sábado, 30 de novembro de 2013

A DONA ALMA

Ingá na Praia da Justa (Arquivo JRS)

Há mais de sessenta anos, quando a Grande Guerra já se findava na Europa, sendo os alemães derrotados, aqui em Ubatuba tudo continuava no mesmo ritmo: uns estavam nos roçados, outros pescavam e ninguém perdia a época das caçadas. Tudo herança dos antigos. Outra característica herdada de outros tempos era o temor da noite, dos espíritos malignos que vagavam na escuridão, pelas matas virgens. Os cronistas da época do achamento já descreviam o pavor dos tupinambás nesse assunto. Um traço que também vem desse pessoal é o nosso lado festeiro. Ainda na minha infância era assim: todos festavam em qualquer oportunidade.

No tempo a que me referi no princípio do texto, as crianças brincavam muito e ajudavam nas pequenas tarefas. Poucas pessoas estudavam. As notícias chegavam pelas ondas de rádio. Conforme já disse o Zé Pedro, lá da Fazenda da Caixa, “não havia dificuldade porque não se conhecia outro jeito de se viver”. Só sei que os meninos andavam muito, enxergavam diversão em tudo. Um dos meninos desse tempo é o Zizo. Dele é a narrativa.

“A gente andava por todo quanto era canto. Sabia de detalhes, de novidades, das personalidades mais evidentes e de outras que queriam passar sem serem percebidas. Um exemplo era a dona Alma.

Dona Alma Bestürzend era alemã e morava ao lado do cemitério, no centro da cidade. Imagine com esse nome e morando perto do cemitério! Só isso  já bastava para causar um certo temor! Nós, meninos daquele tempo, sempre passávamos por ali, mas tínhamos medo dela, sobretudo porque ela não cumprimentava ninguém. O que causava admiração em nós eram os cães pastores dela: estavam sempre limpos, bem nutridos. Eram lindos! Nunca tinha passado por aqui aquela raça de cachorro!

Num belo dia, vimos uma movimentação na casa da alemã. Parecia que juntava as coisas e arrumava uns trecos espalhados pela varanda.  Foi quando alguém falou que a dona Alma estava se mudando para outra cidade. Ficar sem a visão dos cachorros foi o que nos  alvoroçou. De repente alguém se propôs ir conversar com a mulher e pedir um dos animais.

- Dona Alma, já que a senhora vai se mudar, poderia me dar pelo menos um dos cachorros?

A resposta dela calou e assustou a todos nós:

- Não darei nenhum dos meus cachorros, pois ninguém vai cuidar deles como eu cuido. Também não os levarei comigo. Eu os matarei".

E assim vivemos mais um episódio medonho na nossa pequena Ubatuba. Então não era pra ter medo da dona Alma?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

POESIA-RESISTÊNCIA

 
Poderia ser a titia  (Arquivo JRS)


     Nesta semana, estando eu esperando o ônibus, avistei uma senhora que parecia muito a tia Astrogilda. Então fiquei pensado nas palavras dela, no seu exemplo e em tantas coisas que remontam a Praia do Pulso, berço da vovó Martinha. 

    A tia Astrogilda, que nos deixou há pouco tempo, nunca se cansou de denunciar as injustiças praticadas contra a sua família e tantos caiçaras por ocasião do advento do turismo, quando aproveitadores se fizeram engolindo as posses dos pobres, enxotando-os para bem longe do jundu. O resultado está aí hoje: tudo foi murado, condomínios de ricaços fecharam caminhos de servidão, atracadouros encobriram costeiras etc...etc...

“Há criaturas como a cana:
mesmo postas no moenda,
esmagadas de todo,
reduzidas a bagaço,
só sabem dar doçura”  
D. Helder Câmara


Nasci, cresci, morei
e pensei que morreria na Praia do Pulso.
Lá tinha minha casa, minha família,
minhas flores, a criação no quintal
e o mar a cem passos da porta.
Lugar bonito igual deve ser o paraíso.
Até que chegou uns homens truculentos,
um tal de Zé Marinho na frente, gente de fora,
ameaçando matar, derrubaram nossa casinha,
puseram a gente pra fora a mando de um inglês
e tomaram nosso lugar à força.
Mas deixa estar,
ninguém conquista o céu com violência,
tenho fé em Deus que um dia a justiça vai tirar a venda dos olhos
e voltará a enxergar.
Andamos perdidos no mundo,
com crianças pequenas, morando de favor
até arranjarmos este lugar no morro,
onde posso continuar a cultivar
minhas flores, a família, as amizades…
mas tenho saudades do cheiro do mar.

