sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os meus pais me contaram

(Antonio de Jesus, líderança caiçara da Trindade- Paraty)
                Gosto de explorar bem qualquer prosa que começa com a frase “os meus pais me contaram”. Quase sempre é garantia de que há um tesouro a ser explorado. Como diz ainda muita gente: “vai espirucando, vai espirucando, vai espirucando... até que chega aonde quer”. Assim descubro coisas inimagináveis, de pessoas que pareciam ninguém para a maioria daqueles que estão ao seu redor. Exemplos:
                  Quantas lideranças entre os pescadores se fizeram por força das invasões, dos grileiros das nossas terras sagradas?
                Quantos relatos de caiçaras que viveram na carne a Revolução Constitucionalista!?
                Quantos lugares, hoje ocupado por mansões e condomínios fechados, não foram paraísos de peixes e aves!?
                Quantas histórias políticas imorais por trás dos nomes das “distintas” pessoas que perambulam por nossas ruas!?
                Quantas famílias humildes, “gente que se tropeça com a gente”, não descendem dos primeiros habitantes deste chão denominado Ubatuba!? E quantos não provêm de ousados imigrantes com sonhos fantásticos!?
                Enfim, se posso retransmitir, por que não fazê-lo? Afinal, acho que foi por isso que os meus pais me contaram!

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Verdades no mar; verdades em terra

                       
            Se tem uma coisa que me impressiona muito, mas muito mesmo, é conversa de embarcadista. Sempre se escuta coisas fantásticas, testemunhadas por essas pessoas que têm o mar como companhia por muito mais tempo que a terra. Alguns deles, apesar de até terem se aposentado da faina marítima há tempos, ainda estão inseguros em terra firme devido ao tanto de tempo em que viveram no balanço do mar. O meu amigo Oscar, natural da Ilha do Prumirim, que viveu embarcado por muito tempo, quando em terra, demorava alguns dias para conseguir se equilibrar em sua velha bicicleta. Era comum ele dizer nos primeiros dias depois de um período de pesca: “Nem conte comigo para sair de magrela por esses dias. Se quiser ir caminhando...tô dentro!”. Outro pescador que há tempos está em terra firme é o Zé Lucas, do Perequê-mirim. É impressionante escutar os seus causos! Querem um aperitivo? Lá vai!
            - Pode contar, Zé, alguns causos vividos no mar que te marcou demais?
            - É lógico que sim! O primeiro deles aconteceu próximo da Ilha Monte de Trigo, depois de São Sebastião, do tempo em que eu nem era ainda mestre de barco. Existe um pássaro interessante, de pés minúsculos, mas com uma envergadura de asa fantástica. Sabe que ele não mergulha? O peixe que pesca é aquele que está na superfície da água; passa o bico avantajado e captura. Ele não mergulha, nem pousa na água justamente por tem uma asa muito grande que não permite alçar voo do nada. Na verdade, as asas, ao serem esticadas na altura da água, ficariam mais da metade submergidas e perderiam a sua oleosidade de flutuação. Digo isso para que você entenda o que vem agora: aconteceu de, na referida ilha, por ocasião de muita manjuba, numa das descidas, um deles se atrapalhou e ficou na água. Ficou quietinho, flutuando, como se nada tivesse acontecido. Então, já sabendo que esse pássaro não sai voando da água, todos do convés do barco se voltaram para o fato, como se dissessem ‘como ele vai se virar agora?’. Foi quando aconteceu algo que nenhum dos homens presentes, todos já velhos pescadores, tivessem visto ou imaginado: um outro pássaro do bando desceu, segurou aquele que boiava na altura do pescoço e começou a levantar o seu corpo da linha d’água até o ponto onde as asas do primeiro se desgrudaram da água, começaram a bater até ganhar autonomia de voo.  Impressionante, né.
            - E aquela vez das toninhas e atobás? Conta Zé!
            - Tá bem. Dessa vez foi pra fora do Bom Abrigo, pra mais de quatro horas de navegação, quando a embarcação estava com a carga quase completa de sardinhas. Não muito longe de onde a gente navegava, um bando de atobás desciam freneticamente a cada instante. Aquilo chamou a nossa atenção. Na mesma hora, estando eu de mestre, ordenei que fôssemos naquela direção para ver o que era aquilo, que tipo de peixe estava por ali chamando a atenção dos atobás. Aqui vem o inacreditável: naquele ponto do mar estava um cardume de toninhas. Elas mergulhavam muito profundamente, traziam, até mostrar na superfície, anchovas. Então, as aves pegavam como quem estivesse recebendo um presente; em seguida, ganhavam as alturas satisfeitas com as valiosas presas. As toninhas voltavam a mergulhar e traziam mais peixes. Tal espetáculo permaneceu por  quase uma hora, quando todos os pássaros pareciam estar saciados. Na verdade, elas estavam capturando os peixes de águas profundas e trazendo para que os atobás se alimentassem. Um dos pescadores que assistiu tudo disse no final: "Que exemplo! Será que alguém vai acreditar em nós quando, em terra, a gente contar isso?"

