haverá tempo em que não haverá árvores a acolherem os caminhantes exaustos, os jovens enamorados, as amizades a se abrigarem em sombras para suas prosas...Os pescadores já não as enxergarão como referências nas  vindas de suas labutas.  Essas árvores, como todas as árvores dessa avenida, serão sacrificadas para o bem-estar de outro ser, de seres humanos que se acomodam em veículos potentes e precisam de espaços apropriados. Depois, pontos comerciais se amontoarão nesta avenida inteira e serão justificados porque alguém/alguns  precisam ganhar dinheiro, se enriquecer.  E assim se sentirão felizes na transição terrena. Nós passaremos, Seo Pedro. Felizmente não seremos cortados. Agora, na nossa velhice, nos conformemos com aquilo que ainda podemos fazer com nossas palavras, esperando a morte ainda respirando este ar puro. Que possamos ser sombras a espíritos que não foram corrompidos; que convertamos corações. Vamos olhar as verdes encostas medrosas pelo mar bravio batendo nas pedras; vamos contemplar o céu todo safira bordejando de azulado; vamos desfrutar do sol que perpetua a vida. Vamos nos amar porque é o amor que defende a vida. Quem poderá dizer daquilo que as futuras gerações poderão fazer? Quais intervenções ainda darão muito o que falar na sociedade ubatubense? Quem sabe as nossas sombras possam iluminar, né". Eu me afastei pensativo: "Como pode uma sombra iluminar?". Hoje, relendo os registros daquela senhora, eu entendo e sinto a luminosidade "ambicionada" naquela prosa daquele tempo. Valeu, Dona Idalina Graça!

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

PROTESTOS NA MATA

Arte no restaurante -  (Arquivo avulso)

   Na mata tem seres fantásticos. Na nossa Mata Atlântica tem mais ainda! Esses seres são os donos da mata. Os caiçaras mais velhos falavam dos macacos, os monos [buriqui ou muriqui], em especial os barbados [bugio] que, ao avistarem caçadores, gritam o tempo todo para alertar o próprio grupo e os demais animais da redondeza. Quando criança eu já escutava histórias impressionantes de macacas defendendo seus filhotes, implorando para que não atirassem nele. Francisco Alexandre contou que "uma fêmea de barbado, com o filho nos braços, vendo-se sob o alvo da arma do caçador, chorava e falava, mostrando o filho, como uma súplica para que o tiro não fosse desfechado". E o que dizer daqueles relatos onde a pessoa, após um "tiro vergonhoso", passa a sentir remorsos, ter miragens, ver os animais condenando-a com suas falas e até resolver abandonar o hábito de caçar? Chico Braga foi um desses: começou a sentir o peso de muitos momentos covardes que viveu em caçadas, foi ficando acabrunhado, apertou o coração... e... se converteu a uma dessas religiões que assustam mais ainda.  
 
  Vem do Ubatumirim a admiração maior pelos costumes dos macacos. Olympio assim escreveu na década de 1970: 

  "Os costumes dos monos e barbados causam muita admiração aos ubatumirenses. O capelão dos barbados, um macaco forte e sisudo, com sua barba respeitável, ocultando o seu gogó saliente, lidera o bando que tem por volta de 10 indivíduos. No caso do perigo, o capelão, aos berros, envereda-se pelas ramagens, emadrinhando-se atrás dele os membros do bando. Nas encostas da Serra do Mar, com seus urros e berros fazem a mata ficar em silêncio".