                          Domingos Fábio dos Santos

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A MELHOR FORÇA (II)
Caiçarinha na totoa de patieiro (Arquivo O. Mendonça)
Nos idos da década de 1960, numa tranquila tarde, pescando com o meu tio Chico Félix no Porto do Eixo, entre as praias do Sapê e da Lagoinha, avistei alguém vindo da direção do Pontal.

- É o Agostinho. Disse o titio. E continuou:

- Sabe que o João Pimenta (“o incréu”) me explicou um monte de coisas a respeito de um santo por nome de Agostinho? Disse que muito antigamente não existia a religião católica. Mas depois que ela foi criada, esse tal de Agostinho foi um homem esperto que ajudou a convencer pessoas a se tornarem seguidoras dessa doutrina, a deixarem pra lá o paganismo.

Depois de tentar me ensinar a respeito dos pagãos, deu prosseguimento à prosa o destemido  canoeiro-pescador, o meu parente mais aproximado das feições dos antigos tupinambás:

- Conforme o Pimenta, esse Agostinho era um safado, gostava de orgias, mas depois se arrependeu; até morreu como bispo numa cidade importante. Que coisa, hein?! Para superar as coisas erradas, ele ensinou que o espírito é mais importante que o corpo. Foi quando começou a se preocupar mais com as coisas do outro mundo do que com as coisas deste mundo. Veja o Agostinho que vem ali: se não tivesse disposição para defender o seu pedaço de chão, já estaria com a filharada morando dentro de algum rancho do jundu. Sabe quem ganha com isso de se preocupar com outro mundo? Só os ricos, os aproveitadores!

- Será mesmo, tio Chico?

- Pode ser. Não sei. Tenho quase certeza. Só sei que o Agostinho que tá vindo ali, assim como nós, tem de se preocupar em cuidar do corpo, senão... A propósito, esse nome - Agostinho - não lembra lembra a brincadeira “Lembrança de quê?”.  

Assim a gente brincava: um dizia um nome de alguma coisa, de alguém, de uma planta...E os outros faziam uma relação. Exemplo: “-café torrado - biju na cuia”; “-pena de pato  - cheiro de pó molhado”; “-goma na gamela - suor de gente grande”; “-tarumã em flor - moças cheirosas nas festas”. De vez em quando vinha uma mais pesada: “-Mané Bento estirado na sombra - gambá atordoada no terreiro”; “-Bem-te-vi bravo no abricoeiro - Dito Paratiano quando alguém esconde a viola”; “-Cachorro peludo do Antonio Pernambuco - Nelsinho Caipira, o bicho do mato”; "-Bidico na totoa de patieiro - Lodônio embarcado na canoa Rosinha"...

Hoje, depois de tantas décadas, recordo desses momentos ao passar na Praia da Lagoinha e ver que o saudoso Agostinho, homem que brigou contra grileiros de terras,  agora nomeia uma escola, bem na beira da rodovia. Faz-me lembrar do Belinho quando disse: "a melhor força é aquela que não carece de ser usada".

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A MELHOR FORÇA (I)

Guinho e vô Estevan (Arquivo JRS)

                Belinho Rocha, caiçara da Praia da Enseada, mas há muito tempo morando no centro da cidade, está para completar seus noventa anos. Que bom! Pelo que eu me lembro, nenhum dos parentes mais próximos viveu tanto assim. “Na nossa família não se atura muito”, conforme já dizia a finado tio Tonico.

                O Belinho gosta de prosear. Eu também! Num dia do “mês de cachorro louco”, bem ali no seu portão, depois de uns causos do tempo em que viveu em Santos, onde “serviu no Exército, realizando exercícios, fazendo patrulhamento, prendendo arruaceiros e paquerando muito”, ele concluiu assim:

                - É, Zé. Pois é! Ainda acredito que a melhor força é aquela que não carece de ser usada!

                Eu também penso assim. Se nós temos uma capacidade racional imensa, por que toda ignorância e violência física?