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Escrever sobre a cultura

                O estudioso Peter Burke, presente na FLIP/2010 (Festa Literária Internacional de Paraty), defendeu: “ainda me parece que há lugar para um livro que se concentra nos artefatos e apresentações em sentido estrito (...).  Esse tema mais limitado permite um estudo comparativo mais rigoroso do que o tema mais amplo”.
                As passagens que ouso transcrever são apresentações em sentido restrito, dizem respeito às particularidades do universo caiçara, mas são relatos que podem remeter a dimensões mais amplas. Hoje, por exemplo, estou me lembrando de uma narrativa frequente no Tempo da Quaresma, relembrada pela Maria Clarice. É bastante significativa porque mostra a força da religiosidade católica nos diversos aspectos da nossa cultura.
                Trata-se de um homem que, numa Sexta-feira Santa, foi a um baile. Lá se engraçou com uma mulher bonita e com ela dançou a festa inteira. Por volta das 23:30 horas, a mulher quis ir embora; ele ofereceu-se para acompanhá-la até sua casa. Ao chegar na porta, ele se deu conta que estavam dentro do cemitério. Naquele momento, a mulher disse que aquilo que havia acontecido era para ele deixar de ser debochado, pois a casa em que eles dançaram era uma sepultura.
                Daquele dia em diante, esse homem nunca mais quis saber de dançar nem em dia comum e muito menos em dia sagrado.
                Outras passagens, indo nessa direção, falavam que nesse tempo (Quaresma) não se deve varrer a casa, comer carne, matar ou pescar. Afinal, a Quaresma era tempo de renascer.

domingo, 25 de setembro de 2011

Jundiaquara

                O morro pouco perceptível na foto, devido a mata fechada, é o da Jundiaquara, que, segundo Sebastião, o “Velho Rita” do Acarau, quer dizer “toca de peixe”. Está entre o bairro da Estufa e a praia Grande. Em cima deste promontório, já tomado pela natureza estão as ruínas da fazenda, cujo último dono foi Robillard de Marigny. Ainda de acordo com o “Velho Rita!”, “foi a primeira fazenda a comprar um engenho moderno, trazido direto da Inglaterra. A peça era grande demais e foi conduzida pelo rio Acarau numa barcaça, puxado das margens por escravos. Naquele tempo o morro todo era plantado, alcançava o sertão da Sesmaria. Depois que a fazenda se arruinou, o engenho foi vendido para a fazenda do Mato Dentro”.
                O finado Chico Raé, que eu conheci muito bem depois que retornou de Santos, dizia que era descendente de suíços trazidos para trabalhar na Fazenda Jundiaquara, no tempo de D.Pedro II. Acho que era mesmo! Afinal, não me lembro de nenhum outro caiçara que tivesse um porte tão aristocrático como o Chico.
                Segundo muitos testemunhos, o lugar é mal-assombrado e trás marcas de outros tempos, quando a agricultura atraiu os europeus para o primeiro empreendimento que o nosso chão caiçara conheceu. João de Souza, o caiçara do pé rachado, dizia que “até correntes de escravos ainda é possível encontrar fixadas em diversos pontos dali”. São provas de um tempo ainda anterior ao tempo dos parentes do Raé.
                Ainda de acordo com Chico Raé, o caiçara aristocrático,  os seus antigos foram trazidos para formar uma colônia no Brasil. Imagine uma colônia suíça na Jundiaquara! Chique, né? Porém, eles não estavam acostumados a serem tratados como servos medievais, por um fazendeiro de pouca cultura erudita e sem muita educação. Se rebelaram, foram ficando desleixados, entraram no ritmo dos caiçaras que só tinham o tempo como patrão. Alguns retornaram às suas origens porque o consulado suíço ofereceu essa alternativa; muitos outros se acaiçararam. Dá para imaginar o resto.
                “Um fazendeiro desolado, sem mão-de-obra. Isso tudo ajuda entender porque aquele lugar é mal-assombrado!”. Deste modo exclamava João de Souza. E lascava causos daquele lugar, desde “a toca de ouro da ariranha” até “o ingazeiro que chorava”.
                É por esse e outros motivos que eu creio que a municipalidade pode investir em turismo cultural.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pescando no cerco