  A última vez que eu presenciei uma gritalhada de macacos, foi há anos na cachoeira da Água Branca, no Sertão da Quina. Eu e o primo Giovani ainda tomávamos café ao amanhecer quando aquela zoeira foi se aproximando e parou numa árvore bem em cima de onde estávamos. Ficaram fazendo barulho por quase meia hora, depois sumiram, continuaram o passeio. "Bugio  gritando é sinal de chuva chegando, Zé", disse o primo. "Mais ainda? Então eles devem passar o tempo todo gritando!", comentei rindo imediatamente. "Acredito que eles vieram por curiosidade e aproveitaram para alertar outros animais da nossa presença aqui. É a forma de protesto dos macacos. Tomara que eles possam viver por aqui mais tempo do que nós. Pelos tempos que este território é deles, imagino o quanto conhecem disto tudo. Quantas dessas árvores nasceram graças aos passeios deles. Quantas sementes um bando espalha num passeio desse? Você acha que aquele cambucazeiro bem ali, essa quantidade de pés de araticum e tantas outras frutíferas que nos socorrem por aqui é trabalho de mãos humanas? Devemos aprender com eles a protestar contra as invasões, os desmatamentos, as caçadas e tantos outros absurdos que vamos ignorando". Por fim, não esqueço da fala do Giovani: "Desses bichos todos, nós fomos os últimos a chegar e os primeiros a causar o fim de tanta coisa, a apressar o fim do mundo. O que podemos fazer para mudar isso?".

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

NININHO DE GUERRA

Nininho - (Arquivo avulso)

 
    O nome dele era Pedro de Barros Souza, sobrinho do Mané, do Josino e do maestro Pedrinho. Outros parentes eu não conhecia nos idos de 1970. Nininho Padeiro, ou simplesmente Padeiro era como o chamávamos. Bem mais  tarde eu conheci a sua irmã, Fatinha, futura esposa do Tio Salvador. Há tempos ela é pessoa de proa na Secretária da Educação no município de Ubatuba.

   Nininho era o entregador de pães e leite do município. A padaria do Mané e irmãos era ali, na entrada da cidade (Vila Guarani), próximo de onde é hoje o Aquário de Ubatuba. Na escuridão, com uma perua Kombi lotada de sacos de pães e caixas de leite, ele ia entregando, nos bares e mercearias, as mercadorias. Chegava até a praia da Maranduba, 25 quilômetros distante da padaria, onde fazia a última entrega e voltava recebendo e recolhendo os sacos e caixas vazias que se encaixavam uma a outra. Naqueles pontos onde ele tinha mais afinidade, se demorava mais um pouco para prosear e tomar uma cervejinha. O bar onde eu trabalhava, no Perequê-mirim, era o local preferido dele. Ali contava histórias, falava da prole (Priscila e Juliano), elogiava a esposa, Regina (?), filha do saudoso Marino Garrido, de Caraguatatuba. Também se realizava nos comentários da sua terra natal, a Paraisópolis querida, em Minas Gerais.

  Nininho, naquele tempo, foi quem mais comentou comigo a respeito de política. A ditadura militar daquele momento era o assunto de seu maior interesse. Ficava indignado com as censuras feitas a peças teatrais, músicas etc. Parece que estou escutando ele agora, cheio de raiva, dizendo: "Você viu, Zezinho, que a música Cálice, do Chico Buarque foi censurada? Cortaram o som dos microfones quando eles estavam cantando, num show". E cantava um trecho da canção: "Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano/ Quero lançar um grito desumano? Que é uma maneira de ser escutado/ Esse silêncio todo me atordoa? Atordoado eu permaneço atento/ Na arquibancada pra qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa". Nessa parte eu o acompanhava no refrão: "Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue". Em seguida, a indignação do Nininho: "Onde já se viu! Até quando vamos aguentar essa pressão e essa repressão? Me dá mais uma geladinha, daquela estupidamente gelada". Depois, bem embalado na graduação alcoólica, seguia o trajeto de volta. Não sei como nunca se envolveu em um acidente mais grave. Por anos, nunca ele falhou um dia, de domingo a domingo, nas entregas.

   Ontem, somente ontem, soube da morte do Nininho ocorrida em maio passado. Também soube do triste fim do jardineiro Pedro, natural da cidade de Piquete. Os dois foram exemplos de decência, de contribuição à coletividade local, de amizade sincera e boas prosas. Ao pessoal mais novo, faço minhas as palavras da Idalina Graça: "Vida e saúde a essa moçada, filhos da minha terra ou de outras plagas. Que, em sã consciência, possam dar ao meu torrão seu amor, sua abnegação e seu trabalho de cidadãos de que tanto necessita para todos podermos caminhar em um roteiro certo e cumprir nossa missão".