                Foi a partir do Belinho que eu me recordei de mais um detalhe da minha infância: era a metade da década de  1960, quando os militares já estavam no mando e desmando do nosso país. O Porto do Eixo, entre o Sapê e o Pontal da Lagoinha, era um ponto de pesca maravilhoso devido aos peraus quase na praia. Lá, se servindo de isca de pregoava, nunca ninguém voltava sem nenhum peixe. Pampos, guaiviras, embetaras, cações e tantos outros serviram de alimento à nossa grande família de caiçaras. Como é bom “brigar com peixe” a partir da areia! “O de comê tinha de fartura”.
                Era muito raro chegar no Porto do Eixo e não encontrar ninguém pescando ou apenas coletando pregoavas para um cozido. Eu ia sempre com o papai e o vovô Estevan.


                A pescaria no lagamar sempre era regada de uma boa prosa. O assunto variava em torno de roças, de redadas, de festas, de pessoas...

domingo, 24 de novembro de 2013

CAMBURY - A LUTA SEGUE





CAMBURY: SEM TERRA E SEM PEIXE, NA UNHA DO ESTADO!


Publicamos excelente documentário produzido pelo Via legal no Cambury. Em pouco mais de 5 (cinco) minutos, descreve o impasse ambiental e a disputa pela posse da área que há muitos anos são o pesadelo dos moradores caiçaras e quilombolas do bairro do Cambury, localizado no Km. 1 da BR 101, divisa de Ubatuba com Paraty, litoral norte de São Paulo. Mostra o cotidiano da roça e do artesanato produzido na comunidade para gerar renda, já que NÃO TEM PEIXE, NEM TERRA PARA PLANTAR.

Os quilombolas vivem há mais de 200 anos no local, desde o tempo da “Toca da Josefa”, escrava que fugiu da escravidão e se escondeu no coração do sertão do Cambury. A briga para conseguir o título da terra começou há mais de uma década e envolve muitos outros aspectos, tais como grilagem, ocupação por moradores de fora, expropriação política, trabalho precarizado, subemprego, falta de saneamento…

OMISSÃO DO ESTADO EMPERRA A VIDA NO CAMBURY

  • Crianças do Cambury têm Pesadelos à Noite por causa  da REPRESSÃO FÍSICA E PSICOLÓGICA DOS GUARDAS DO PARQUE (POLÍCIA FLORESTAL).

  • Quando haverá a REINTEGRAÇÃO DE POSSE DO CEMITÉRIO DO CAMBURY (construído pelas mãos do Sr. GENÉSIO), INVADIDO PELO CAMPING IPÊ, propriedade privada instalada à beira da praia?

Foi muito bom ouvir a voz de outros quilombolas: Sr. Genésio, Sr. Salustiano. Registramos e reconhecemos que foi uma boa matéria para esclarecer à sociedade as violações de direitos que emperra a vida desses moradores: saúde, educação, terra, trabalho e alimentação digna.

sábado, 23 de novembro de 2013

A GRAÇA DA MISTURA

Caiçaras jogam capoeira na Ponta do Saco dos Morcegos (Arquivo JRS)


O meu bisavô materno, o velho João da Barra, pai da vovó Eugênia, era filho de escrava, da Praia do Lázaro (Ubatuba). De acordo com a vovó, ele, “um negro já clareando,tinha habilidade de padeiro, além de saber negociar muito bem”. Porém, um defeito lhe marcava: adorava farrear. Pelo que pude entender, ele se desfez das muitas coisas que havia conseguido por conta de festas com amigos e mulheres. Por conta disso, nem se sabe ao certo quantos filhos deixou neste mundo. A querida vovó era mais uma dessas crianças. 

Fiz essa introdução só para defender o quanto é importante a todos os brasileiros refletirem sobre a nossa identidade nacional. Afinal, somos uma nação de mestiços. A nossa pátria nasceu com portugueses, índios e negros dando à luz aos formadores de um povo bem singular. Na minha casa, de seis filhos, tem aqueles mais acobreados, derivados da etnia indígena da parte da mulher do velho bisavô Chico Félix, a Anna. Dois são loiros, de olhos azuis e esverdeados; outro é bem o traço de um europeu, herança da dona Laurentina. Nariz de lusitano-árabe não é novidade da parte dos Amorim (vovó Martinha) e dos Mesquita (Nhonhô Almiro), mas tem os achatados, nos moldes da saudosa vó Eugênia.