(Vento Contra)
                A pesca do cerco, segundo dizem, foi trazida para os caiçaras por um japonês na metade do século XX. “A moda pegou”! Um dos primeiros a instalar o cerco em nossa terra foi o pescador português, Jaime Peralta, da praia das Sete Fontes. No Saco Grande, entre Sununga e Sete Fontes, sustentada por gomos de bambu gigante, o corajoso imigrante retirou por décadas o sustento da imensa prole. Nele eram empregados até mesmo caiçaras de outras praias, tais como vovô Armiro, tio Genésio, Hilário, Dário Barreto, Rogé e Eugênio Inocêncio.
                O cerco consiste numa rede armada num ponto estratégico, próximo da costeira. É uma armadilha em formato “caracol”, terminando por um ensacador, onde, ao menos duas vezes por dia, deve haver visitação. É o que vemos na foto extraída do filme Vento Contra.
                  Outros cercos famosos: João Glorioso (Saco da Ribeira), Pedro Cabral (Perequê-mirim),Eduardinho Graça (Enseada- Ilha Anchieta), Xixico (Grande do Bonete), Zeca (Cedro/Ponta Grossa), João Zacarias (Mar Virado). Também o pessoal da Ponta Aguda, sob o comando do Acácio, se manteve por muitos anos cercando na Praia Mansa.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A procissão das almas

Relato da Gláucia para a tese de mestrado (Unitau)sobre causos populares

Minha mãe, Helena, morava na rua principal do Potim, que era um bairro de Guaratinguetá e hoje é uma pequena cidade. Junto com sua família moravam o Corrêa e a São Glória, que lá trabalhavam. Foram eles que contaram esse causo, ocorrido na década de 1940.
Toda segunda-feira, por volta da meia-noite, quando todos já haviam se recolhido em suas casas e a maioria já dormia, especialmente as crianças, começava a se ouvir um rumor de vozes vindo da rua, era gente rezando e cantando músicas de procissão andando em passo lento, indo em direção à praça da igreja. Iam até a  frente da igreja, onde havia um cruzeiro antigo, ali tudo terminava. Podia-se ouvir de dentro de casa, mas ninguém tinha coragem de sair ou de abrir as janelas. Todos os moradores daquela rua ouviam e comentavam com medo. As pessoas de fora não acreditavam, parecia invenção. O Corrêa afirmou que um dia espiou por uma fresta da janela e viu passar a procissão, disse que eram muitas pessoas, todas vestidas de branco e com véus brancos.
Uma noite, a procissão estava chegando na praça, passando em frente da casa da Geralda Brás, quando uma tia dela, não aguentando mais a curiosidade, se encheu de coragem e abriu a janela que dava direto para a rua. Queria tanto ver os rostos daquelas pessoas! Viu que todos na procissão carregavam velas acesas. Um deles, percebendo a observadora, saiu do grupo, foi até a sua janela silenciosamente e lhe entregou a vela que estava segurando.
No dia seguinte a moça foi encontrada desmaiada junto à janela aberta e em sua mão não havia mais uma vela, mas sim um osso. Nunca mais se ouviu dizer que alguém tivesse visto de perto a procissão das almas.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Os peixes precisam do largo