  Meus sentimentos e minhas considerações aos familiares do Nininho e do Pedro, migrantes de outros tempos que acorreram à nossa cidade em busca de melhores condições de vida e que fizeram diferença em meu ser caiçara.

 

sábado, 15 de janeiro de 2022

ESCOLA TEM DE SER UMA INSTITUIÇÃO POPULAR

Instrução - Arquivo JRS

     Alguns amigos, moradores do centro da cidade de Ubatuba, há muito tempo, sentiram necessidade de um espaço cultural onde pudessem ler e discutir em torno das maravilhas literárias. Vários bairros (Mato Dentro, Itaguá...) já possuia rotina escolar garantindo a instrução pública básica aos caiçaras. Assim começa a história do Gabinete de Leitura Ateneu Ubatubense em 4 de julho de 1875, cuja finalidade era a instrução de seus associados. O patrimônio era a biblioteca particular para uso exclusivo da associação. 
   
    No dia 8 de dezembro de 1886 chegou a essa cidade o médico carioca João Diogo Esteves da Silva. Prontamente ele se associou ao grupo do Ateneu. O que transcrevo a seguir é registro dele que Felix Guisard Filho atualizou e nos legou acerca da evolução da iniciativa daquele grupo de amigos.

   "Depois de uma existência de progressos sempre crescentes, durante seis anos, reformados os estatutos e de novo reproduzindo-se o artigo que facultava a instalação de uma escola noturna, logo que as condições o permitissem, a diretoria dessa época, desejando dar maior impulso ao objetivo de todos, isto é, instruir mesmo os estranhos à associação, instruir ao povo, resolveu levar avante a ideia de criar uma aula noturna nesta localidade. Em 1º de outubro de 1811 foi solenemente inaugurada a escola noturna para sexo masculino. [...] E, por deliberação da assembleia geral, foi franqueada a biblioteca a todos aqueles que viessem à sala de leitura nas horas diárias em que o estabelecimento se achasse aberto. Leitura dos livros em domicílio, só aos associados; leitura na casa, franca para todos os habitantes ou viajantes".  Ou seja, foi democratizado o acesso aos livros, ao saber que a pequena Ubatuba tinha em acervo. Até viajante, turista que estivesse uns dias por aqui, poderia entrar para uma leitura. Portanto, faz-se necessário criar e manter o funcionamento regular de espaços culturais, de bibliotecas.

 Continuando no registro do Guisard: "De simples biblioteca particular, modificou-se em instituição popular. Algum tempo depois, foi solicitado ao diretor das aulas que concedesse que senhoras e meninas pudessem assistir às explicações. Assim deliberou abrir uma aula para o sexo feminino, cujo programa era o mesmo que das aulas do sexo masculino".

   
Ruínas do Ateneu, na primeira metade do século XX -  Arquivo Guisard

    Agora, observando a imagem da primeira escola noturna em ruínas, leio a descrição do seu esplendor:

    "Na frente do edifício estão a sala de leitura e duas saletas anexas, em cuja paredes ostentam cinco mil volumes em estantes abertas e armários envidraçados, assim como em mostradores envidraçados coleções de numismática e minerais do local e da província. Em quadros elegantemente emoldurados avistam-se feitos gloriosos da guerra do Paraguai, o retrato de S.M. o sr. D. Pedro II, ainda moço, e seis bustos sobre bonitas peanhas representando Galileu, Safo, Rossini, Lincoln, Newton e Ambrósio Paré".

   Naquele espaço de leitura e estudo nasceu também a ideia de museu: 

    "Diversas peles de animais, ossos, grupos de lepidópteros etc., também se apresentam como elementos de um museu para o qual convergem os esforços afim de aumentar o campo de instrução. Em outra saleta à direita destas, grandes mapas da nossa costa brasileira, fornecidos pelo Ministério da Marinha, em quadros emoldurados singelamente, ornam as paredes. Vê-se em armário envidraçado uma linda coleção de vegetais marinhos, valvas de moluscos, gasterópodos, equinodermes e outras riquezas do fundo do mar, fazendo parte do museu. No lado posterior do edifício funcionam as diversas aulas da escola noturna. Numa sala espaçosa, com duas largas janelas para seu arejamento, são lecionados os alunos: é a sala A. Ao lado esquerdo, em outra um pouco menor, comunicando-se com esta por três largas portas, acham-se as alunas: é a sala B. a direita, em sala menor, reúnem-se, para aulas avulsas de francês, de redação e composição da língua nacional, os moços que não estão sujeitos à matrícula: é a sala C".