É na escola, depois da educação familiar, que vamos entendendo melhor as diversas etnias que compõem este Brasil. Somos o que somos porque continua ocorrendo uma infinidade de cruzamentos étnico. Povos diferentes continuam a dar a sua contribuição para nos orgulharmos da denominação que temos: brasileiros sim! 

Nesta terceira semana de novembro, na escola estadual Maria Alice Alves Pereira, no bairro da Marafunda, ocorreu a Semana da Consciência Negra. Os alunos produziram reflexões, confeccionaram obras de artes, desfilaram, dançaram, ouviram palestras dos representantes quilombolas, prestigiaram o show com intensa participação do grupo Ô de casa, do quilombo do Sertão da Fazenda da Caixa. Por fim, uma feijoada comunitária encerrou a semana. Parabéns às devotadas cozinheiras!

Em Sociologia aprendemos que, somente a partir de 1930, os estudos em torno da importância da diversidade de povos para a compreensão do ser brasileiro se avolumam. É de onde evoluimos para ter as atuais leis em favor da dignidade negada -  por tanto tempo! -  a muitos que trabalharam para construir este país. Portanto, assim como defendo a escola como peça fundamental na afirmação de nossas  tradições, também acredito ser imprescindível o seu papel no respeito e no orgulho de vivermos com tamanha diversidade cultural. O povo caiçara, a cultura desse lugar é um exemplo bem específico dessa miscigenação.

Aquela professora (Anilsi Reis), que chegou discretamente me perguntando da possibilidade de repetir o evento do ano anterior, está de parabéns! Merecem elogios todos os outros companheiros e companheiras que se empenharam nas atividades, nos contatos com pessoas e grupos de fora, de outras comunidades! Assim se faz uma escola mais significativa, capaz de enfraquecer a massificação cultural que aí está!

Nada como encerrar este recordando o músico Moraes Moreira:
“Deus me faça brasileiro
Criador e criatura
Um documento da raça
Pela graça da mistura”.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

ATÉ A BOA PINGUINHA JÁ SE FOI


Restos de cerâmica caiçara (Fotos: Peter, o alemão)

Na minha infância, tanto do lado materno quanto por parte de pai, eu sempre escutei sobre a quantidade de pinga que se fabricava em Ubatuba. Por isso achava normal que, quase todos os adultos, antes do almoço, dessem uma “bicadinha na mardita”. Fazia parte da cultura. Aprendi que os meus avós trabalharam em alambiques nas praias do Pulso, da Fortaleza, no canto da Praia Dura e por aí vai. Canoas de voga sendo carregadas com pipas de aguardente estavam em suas memórias. Tudo isso nos remete à cultura da cana-de-açúcar, ao tempo em que Portugal levava dessa terra chamada Brasil os seus lucros. Nos ajuda a entender a prosperidade da Europa. Ao se encantar pelas coisas belas do Velho Mundo, pense em quanto daquilo se fez com o suor dos escravos e de nossos antigos caiçaras.
Mas quando começou essa exploração açucareira em Ubatuba?
Procurando respostas, encontrei o texto da professora Maria Luiza Marcílio (Caiçara: terra e população). Está assim:

A cana-de-açúcar foi plantada em Ubatuba, mais intensamente a partir de 1770 e com sucesso.Só que os parcos recursos de seus habitantes permitiram apenas a produção de pipas de aguardente, enquanto o açúcar, o produto nobre,  era fabricado em pequena quantidade. Grandes eram os investimentos para a instalação de engenhos de açúcar. Eram bem menores para a montagem de engenhocas e alambiques domésticos para o fabrico de pinga. E nesta, Ubatuba, como todo litoral norte paulista, acabou por se tornar um produtor de excelente caninha, de crescente demanda fora da vila.
Assim, o município, na virada do século (1798), produzia cerca de 28 pipas de aguardente e apenas 171 arrobas de açúcar branco e 20 de mascavo.
Em 1802, os mapas de produção revelam a existência de 14 fazendeiros plantadores de cana e produtores de aguardente. Só um deles, o ajudante Domingos dos Santos, produzia açúcar (assim mesmo muito pouco: 20 arrobas), além de duas pipas de pinga. Os demais fazem, em seus alambiques domésticos, alguma aguardente, quase toda para vender para fora da vila. Deles, só João Vilella possuía então um número considerável de escravos: 45 ao todo. Segui-se o capitão Jozé Barbosa da Silva, com menos da metade: 19 escravos. Os fazendeiros restantes possuíam entre 2 a 14 escravos.
Em 1825, Ubatuba tinha um engenho de açúcar de modestas proporções, com 36 escravos e o número de engenhocas de aguardente baixara para 8: “todas em decadência, mudando a Agricultura para Farinha e Caffé”. Em compensação, a vila já podia exportar café tratado no local, e não apenas em casca como nos anos anteriores, pois nela já havia “três fábricas de socar café construídas em dois annos”. [...]
Poucos anos mais tarde, em 1861, declara a Câmara local: “Somente existem 17 engenhos de canna que fabricão unicamente aguardente, únicas fábricas existentes, assim como 2 olarias de fazer tijolos”. A lavoura achava-se “decadente pela falta de braços, indo a população do município em cerca de 10 a 12 mil almas”. Era o fim do efêmero momento em que Ubatuba se ligara ao grande comércio exportador.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O POÇO DA SERPENTE