                Eu pude conhecer a Baía de Ubatuba piscosa, mas de acordo com os mais antigos, ainda “não era nada em comparação com outros tempos, quando não havia traineira arrastando até no quebramar!”. Lembro-me bem dos lances de rede dados por Florindo T. Leite, por Aládio e outros. Ainda era fartura, alimentava muita gente. Enfim, parece que o pessoal, desde aquele tempo (do início dos arrastos mecanizados nas nossas baías) já sabia o que diminui a oferta de pescados. Afinal, a rede de malha miúda pesca tudo, inclusive os filhotes. O que tem de ser feito?
                a) Optar por uma pesca mais artesanal, ou seja, que deixe o peixe procurar a isca;
                b) Garantir a proteção dos peixes, sobretudo dos que precisam crescer.
                Eis a minha proposta: fazer da Baía de Ubatuba um espaço de parcéis artificiais para que os frutos do mar se reproduzam e atraiam os peixes para a alimentação e proteção. Quantas carcaças de automóveis vemos abandonadas no município? É certeza que, após um semestre afundadas, as cracas as infestarão e os peixes já estejam em casas novas. E por que não criar um charme para a cidade das canoas, com o mar coalhado delas? E por que não desenvolver a canoagem desde os primeiros anos escolares como uma marca coerente com a tradição natural?
                Nós todos precisamos refletir sobre isso, mas principalmente aqueles que dependem diretamente da atividade pesqueira e precisam ir cada vez mais longe para trazer uns pescados que, há coisa de quarenta anos, eram devolvidos ao mar porque fazia parte da miuçalha.

domingo, 18 de setembro de 2011

O homem do saco

                De acordo com a amiga Sônia, quando somos crianças nossos pais contam histórias que levamos para toda a vida. Depois contamos aos nossos filhos e assim por diante. Algumas são lendas, crenças, superstições; outras servem somente para nos proteger.
                “Por volta de 1983, o Perequê-açu era um bairro tranquilo, tinha muito mato. Nem andantes (mendigos) se encontrava pelas ruas. Eu e meu irmão mais novo tomávamos o café da manhã e íamos para a rua. Passávamos o dia todo na rua, pelo meio do mato. Os nossos pais ficavam loucos de preocupações. Então nos contaram a história do homem do saco:
                ‘É um homem que anda com o saco nas costas. Ele mata as crianças que ficam nas ruas para fazer sabão’. Nesse dia nem dormimos direito. Depois contamos essa história aos nossos amigos e decidimos andar em bando. E assim fizemos. Só que, não vendo ninguém com tais características, esquecemos a história.
                O tempo passou; um dia eu estava indo para a escola quando me deparei com o verdadeiro homem do saco. Era um senhor com um saco sujo de sangue e fedia muito. Entrei em estado de choque: as pernas amoleceram e não saí do lugar. Ele passou reto e com isso eu achei que já tinha uma criança no saco. Este foi o motivo porque não me pegou. Voltei para casa aos prantos. Só aí a minha mãe me contou que era um andante e essa  história só era para nos proteger dos perigos da rua.
                Até hoje ainda me lembro da sensação horrorosa de que era a minha vez”.

sábado, 17 de setembro de 2011

Boneca na embaúba

A prosa de hoje é uma passagem da vida da comadre Vitória, do tempo em que ainda vivia em sua terra natal, numa situação de pobreza, mas cercada de carinho e de contadores de causo. Ela nos recorda a capacidade inerente das crianças em fantasiar para suprir algo capaz de causar angústias. Note que não é apenas o bicho preguiça, o sanhaço e as formigas que se utilizam da nossa conhecida embaúba.

Vitória era criança de cerca de oito anos no interior de Minas Gerais quando isso aconteceu. A família pobre, com muitos filhos, não tinha condições de comprar brinquedos e ela vivia sonhando em ter uma boneca bem bonita, com vestido rodado, sapatinhos, cabelo encaracolado, rostinho delicado.
Todos os dias de manhã pegava sua caneca de café com leite, se sentava no degrau da cozinha e ficava observando o terreiro da casa. Mais adiante ficavam as árvores, e a que ela mais gostava de ficar olhando era uma embaúba alta com folhas grandes e viçosas. Olhando para a embaúba imaginava a forma da boneca com que sonhava, ali “via” perfeitamente a saia que balançava, os cabelos, cada detalhe...
Uma manhã dessas em que estava concentrada nas folhas da embaúba, desenhando o rosto da boneca, ficou subitamente paralisada: a boca da boneca se abriu num sorriso sarcástico, mostrando os dentes afiados. Os olhos da boneca a fitavam assustadores e ela ouviu uma risada estridente que veio se perdendo no vento. Saiu correndo apavorada, gritando pela mãe que foi logo examinar a embaúba. A árvore estava lá, como sempre, as grandes folhas balançando ao vento suave daquele dia, não havia boneca alguma... “É só imaginação, filha”. Vitória jura que viu... e não quis mais saber de olhar para aquela árvore.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Vitória Antunes de Sá