   A "parte posterior do edifício" era a que recebia a brisa do mar, de onde se avistava a praia de Iperoig, do Cruzeiro. Que prazeroso devia ser! Hoje, a escola herdeira desta história é a Escola Estadual Dr. Esteves da Silva. Fica na beira do Rio Grande, próximo do Mercado de Peixe. 

   Pergunta: por que não foi preservado o Ateneu Ubatubense?

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

NOVIDADE DO DIA

Pé de bacupari - Arquivo JRS

 

Bacupari-açu - Arquivo JRS



     Valtinho passou cedo. "Vamos buscar água na bica?". E lá fomos nós na direção do Horto Florestal.
   
     A Estação Experimental do Horto Florestal existe em Ubatuba desde a primeira metade do século passado. Já foi um importante centro de pesquisa, mas nos últimos trinta anos a política do Estado de São Paulo segue a do país: deixar de investir para ter argumentos à privatização (exigência do capitalismo). Por isso não se contrata mais funcionários, encerram-se as pesquisas e os últimos trabalhadores aguardam a aposentadoria, mal dando conta de roçar o mato e de manter a aparência,  de ter alguém por ali como se dissesse que não está abandonado o local. Mas é notório e triste a situação. "Tá vendo tudo isto, amigo? Logo será privatizado, irá parar nas mãos de quem vai explorar isto visando apenas o lucro imediato. Este bem público será praticamente dado à iniciativa privada. Você acha que, quando isso acontecer, nós poderemos entrar tranquilamente por aqui, ver isso tudo, passear, pegar água, coco, frutas do mato etc.?". Valtinho ficou pensativo. Só os omissos, ignorantes e aproveitadores não enxergam as consequências dessas privatizações que se deram por iniciativa do Governo Federal (gestão FHC), na década de 1990. Os desastres ambientais, as barragens se rompendo estão comprovando isso. A  ruína no nosso Horto é o exemplo mais próximo. Quantos estudantes poderiam estar se capacitando ali para entender melhor esse nosso entorno verde, evitar a extinção de espécies, pesquisar outras possibilidades à vida coletiva,  decidir por uma filosofia planetária, amar e defender a nossa "galinha de ovos de ouro"? Quantos cidadãos poderiam estar atuando ali de forma voluntária, preocupados com as gerações mais novas e futuras, pensando alternativas significativas à sociedade local?

    Continuamos subindo o caminho da bica, da "Fonte da Amizade".  Notei uma folha conhecida, tal como a de bacupari, uma das muitas frutas da Mata Atlântica. Estranhei porque era muito grande, o dobro da nossa tão familiar bacupari-de-bico. "Mas é bacupari, Valtinho!". "Será, Zé?". "Vamos esperar o tempo dele, o mês de janeiro". Dito e feito! Nesta semana confirmamos: "É outra espécie de bacupari, Valtinho. Tá amadurecendo; vamos provar". 

   Essa  espécie prova o quanto de riqueza ainda temos a descobrir na natureza, na mata que nos rodeia. Depois do bacupari-de-bico (que eu achei por quase toda a vida que fosse único), conheci o bacupari-limão, bem redondinho. E agora esse imenso bacupari, com mais polpa e um gosto mais ácido. Adorei. Colhi alguns para mostrar ao pessoal de casa e apresentar agora, neste texto. As sementes darão novas plantas. Irei pesquisar se há registro dele, se há nome... Por enquanto, será bacupari-açu. Que fim teria essa planta se esse espaço já fosse privatizado? Com toda a certeza eu e o meu amigo não estaríamos circulando tão livremente, podendo olhar tudo com tanta atenção. Ou ali passaria uma estrada pavimentada? Ou tudo viraria gramado com churrasqueiras para quem pudesse pagar a diária? Ou teria um centro de convenções? Ou viraria pasto? Ou..ou..ou...?