A família vai nadar no Poço da Serpente (Arquivo JRS)
         A amiga Fátima, caiçara das margens do Rio Acarau, busca nas suas raízes da Praia Dura mais um parte da sua prodigiosa memória caiçara. "Ó! Quem dera ter mais gente para escrever tudo isso!"

  O rio Cajarana nasce no Corcovado. Em determinado ponto ele se divide em dois, formando outro braço que é chamado de rio do Meio. Esses dois rios vão se encontrar para desembocar no mar com o nome de rio Escuro. Esse nome se dá ao fato de as águas serem turvas, pela quantidade de matéria orgânica que traz. O encontro desses rios aumenta a velocidade da água. Essa força aquífera cavoca poços profundos, fazendo-os exímios criadouros de peixes, como tainhas, robalos etc. Essa informação eu tive quando era criança... Hoje, depois de um bocado de tempo, mais precisamente dos anos setenta para cá a agonia desses rios é de dilacerar o coração de quem como eu brincava em suas águas no portinho da casa de meu avô Salvador Carlos. Às vezes, aliás, muitas vezes, ele me colocava em sua canoa, e navegávamos da Folha Seca até a praia Dura, onde ele tinha um rancho de pesca. Dava um medo danado quando passávamos pelo Poço da Serpente. Esse medo era proveniente dos causos contados pelos mais velhos da redondeza, quando se reuniam depois do almoço no terraço da casa para tocar viola e deixar a criançada de olhos acessos, ouvidos abertos e quase que petrificados com as estórias medonhas. ”Credo em Cruz, Santíssimo Sacramento do Socorro Amado!!!”.

Então eles contavam essa lenda: que até pouco tempo atrás, os pescadores não se atreviam nem passar perto do pesqueiro perto da toca. Lá era moradia de uma “mulher bicho”, era mulher da cintura para cima, e serpente da cintura para baixo. Diziam que em época de enchente ela gritava ao sair da toca, e atacava quem se atrevesse ir ter com ela. Os moradores viviam assustados. Ela só sumiu de lá, foi para outro lugar, depois que Nhanhã Chiquinha rezou perto da cabeceira da toca.

Com tudo isso esses dois rios eram uma maravilha. Meu avô pescava tainha no portinho!

Hoje os rios se arrastam pedindo socorro. Uma serpente maior e mais potente chamada “progresso” lá chegou e envenenou os rios que estão licorosos pelo desmatamento e esgoto que desce rio abaixo, bordando suas margens de chorume. Quanto ao portinho de meu avô, ele ainda está lá às voltas com os lixos encarapitados nos tronco em sua curva, cercado de casas por todos os lados; só na minha lembrança é que ele continua íntegro tal e qual eu o conheci.

Fonte: O Guaruçá


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

CURRICO

Tirando canoa  no Ubatumirim (Arquivo Chieus)

                   Por ocasião do lançamento do livro    Ser tão mar, do amigo Jorge Ivam, em parceria com Pedro Paulo, apresentei, como homenagem aos caiçaras da Ponta Grossa, o presente texto.

                Existe uma modalidade de pesca que não é muito divulgada, mas os caiçaras, em ocasiões especiais, a usam. Trata-se de pescar curricando, que nada mais é do que soltar a linhada com a embarcação em movimento.