                No último dia 13 perdemos a companheira Vitória: mineira que adotou completamente a nossa cidade e a nossa cultura, chegando ao ponto de até mesmo concorrer, há uma década, a uma vaga no Legislativo. Creio que, se fosse eleita, teria contribuído ainda mais com a nossa cidade, principalmente com os mais carentes.            
                Por termos tanto orgulho dessa mulher, eu e Gláucia a escolhemos como madrinha de casamento e da nossa filha Maria Eugênia. Portanto, a Vitória foi comadre, madrinha, prima...uma grande companheira de nossas vidas.
             Mesmo de saúde frágil (carregava a doença de Chagas desde a sua terra natal), Vitória nunca esmoreceu diante dos desafios da comunidade católica (onde sempre foi um esteio na liturgia) e dos bairros em geral, sobretudo Sapê, Maranduba, Lagoinha e Caçandoca.
                Ao vir trabalhar como doméstica em nossa cidade, conheceu o Toninho Antunes, filho de Ezídio Antunes de Sá, cepa da Caçandoca, nascido da união entre um português e uma africana. Desse encontro nasceram seus dois filhos: Leandro e Diego. Raríssimas vezes encontrei essa mulher totalmente despreocupada, sem estar prevendo ou articulando alguma ação para resolver alguma situação. Prova disso foi a acolhida filial à Glória, Jade e Jamile.

                Por ser descendente dos Antunes de Sá e graças ao seu apoio, o seu marido é o que é hoje: um expoente na luta pelas terras da Fazenda Caçandoca.
                Agora, penso sobre o próximo Advento:
                Quem cantará animando as andanças do Reisado?

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

...conseguiram apagar a verdade.

                O acordo de paz, considerado o primeiro do continente americano, foi selado em Yperoig, futura cidade de Ubatuba, em 14 de setembro de 1563, dia  da Exaltação da Santa Cruz.
                Aylton Quintiliano, na obra A guerra dos Tamoios, diz que “a partir de Iperoig, e por muitos meses, houve um período de relativa calma. Aimberê, o bravo cacique de Uruçumirim, auxiliado pelo francês Ernesto, que se tornara um deles ao casar-se com Potira, retornou ao seu grupo, onde hoje é a cidade do Rio de Janeiro. Havia esperança de volta aos bons tempos da produção, das expedições de caça e pesca”.
                Em sua Carta ao Colégio de Coimbra, o padre Manuel da Nóbrega diz: “De tudo o que mais me alegra o espírito é ver por experiência o fruto que se faz nos escravos [índios] dos cristãos, os quais com grande descuido dos seus senhores, viviam gentilicamente em graves pecados. Agora, ouvem missas cada domingo e festa e têm doutrina e pregação na sua língua às tardes”.
                Vou concluindo com a fala do velho  Catarino que nos ensinou num dia distante, no jundu, no barranco da Barra da Lagoa, em frente da pobre, mas honrada casa do velho Dito Camburi:
                “Depois de um ano daquele acordo, quando receberam tropas de Lisboa, sentindo falta de mais índios para o trabalho escravo, a portuguesada acaba com tudo a partir da traição de Yperoig”.
                É por isso que eu não duvido que as coisas aconteceram aproximadamente do jeito descrito na Guerra dos  Tamoios:
                “Ao chegar em Iperoig, para verificar a produção de algodão, Ernesto deparou-se com um quadro que lhe fez correr  lágrimas nos olhos: todas as ocas haviam sido queimadas, vários nativos mortos em meio aos escombros ou pela praia. Alguns poucos que escaparam à fúria sanguinolenta dos brancos, contaram a ele que os portugueses haviam levado centenas de prisioneiros para São Vicente. O velho cacique Coaquira lutara como um bravo e foi um dos primeiros a morrer”.
                Agora, você decide:
                a) Comemora a Exaltação da Santa Cruz porque os Tamoios foram dizimados; ou...
                b) Comemora a data como Traição de Yperoig porque a paz tão exaltada nunca houve.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

...a traição será festejada porque...