   Viva essa biodiversidade preservada pela cultura caiçara! Que venham estudantes afoitos por essa herança que nos coube! Que chegue a cidadania plena!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A ORIGEM DA ADULTERAÇÃO DO SENSO MORAL

Cadeia pública, hoje museu municipal, na Praça Nóbrega - Arquivo Ubatuba


      Doutor Esteves da Silva, carioca que escolheu viver em Ubatuba, era médico e deputado. Na última década do século XIX, escreveu:


     Os ubatubenses descendem de portugueses, do indígena e do africano: mestiços onde predomina o elemento caucáseo ou o autochtone, herdaram a robustez orgânica, o amor à família, e a crença religiosa do vigoroso lavrador lusitano, a sagacidade e a resignação do índio brasileiro. 

     Nas suas condições éthinicas deparamos com qualidades tão apreciáveis, nas manifestações moraes com tantas provas de afeição pura e cordial; nas emergências da vida vimos fulgurar-lhes uma certa sensatez, um discernimento recto, uma tenacidade tamanha que, não obstante a simplicidade, quase poderíamos dizer bíblica, que transparece como elemento natural do espírito de grande parte da população do campo, tudo denota um povo viril, apto a um futuro de progresso, digno da sociedade paulista, honroso fator da comumnhão brasileira.

    A ingenuidade original de suas aspirações  limitadas a um presente precário symbolisa a comsequência forçada de circunstâncias mesológicas anteriores, onde a tradição de um remoto espírito de resistência de nossa população do campo a toda novidade que destruísse hábitos atávicos, se imiscuía com a proverbial indolência do proletário desalentado, títere da poderosa vontade dos plutocratas do interior, pervertido pela criminosa adulteração do senso moral introduzida nas classes submissas pelos dominadores dos antigos latifúndios, verdadeiro feudalismo de tempos que já se foram, graças ao influxo bemfazejo e reabilitador de uma idéa nobilíssima, a emancipação do elemento servil.

    Não se pode  comprehendel-o como um povo onde sobrepuja a imbecilidade, como uma raça de cretinos, porque taes degenerações são incompatíveis com a emoção vivaz e impetuosa diante de grandes idéas; e não correria em contingente numeroso a oferecer voluntariamente a vida em holocausto à Pátria durante a campanha do Paraguay, como fizeram os ubatubenses em repetidas dezenas de seus homens válidos, cujas ossadas jazem em plagas longínquas, pois só bem raros volveram a seus lares, e esses poucos atestam as honrosas insígnias dos bravos nas cicratizes que os engradecem.

    Com a lei do Rio Branco fez reluzir no céu brasileiro os primeiros albores de uma nova era para os captivos de um preconceito, víctimass de um crime social, os escravos, comoveu-se este povo e as libertações se succederam tão repetidas e numerosas que a lei áurea de 13 de Maio quase não encontrou a quem iluminar coração e inteligência com as fulgurações da Liberdade.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

ESTÁ NA NATUREZA

Jaca madura - Arquivo JRS

    
     Adoro as frutas, sobretudo dessa época, de verão. A que mais faz sucesso agora é a jaca (por ter em maior quantidade pelos caminhos e matos). Caso você esteja caminhando da Lagoa para o Simão, duas praias do lado sul do município de Ubatuba, não tem como não perceber as jaqueiras e o cheiro das frutas amadurecidas. Na Prainha do Costa, Figueira, Félix, Camburi e tantas mais é a mesma coisa. Também repare nas bananeiras pelos caminhos, pois sempre tem passarinho avisando dos cachos no ponto. Mas se prestar mais atenção ainda, notará os pés de bacuparis carregados de frutinhas amarelas, os cambucazeiros alaranjados sempre desafiando pelas alturas e outras variedades que persistem na Mata Atlântica. Não tem como passar fome. Nem sede! Com tanta chuva neste começo de ano, os olhos d'água reapareceram em muitos lugares. Ontem, pedalando com a minha filha, ao lado da rodovia, indo para o Horto Florestal, uma água abundava pela ciclovia. "É vazamento, pai?". "Não, Maria. É uma mina d´água, vem dali do morro que, mesmo sendo queimado a cada ano, essa água dificilmente seca. Imagine então se a mata estivesse constituída, preservada! Um gestor atento, querendo embelezar, oferecer água aos transeuntes e evitar essa área encharcada, construiria uma fonte bem ali. A comunidade pode acordar para esses pequenos gestos, essas pequenas obras. Imagino que ela seja deliciosa e de boa qualidade". Também imagino o quanto seria útil, além de bonito, as margens das rodovias serem repletas de árvores frutíferas, tipo abacateiro, jaqueira, cambucazeiro, fruta-do-conde, pitangueiras, amoreiras, grumixameiras, araticunzeiro, fruta pão etc.