                A linhada, junto ao anzol, tem uma peça metálica que rodopia com a isca devido ao deslocamento da canoa.  É assim de propósito; serve para atrair os peixes que preferem iscas em movimento.  Também é atrativo o brilho do metal que rodopia. Por isso que, no tempo das anchovas, cavalas, sarambiguaras e outros pescados de igual hábito, os caiçaras curricam. É emocionante pescar no currico! A gente se empolga pelos cruzamentos de linhas, pelos saltos dos peixes prateados, bem distantes da borda.
                O que contarei a seguir, eu escutei do Garné, na praia do Cedro (da Ponta Grossa):

                Ele e Zeca pararam perto da Laje  de Fora; sondavam cavalas. Soltaram as linhadas, mas nada de fisgada. Então resolveram remar mais para fora, no correr do Boqueirão. A canoa era a “Pau cheiroso”, feita pelo finado Fabiano, da praia da Enseada. Canoa boa, segura. As águas a leste zuniam nas linhadas; logo veio peixe. E dos grandes!

             - De repente, vindo não sei de onde– disse-me o Garné – uma bitela de lancha passou por nós. Quase alagamos! Sorte nossa a canoa não ser louca, senão... E continuou:

                - O Zeca xingou, mas quem escutou alguma coisa naquela máquina barulhenta? Sabe que a danada se foi mais uns quinhentos metros, deu a volta e veio de novo pra cima de nós? Novamente veio aquela maré crespada de onda sobre onda, quase danando com a nossa embarcação. E o cheiro de óleo empesteou tudo! A danada parou quase dez metros de nós. Achei que aquilo mais parecia uma mansão flutuando. Um bacana vermelho como tomate apareceu na proa e gritou:

                    - Aqui pega peixe no currico?

             - Aí o Zeca, danado da vida que estava porque quase fomos a pique por duas vezes pelo mesmo idiota, respondeu do jeito que ele sabe muito bem:
                - Pega! Pega sim! Pega no currico, pega no cu pobre,  pega na puta que pariu!

                - Só então o  bacana percebeu a besteira que fez. Eu, controlando o balanço com o remo n’água, me desmanchei em risada, enquanto o Zeca continuava emburrado. 

                Esse é o Garné, do Baguari de Fora!

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

É O PROGRESSO!


             Seja bem-vinda, Lirca!

Eu compartilhei no facebook um hino de Ubatuba legendado. Parece que muita gente curtiu. Os comentários também são expressivos. Hoje, ao preparar o presente texto, busquei e encontrei a contribuição do Renato Teixeira, o mesmo que canta que “‘É preciso amor pra poder pulsar/ É preciso paz pra poder seguir/É preciso chuva para florir”. 

O Renato, em diversas ocasiões, falou da cidade de Ubatuba no tempo da sua infância. Foi quando, juntamente com as estradas, ocorreu a chegada do turismo. “O nosso lugar era repleto de araçás, de cantorias e bate-pés, de canoas e canoeiros”.

Ao ler sobre a lenda da Gruta que chora, o amigo Elias, caiçara da Trindade, disse que lá também tem narrativa semelhante. Grutas eu sei que tem várias. Será que alguém já fez uma pesquisa arqueológicas nelas? E as nossas histórias: quantas famílias e quantas escolas continuam a cultivá-las? Saudades eu tenho das festas juninas nas escolas e nas capelas! Quantas boas lembranças e quantos boas amizades eu trago desse tempo!?!

O farmacêutico Washington de Oliveira escreveu as suas lembranças de menino, de quando só as canoas faziam as interligações da nossa terra, sobretudo das canoas de voga utilizadas até a década de 1910. Depois vieram os barcos a motor, as lanchas de cabotagem. “As grandes canoas foram recolhidas aos ranchos de abrigo e ali se deteriorando, corroendo-se à fúria das brocas e esboroando-se nas contorções do ressecamento”. Elas são o tema preferido de várias pessoas, dentre elas o Peter. Faz lembrar dos mestres na arte de fazer canoa: dos desaparecidos e dos que continuam “cavoucando o pau”: Antonio Julião, Fabiano da Enseada, Oliveira Quintino, tio Tonico, meu pai, o pessoal do Sertão do Ubatumirim e tantos outros.