(Fotos: Julio Mendes)

                Depois de uma tomada de fôlego, Catarino retomava a prosa-aula:
                “Entre os líderes confederados, os ânimos variavam: uns lutariam até a morte; outros já estavam cansados. Por isso que a presença dos padres e a disposição de Anchieta em ficar como refém deu-lhes uma esperança. O padre até que gostou da ideia! Afinal, era só ele entre a indialhada pelada, não é mesmo?”. Todos riam do humor do contador de causos.
                Com a desculpa de que as exigências dos índios tinham de ser decidida pelos patrões, uma comitiva se dirigiu à Baixada Santista. Enquanto isso, para sufocar os desejos da carne, entreter as mãos e os olhos, Anchieta foi escrevendo e memorizando poemas nas areias da praia. (Depois de séculos, há muitos anos passados, vi a dona Idalina Graça fazendo o mesmo na praia do Itaguá, bem perto do rancho do Florindo. Segundo ela, eram ensaios para um livro que estava escrevendo).
                Os pontos defendidos pelos confederados não pareciam conter algo tão extraordinário. Queriam a libertação dos prisioneiros que se encontravam no trabalho forçado dos engenhos, o fim da prática de escravização, a entrega dos chefes traidores e que deixassem os Tamoios viver em paz, como verdadeiros donos da terra.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Chegará o dia em que...

(Foto: Júlio Mendes- Praia da Enseada/2010)
                Em 1563, os padres Anchieta e Nóbrega, após uma estadia confabulando com os senhores de engenhos (líderes políticos do Brasil colonial) na Baixada Santista, partiram numa comitiva, sob o patrocínio de José Adorno, um desses líderes, para negociar a paz com os índios confederados (Confederação dos Tamoios).
                A aldeia de Yperoig que, segundo especialistas, significa “água de tubarões”, localizada onde é a atual cidade de Ubatuba, foi escolhida como território de negociação devido a presença de um cacique por nome de Koakira, considerado amistoso pelos jesuítas.
                O velho Catarino dizia:
                “Neste chão de Ubatuba, logo ali onde era a lagoa (que deu o nome da Barra da Lagoa), era onde os índios tinham as suas ocas. Suas canoas subiam pelo rio e logo ganhavam a lagoa. Yperoig foi escolhido pelos padres e por quem mandava porque era um lugar estratégico, de onde partiam as frotas de canoas e as tropas a pé a partir do Caminho das Antas, onde hoje se conhece como Cachoeira dos Macacos. Desse lugar saía um mundaréu de gente brava que aterrorizava os portugueses!”.

sábado, 10 de setembro de 2011

Tá sobrando


                Rogério Mesquita, o Rogé, “anda por todo canto, sabe um monte de coisa só de escutar”. Foi o que eu escutei da minha vó Eugênia. E o Rogé sabia mesmo!
                Certa vez, enquanto olhava para o mar, ele contou do “sobrado velho” (que eu nem tinha ideia de onde era), porque era importante etc. Bem mais tarde eu descobri a referência: era o Casarão do Porto, antiga casa de Manoel Balthazar, na boca da barra do Rio Grande de Ubatuba. Hoje é parte da Fundart, mas desde 1959 foi tombado como patrimônio histórico e arquitetônico.
                De acordo com o Rogé, ele era moleque quando conheceu o lugar:
                “Naquele  lugá ali era o Hotel Boidapeste [Budapeste]; a gente mais velha dizia que aquela era a casa mais bonita da cidade. O primeiro dono foi um português que vendia e comprava;  dali despachava e arrecebia mercadoria. A língua do povo diz que o hómi enricou com café ainda no tempo que o Brasil tinha imperadô –que aparece em livro com barba branca! Esse portuga teve umas filha bonita pra perdê! Só que não era pra bico de pobre! Arrumaro marido, faiscaram daqui! Só uma ficô na nossa terra... terminô sua vida em Taubaté. A propósito, foi gente dessa cidade, o Guisado [Guisard] que mais tarde, adespois do tempo da revolução do Getulho [Getúlio], comprô  o velho prédio pros tempo de férias. Naquele trecho, entre a igreja e o sobrado, em tempo assim, ficava cheio de gente se tecendo: era um tal de querê vê gente de fora e querê sê visto também! Tinha gente nova na cidade por um tempo: tanto no frio como no tempo quente. O boato dizia que a maioria era empregado do dono do sobrado. Agora, se acreditá no que disse o Zequita [José Alves Barreto], vão fazê não sei o que lá de curtura. Acho que o sobrado velho tá sobrando”.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Procurando saci