     Agora, diante do texto, sinto um cheiro próximo. É cheiro-saudade e cheiro real de outra jaca no ponto de ser aberta e servir de alimento. Quando criança, a gente rodeava a jaca aberta, cada um de nós segurando um galho seco servindo de espeto para ir "pescando" os favos e se fartando junto com as pessoas estimadas. Tem coisa melhor que isso de partilhar? É o isso que chamo de cheiro-saudade.


Em tempo: o meu saudoso Tio Aristides foi tricampeão na prova de quem comia mais jaca de uma vez, no Sertão da Quina. (Era uma prova anual, em pleno verão, com muitos participantes). Sua melhor marca: deu conta de uma jaca e meia. E saiba que a disputa tinha um componente a mais: jaca com farinha de mandioca. É mole? São coisas de caiçaras!

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

JARDIM DE FESTA

Rosas diferentes - Arquivo JRS


Rosas diferentes da Tia Nair; festa na praia.
Minha gente e outras acorriam.
Sempre tempo de caminhar
- Mesmo que seja na chuva -;
Janeiro, sobretudo, de  festejar.

As prainhas, o Bonete...
A Grande do Bonete.
Rostos a ansiar:
Zé Teotônio, João Nanico, Aurora...
Minha gente daquele lugar.

Continua dois festejos ao ano:
São Sebastião e Sant'Ana.
Entre céu, roça e mar.
Sobre morro, desce praia...
"Não vejo a hora de chegar".

A maioria segue a pé,
Um tanto de canoas vai no rumo,
No Canto Manso terão de embicar.
"É gente de toda parte;
Até turista vai chegar".

Rojões, tambores, bandeirinhas coloridas...
Procissão de devoção...
A capela do povo rezar...
Um leilão de prendas...
O melhor por fim: função até o Sol despontar.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

CARTA DA BERNADETE

Dia festivo na escola das Madres Agostinianas (Arquivo Ubatuba)


      Bernadete estudou na A.L.A (Assistência ao Litoral de Anchieta), da Congregação das Cônegas de Santo Agostinho, em Ubatuba. Também lá estudou a Neide, a Ângela, a Nadir, a Verônica, a Beth e tanta gente a mais. Funcionava como semi-internato àquelas meninas caiçaras de pontos mais distantes do centro da cidade, onde faltavam até estradas. Esse apoio fundamental existiu por toda a segunda metade do século XX, com algumas religiosas se projetando mais do que outras na vida social local (Madre Glória foi um grande exemplo), mas todas muito dedicadas à educação. Quantas meninas das muitas famílias caiçaras foram acolhidas ali, puderam estudar e receberam noções de cidadania mais abrangentes!? Vale a pena uma pesquisa a esse respeito. Ainda hoje temos enfermeiras e artistas daquele tempo, frutos daquele espaço de formação, mas já aposentadas.  

    A A.L.A era um educandário, com aulas de cerâmica, tear, artes, música etc. Tudo isso ocupava praticamente meia quadra, na Rua Gastão Madeira, onde atualmente está a Escola Olga Gil, a Secretaria da Educação e não sei o que mais. Era um lugar agradável demais! Posso garantir, pois passei inúmeras vezes por lá para visitas rápidas às parentes acolhidas pelas Madres. 