Em relação às canoas caiçaras, eu não me lembro de nenhuma que não tivesse um esperado acabamento. Porém, não me sai do pensamento, por ocasião desse tema, a denominada “Cu grande”, do tio Genésio, lá na Praia da Fortaleza. “Era curta e grossa para aproveitar o pau, um ingazeiro tirado no Morro da Anta”, conforme explicava o meu pai ao me ver desapontado diante da embarcação do titio. Era a canoa preparada para as mais significantes cargas, pois cabia muita coisa e era bastante segura. “Não tonteia nunca!”.

As canoas, até o advento dos barcos de cabotagem, se teciam com cargas de banana, de cachaça, de peixe seco, de farinha de mandioca. O paraíso do comércio dos nossos produtos era a cidade de Santos. “Lá se vendia de tudo. Na volta também a gente trazia muita coisa”. Das bananas, a preferida era a banana da terra, cujos pés mereciam um tratamento e um escoramento especial devido aos fortes ventos que “deitavam os bananais”. Também galinhas e perus eram encomendados aos caiçaras pelos clientes da Baixada Santista. Aos poucos o progresso e as tantas interferências foram chegando. Ao compor o hino Ubatuba sim, o professor Francisco Gomes desejou que, enquanto aguardava “o progresso que vem que fique guardada com tudo quanto tem”. 
        Questão: 
Quem está preocupado em guardar tantas coisas significativas, capaz de dar um outro sentido para os turistas e os migrantes que para cá acorreram?

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A TOCA DA SERPENTE

Qualquer caiçara sabia fazer balaios (Arquivo JRS)


      Do alto da Praia da Fortaleza, quase na badeja, antes da Pedra da Igreja e do Morro da Anta, se avistava toda o largo que ficava entre a Ilha Anchieta e a Praia Dura. Foi onde meu pai escolheu para fazer a nossa casa, na mesma época em que o homem chegava na Lua. Em volta ficavam as roças de mandioca, canavial, bananal e muito mato fechado.

    Da porta e da janela da casa, em dia de chuva, enquanto papai fazia balaios, a gente olhava o mar. Do terreiro, debaixo de  uma frondosa aroeira, em dia de sol, a mesma visão nos extasiava. De vez em quando, ao longe, um navio passava desenrolando um cordão de fumaça preta. Canoeiros se teciam em qualquer dia, exceto quando o tempo estava “ruim”, com vagas espumantes desde a Lage Grande. “Aquele traquete branco é do Joaquim Silvino. O outro, vindo pelo Canto do Cambiá, é o Cândido”; “O tio Clemente está saindo agora para a Praia do Lázaro. Vai vender coco verde”.

     Nosso vizinho mais perto era o Dário Barreto. Para alcançar a sua casa, bastava atravessar uma grota de bananeiras e depois um sapezal, onde olhos d’águas nos encantavam. Alguns anos mais tarde o Toninho Caipira nos superou, construindo no Morro do Tatu. “Que lugar longe, credo!”.

     Naquela casa, “logo acabada graças ao pitirão”, nós ouvimos da mamãe muitas histórias. Parece que foi ontem esses bons momentos!

     Num entardecer, olhando para as praias à nossa frente, ela nos indicou uma pequena faixa de areia que recebia os últimos raios do Sol: 

    - Lá fica a Toca da Serpente. É a Praia da Sununga. Agora não tem mais esse bicho lá; um padre, a poder de muita reza e benzimento, tocou ela para o mar afora. Nunca mais voltou. É caso verdadeiro; vem dos antigos. Um dia nós vamos lá ver. A toca chora até hoje porque viu muito sofrimentos. 

    Eu ficava imaginando a tal serpente. Não devia ser como cobra. A gente estava enjoado de ver tantas delas por ali, nos roçados... Logo resolvi isso: a tal serpente devia ser como o dragão do quadro de São Jorge que a tia Maria da Barra tinha no seu oratório. Agora sim! Era de meter medo!

     - Mas conta melhor essa história, mamãe!

   - Tá bom! Era só alguém se aproximar que o mar ficava bravo, enxotando qualquer um por mais valente que fosse. Só moça nova chegava e não acontecia nada. Parecia até que alguma coisa chamava elas para a toca que fica no canto da praia. E de lá nunca mais voltavam, deixando os familiares desconsolados pelas perdas. Muita gente perdeu filha naquele lugar. Dentro da toca, bem no fundo, tem um buraco que desce muito. Até hoje ninguém nunca teve coragem de chegar perto dele. Era de onde saía o bicho. Cruz-credo!