                Quando pequeno, ainda antes de entrar na escola, escutei alguém dizer que o saci, antes de ser saci, era um pássaro. Não sei porque, mas...de repente, após umas orientações do tio Maneco Armiro, estava eu com uma arapuca armada no aceiro da roça pensando em capturar o saci em forma de pássaro.
                Foi justamente esse mesmo tio o primeiro a se importar com isso. Demonstrando muito interesse, foi me explicando que o tal passarinho não era nem grande nem pequeno, tinha um bico roxo e laranja; era pulvo com pintas encarnadas. Ainda me indicou uma moita de erva baleeira, dizendo que ali ele já tinha visto uma ninhada na semana anterior. Empolguei-me; armei naquele lugar a arapuca. Na mesma tarde caiu uma juriti; no dia seguinte era a vez de um sabiá galinha. Só sei que, dos muitos pássaros capturados, nenhum passava perto da descrição do tio Maneco.
                Depois foi a vez do tio Tião, pícaro como ninguém, se interessar pela minha insistência. Após ter-lhe explicado tudo, me aconselhou:
                -Pode continuar armando a arapuca, Zezinho!  O tio Maneco ensinou direito! Logo você prende o saci que sempre está debaixo da baleeira!    (Eu só não percebi o sorriso maroto dele).
                No dia seguinte, de longe, não vi nenhum passarinho na arapuca, mas estava desarmada, tinha alguma coisa dentro. Aproximei-me curioso. Sabe o que era? Um monte de bosta! E das fedidas! No fim da tarde, inocentemente, contei o ocorrido ao tio Tião. Depois de uma risada, eis o seu comentário:
                - Vai ver que embaixo da baleeira é o "cagador" do saci!  (E saiu gargalhando pelo caminho afora).
                Demorou ainda um tempo para que eu entendesse o que tinha acontecido. Quem disse que o saci o mestre nas reinações?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Gusto, o patriota

                O cidadão Gusto, natural da praia da Santa Rita, no município de Ubatuba, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, foi convocado e esteve por alguns meses de prontidão na Ilhabela, num destacamento preparado para embarcar a qualquer momento para a Europa. De acordo com o mesmo, os treinamentos eram puxados e a disciplina era rigorosa.
                O tempo passou, a guerra chegou ao fim, os “Recrutas da Ilha” foram devolvidos às suas famílias e aos seus lugares. Porém, para o Gusto, o ritmo da caserna deixou marcas, pretendia se perpetuar. Prova disso que, sempre nos finais de tarde, perto do serão, na praia vizinha (do Perequê-mirim), onde havia mais moradores, o reservista praticava ordem unida com uma rapaziada. De acordo com o testemunho de Antonio Julião, era empolgante e ao mesmo tempo engraçado escutar o “Um, dois, feijão com arroz...um, dois, feijão com arroz...Ordinário, alto! Ordinário, marche!”. Eu ficava imaginando a cena: Gusto, o patriota e os seus recrutas, cada um com uma vassoura ao ombro, marcando a areia molhada do lagamar. Era muita dose de civismo na terra do peixe com banana verde!
                O querido Gusto e a sua companheira terminaram a vida esmolando. Certamente que, se ele não fosse tão pobre, sua postura patriótica teria imposto seu nome a ruas e outros logradouros deste município tradicionalmente conservador na política.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Seis meses de textos e imagens

          - É claro que não, menino! Com a fé em Deus e aquele cacete de guatambu atrás da porta eu não tenho medo de nada!
                  Com esta frase da vó Martinha, eu tive a ousadia, após muitas motivações, em criar este espaço para transmitir um pouco do que tenho da cultura caiçara. Agora está completando seis meses!      Portanto, aqui estamos, entre a serra e o mar, comemorando uma data especial!
               Entre outras atividades, eu vou dando um jeito para me satisfazer e oferecer aos leitores as características desse lugar por nome de Ubatuba, dessa cultura chamada caiçara. Infelizmente falta mais tempo para produzir, digitar mais coisas, mas...o prazer é imensamente maior que o esforço.
                       Um fraternal abraço!
                                                          Até!
                                                                 Zé