   Hoje, Bernadete depois de uma vida de muito trabalho, já é falecida; apenas seus filhos e netos estão por aí, mas nem sei como lidam com o pertencimento à cultura caiçara. Pode ser que nem pensem mais nisso. Mas...aqui vai uma carta da jovem Bernadete:

    Estou bem aqui, mas com saudades sempre de casa, do quintal cheio de criação, da roça e do mar; de encontrar sempre com vocês na praia. As madres nos tratam bem, demonstram amor, mas são severas nas regras. Há vários momentos de oração, de estudos e de trabalho. Assim, aquele amor do ambiente familiar vai se espalhando. Passei a reparar e admirar atitudes entre pessoas que não se conheciam: gestos de amizade, palavras brotando do coração, preocupação pelos mais próximos... São atitudes que me fascinam, me levam a acreditar ainda mais no amor. Que isso possa se multiplicar, ser apresentado como primeiro passo para um mundo melhor. Eu espero, por toda a minha vida, fazer uso do amor exageradamente, tal como os meus pais demonstraram desde quando eu nasci.  Esta obra da madres, sem dúvida alguma, é reflexo de gente que quer expandir o que há de melhor na humanidade. Que essa Congregação e essas madres sejam fortes e sigam assim servindo aos mais pobres, ao meu povo caiçara. Acredito que tudo de bom que eu aprender aqui irei levar à minha família e a mais gente. Abraços meus a todos. Com saudades.

  

 

domingo, 9 de janeiro de 2022

O FUTEBOL

1961 - o time campeão, no livro de Justo Arouca

 
    O futebol, desde quando eu era criança, já era o esporte dos caiçaras. Nas praias, nos finais de tardes, os mais novos se reuniam para a disputarem a bola com muitas caneladas, mas também com lindas jogadas. Eu conheci bem os campos de futebol da Praia Grande do Bonete, da Maranduba, do Sertão da Quina, do Lázaro, do Perequê-mirim, da Enseada, das Toninhas, do Itaguá... No centro da cidade, ainda peguei a possibilidade de participar de uns rachinhos na Praça 13 de maio. Mas os mais velhos falavam de um campo, onde mais tarde foi a A.L.A, das Irmãs Agostinianas. Hoje é a prefeitura (a Secretaria da Educação) e a Escola Olga Gil, cujo prefeito Alberto Santos cedeu à obra das religiosas por determinação superiores, do governador do Estado. Restou a alternativa de ocupar a já referida praça, que na época era arenosa, plana, bem diferente da atual (modificada em meados da década de 1980 pelo prefeito Pedro Paulo).

   Ontem passei pela praça apreciando tudo aquilo que por ali estava. Pensei em muitos momentos que eu tive oportunidade de viver naquele local, inclusive um Campeonato de Sumô ainda na década de 1970, evento que comprova a importância nos nipônicos e seus descendentes na história de Ubatuba. Um dia ainda espero fazer uma matéria com a associação deles - ANIBRA - Associação Nipo Brasileira de Ubatuba, saber de seus arquivos e das riquezas que podem conter tantos anos desse povo em nosso município. 

  Mas voltando ao tema futebol, fui reler o livro do Justo Arouca - Ubatuba - onde a lua nasce mais bonita - porque contém informações preciosas, sobretudo acerca do protagonismo juvenil, do Grêmio Estudantil 28 de abril da Escola Capitão Deolindo, que dinamizou não só o futebol, mas também os outros esportes (natação, basquete, vôlei, futebol de salão etc.). Nasceu com esse Grêmio a Prova Natatória Cidade de Ubatuba. Hoje ninguém mais fala dela, as gerações mais novas nem sabem que ela existiu. 

  Quem cursa qualquer coisa na área de Turismo deveria se voltar a esses eventos que agitaram a vida local e se constituíram uma alternativa na economia municipal em outros tempos. Por exemplo, o primeiro campeonato de futebol aconteceu na Praça 13 de maio, em 1961. Ali, naquela imagem embaçada, estão os campeões: Benedito Pinho, Tonico Chieus, Orivaldo de Oliveira, Hercules Cembranelli, Luiz de Oliveira, Edmilson Guatura, Justo Arouca, Caiuby Carpinetti, Joanilson Serpa, Ronaldo Gonçalves Duarte, Expedito Arcanjo, Arlindo Torres, Benedito Lourenço, José Mendes, Dilo da Cunha, João Coutinho, João Raimundo e Celso Teixeira Leite. Lá também está a informação de que a LUF (Liga Ubatubense de Futebol) foi constituída em 20 de novembro de 1964.