    E eu me via com medo de sonhar de noite com coisa tão medonha. Porém, quem resiste a uma boa história?

     - Conta mais! Conta o resto!

    - Era como uma cobra gigante, gosmenta como uma lesma. De uma bocada já engolia uma moça. Depois sumia no buraco, fazendo por um bom tempo uns barulhos medonhos.  Tem gente que diz que, nas noites de lua cheia, aquela imensidão nojenta rolava na areia da Sununga e provocava ondas de lamber o jundu. Desde antes do tempo dos índios já era assim. A sorte é que o nosso bom Deus enviou padres para esse lugar. Foi um deles, por nome de José de Anchieta, quem expulsou a serpente daquela toca. Graças a esse santo homem nenhuma moça nunca mais foi tocada nesse lugar.

      - Só isso?!?

     - Tem mais coisa sim, mas é história pra gente grande. O que eu vou contar pra vocês ninguém precisa saber, tá bom? Nem o pai de vocês, ouviram? A Maria Peres, que ainda é viva e mora perto da Sununga, já disse que aquela criatura era encantada: de vez em quando se transformava num homem bonito e visitava as moças nas madrugadas. As más línguas garantem que, ainda hoje, depois de tanto tempo, há nas imediações descendentes dessa criatura. Há quem jure aquilo ter sido praga de mãe. Eu acredito nisto!”.
 

domingo, 3 de novembro de 2013

AQUELE HOMEM...

A minha turma, todos alunos da professora Valda. (Arquivo JRS)

Numa dessas manhãs tranquilas, estando eu sentado juntamente com a família, na Praia do Cruzeiro, a Iperoig dos tupinambás, ao longe avistei alguém que conheço mais de fama do que pessoalmente: Enio Taddei dos Reis. E assim comecei dizendo aos meus: "Sabe aquele homem que vai em direção à barra..."

Justo Arouca, cronista da sociedade ubatubense da segunda metade do século XX, cita, entre outros, o Enio, como um dos idealistas desta cidade (Ubatuba) que despontaram na década de 1960. Naquele momento, na praia, pensei: “Quem diria que vários daqueles jovens que tanto fizeram pela cidade, sobretudo pelo desenvolvimento educacional e esportivo, passariam entre nós de forma tão humilde! A maioria dos habitantes daqui certamente nem sabe das suas atuações em prol da cidade”.

Hoje, nos corredores da maior escola da cidade, o “Capitão Deolindo”, vendo rostos esperançosos, com disposição de aprender bem, mas também testemunhando um monte de atitudes atestando falta de educação, volto ao ano de 1958, por ocasião da instalação do curso ginasial. Diz Arouca:
“Nesse momento a palavra de ordem passou a ser: todos ao Ginásio! Jovens, idosos, principalmente os funcionários públicos, todos! Era preciso aluno para que o ginásio fosse reconhecido o mais breve possível. Inicialmente o alunado somava uns 110 matriculados [...]
Parabéns aos alunos da primeira turma a ter formatura em 1961! Ei-los: Wladinéia Ferreira, Sônia Shimidt, Suely Moreno, Idinéia da Cruz, Hebe da Silva, Anita Nunes e Justo Arouca.

“O Deolindo, como hoje é tratado, então único curso de 2º grau da cidade, ocupou inicialmente o prédio do Grupo Escolar Dr. Esteves da Silva, situado no final da rua Jordão Homem da Costa, às margens do rio grande, atrás das instalações do DER”.

Em 1959 os alunos formaram o primeiro grêmio estudantil da nossa história municipal. Lá estava o Justo, o Enio e vários outros. No ano de 1963, os alunos fizeram o primeiro movimento público pela construção do prédio novo para o ginásio, reunindo-se com a Câmara Municipal, sob a presidência de Ailton Figueiredo, o “Caculé”. Ao som de palavras de ordem, cartazes e tambores, lá se foram os jovens  a fazer a primeira manifestação por melhores condições escolares e de estudos. 

Nesse lagamar, bem cedinho, avistando aquele senhor de cabelos brancos, disse para mim mesmo: “O Enio estava lá!”. Certamente que, como pessoa organizada, ele tem muitas imagens dessa época! E continuei, dizendo aos meus: "Aquele homem..."