domingo, 4 de setembro de 2011

A roça do Mané Bento

                O meu parente Mané Bento, famoso por sua capacidade de “ter tudo na ponta da língua”, respondia imediatamente e com uma elaboração muito boa a qualquer pessoa. Também era notória a sua repulsa ao trabalho. Por esta característica muitos não gostavam dele, mas nem por isso o maltratavam. Desse modo vivia bem, estava sempre visitando os outros, participando das rodas de causos e até puxando rede na praia. Ocasionalmente cultivava uma rocinha de mandioca. A sua morada ocupava um pequeníssimo espaço do jundu, na praia da Fortaleza.
                Desse tempo que falo, há mais de cinquenta anos, a religiosidade estava centrada nos santos (interventores dos homens junto a Deus). Havia uma imensidão de santos e santas se tecendo entre a caiçarada, recebendo esmolas, promovendo festas nas capelas e casas.
                Um costume caiçara desse tempo era, depois de terminar a semeadura ou o plantio de mudas e tocos de rama de mandioca, dedicar a nova plantação a algum santo (ou santa). Acreditava-se que, sob a proteção de uma santidade, haveria fartura, as formigas atacariam menos, etc. Afinal, era um tempo de menos tecnologia e estudos limitados de muitos problemas, num lugar afastado, isolado de centros desenvolvidos. Tudo era muito difícil. O jeito era apelar para o transcendente, viver sempre esperando pequenos milagres. Para encurtar o causo, o Mané Bento, dentro da tradição, ofereceu a sua roça a Nossa Senhora, a mãe divina.
                A roça de mandioca do meu parente ficava no caminho do bananal do Sul, perto do Dito Silidônio e Joaquim Sirvino. Não passou muito tempo para ser notório o mato encobrindo as bonitas ramas por motivos óbvios, em  conformidade com o seu perfil. As pessoas se importavam, comentavam até o dia em que o meu avô Armiro perguntou se ele não iria carpir aquela “sujeirada”. Escutou a seguinte resposta:
                - Eu não vou carpir coisa nenhuma! Eu dei a minha roça pra Nossa Senhora, não dei? Então, é ela que tem de carpir!
                     Ah! Ia me esquecendo! Foi esse meu parente que um dia, depois de falar sobre a briga entre os tupinambás e os portugueses, afirmou que "não restava muita coisa a um povo que tinha pela frente a morte ou a escravidão".

sábado, 3 de setembro de 2011

Diziam os antigos...

                A minha prima Aninha vivia querendo ensinar as coisas que um dia aprendera dos seus pais, avós etc. Sempre tinha ocasião para isso: era na roda raspando mandioca para fazer farinha, sentados pelas sombras num dia após o almoço - quando muitos até roncavam gostosamente -, ou até mesmo no serão, no momento que mais gente se empolgava para contar e ouvir coisas da vida da gente e da gente de outros tempos. Hoje fico pensando nos fragmentos das suas prosas, na empolgação da prima a ensinar. O seu lugar preferido era ali, no terreiro da casa, bem na beira da costeira do Saco dos Morcegos. Eis algumas das suas pérolas da nossa tradição oral:
                “É assim mesmo, gente! Se uma família tiver sete filhos homens, o mais velho precisa ser o padrinho do caçula, senão este vira lobisomem!”.
                “Sabe o que acontece com quem dança na quarta-feira de cinza? Cria rabo!”.
                “Quando chega alguém na casa que o dono não gosta, basta colocar uma vassoura atrás da porta que a visita sai na hora!”.
                “Os homens não casam com mulher de dedo do pé bem maior que o outro porque senão ela manda na casa!”.
                “Eu e os meus irmãos, se choramos à noite, escutamos do papai e da mamãe que a coruja vem furar os nossos olhos. A gente acredita; tem de engolir o choro. E o pior: tem uma coruja no nosso quintal!”. Nessa hora, quando o sol já deixava escurecida a Ilha da Vitória que de longe nos olhava, a criançada imaginava a citada coruja numa daquelas árvores a espreitar todo mundo e doida para furar olhos. Rapidinho cada um queria ir para a sua casa.
                E a Aninha sempre encerrava a prosa com um argumento falacioso, de apelo à autoridade:
                “Tudo isso diziam os antigos, repetem os mais velhos de hoje e as pessoas sabidas como eu!”