   Esporte é vida, meu povo! Infelizmente, pouco a pouco, as áreas destinadas ao lazer e esportes vão minguando, desaparecendo. Neste instante, eu como adepto de trilhar pelas matas e caminhos, penso nos impedimentos ao contorno da Ponta das Toninhas, ao Morro da Piúva, ao Morro da Jundiaquara e outros mais, quando alguém segue cercando nossos patrimônios públicos, esses caminhos de servidão, dificultando tantas atividades saudáveis. Pense nisto tudo.

sábado, 8 de janeiro de 2022

O NOSSO JARDIM

Flores que cuidamos - Arquivo JRS


     Neste começo de 2022, perdemos dois exemplos de resistência caiçara na comunidade do Camburi, em Ubatuba: Seo Salustiano e Dona Alaíde. 

     Morrer faz parte do ciclo da vida. "A única certeza de quem nasceu é esta: vai morrer", comentava vez ou outra o meu saudoso pai. "Se vai ser rico, pobre, bonito, feio, triste, contente...isso ninguém sabe. Mas morrer é certeza!".

    Faço sempre questão de lembrar a frase de um pensador africano, mais ou menos assim: "Toda vez que morre um idoso, é como se uma biblioteca fosse queimada". Portanto, cabe à comunidade fazer um trabalho de resgate e fixação desses nossos pais e mães. Cada Centro Comunitário local deveria ter um arquivo, construir painéis com a finalidade de manter viva memória dessa gente, ter aulas a partir dali. São as nossas raízes culturais que nos permitirão viver melhor, sem sucumbir às tentações espoliadoras de um sistema que tem a vida comunitária como inimiga. As novas gerações não podem ser encantadas pelas novidades que se apresentam em ondas que vão nos sufocando. É preciso estar em constante vigilância, cultivar o senso crítico 24 horas por dia. "É muito fácil ser imobilizado pelo canto da sereia", me disse o amigo Beto em referência ao pensamento de muitos desse município que acreditam na verticalização, em prédios cada vez mais altos, como alternativa à nossa felicidade. 

    Qualquer um desses pais e mães da nossa cultura, criados em contato direto com os recursos naturais do nosso lugar, levarão para seus túmulos as preocupações com as sujeiras sendo escoadas pelos rios, os jundus desaparecidos, os morros tomados por casas de quem não precisa de casa, as gerações mais novas negando a própria cultura etc. Os mais novos, se nada for resgatado, se prevalecer a narrativa dos dominadores, se não houver celebrações dessas memórias-raízes..., serão como folhas ao sabor das águas e dos ventos, sem autonomia e sem referências comunitárias.

   Há várias décadas, estando  no  Pé-da-Serra com o Chico Lopes, nos deparamos com o único morador de lá na época: Dito, um caipira que veio morar em Ubatuba, em meados do século XX, para ser mão-de-obra no advento do turismo. Ele vivia de produzir carvão perto da Estrada do Jipão, mas sonhava que ganharia muito dinheiro vendendo lotes ao redor. Tirando um papel encardido de uma pasta velha, nos mostrou um mapa daquele local. "Na verdade, meus amigos, tudo isto ainda cheio de árvores, de mato, já é um loteamento feito pelo Araquém Santana. Eu vou ajudar ele a vender a área". De fato, havia um empreendimento riscado e, aparentemente aprovado na Prefeitura. Aquilo já era um loteamento. Atualmente, o lugar é um bairro formado, com gente marcando mais posses serra acima, comprometendo ainda mais o meio ambiente, sobretudo a qualidade das águas dos rios e nascentes. Quem era o Dito? Alguém que abraçou a solução apresentada de se desfazer da terra, de vendê-la  para ser feliz. Com toda certeza, o oposto de Seo Salustiano e de Dona Alaíde que prezavam a felicidade dentro de uma comunidade. O Dito morreu pobre, isolado e sozinho. Nem sei se tem algum interesse à sua memória.

   O nosso jardim será a resposta da nossa dedicação a ele.