domingo, 27 de maio de 2018

A ESQUINA DO PECADO

Criação de terreiro (Arquivo JRS)


               Por descuido, acabei adquirindo um lugar de esquina onde construí minha casa e constituí família. Morar em esquina tem vantagens e desvantagens. Acho até que as desvantagens são a maioria. Ali, trabalhando no jardim, já escutei conversas de todas as modalidades, fofocas e assuntos sérios de variados temas (desde religião até romances). Na maioria das vezes são diálogos presenciais; outras são virtuais, por celular. Essa é a razão da denominação:  Esquina do Pecado.

               À noite, ou melhor, na madrugada, quando o silêncio impera, do meu leito é comum escutar murmúrios, risadas discretas e até discussões de vez em quando. São pessoas trocando ideias, precisando fazer uso das drogas para darem sentido à vida, ou, namorados que se aproveitam das sombras das árvores da minha calçada. Dias atrás, fui acordado por uma voz feminina:

               - Que é isso, cara? Você não consegue? Eu já falei pra você deixar a droga; ela tá acabando com você. Tá vendo? Agora você tá frouxo. Frouxo assim não serve pra nada. Vamos embora, cara.

               Coitado do parceiro dela. E dela também! Imaginei a cena. Lembrei-me de um texto de Zélia Gattai, sobre um galo (Bersagliere) que eles tinham no sítio, mas que tinha muito medo de galinha. Num belo dia, seu marido (Jorge Amado), inconformado com o galo que não queria cruzar nenhuma galinha, ao ver o caseiro (Seo Antônio) com o tal galo, tentou uma última experiência:

               - Me dê esse cretino aí. E segure firme a Ceguinha.

          Meio atabalhoadamente, Bersagliere foi colocado, pelas mãos de seu dono, sobre a pacata galinha:

               - Seja homem, seu frouxo!  - Intimou Jorge.

               A experiência, como era de se esperar, não deu resultado, mas, em compensação, as gargalhadas foram tantas que valeu a pena.

               Naquela madrugada, fosse eu embutido com o mesmo espírito do tio Tião Armiro, que poucas vezes foi sério na vida, ou do talento desinibido do Jorge Amado que escreveu lindas histórias, gritaria: 

       - Seja homem, seu frouxo! 

        E em seguida encheria de gargalhadas a Esquina do Pecado.

domingo, 20 de maio de 2018

FESTA NA VIZINHANÇA




                       Domingo, dia de sair um pouco; de repor as energias para a semana que vem pela frente. Eu e a esposa resolvemos ir prestigiar a Festa de Divino, na cidade vizinha de São Luiz do Paraitinga. Faz tanto bem admirar as manifestações populares da nossa gente, de constatar o caldo cultural brasileiro! Pau de sebo, congadas, artesanato, comidas e bebidas... Tudo num ambiente gostoso, preservado, patrimônio da cultura brasileira. 
                   
                 Faz bem ver crianças já comprometidas em prosseguir as manifestações tradicionais. Faz bem ver o contentamento dos mais idosos nas evoluções cheias de significados, de mística e de resistências. Nos renova ver tantos sorrisos, tantas pessoas satisfeitas por mostrarem seus talentos, suas devoções, suas identidades. Vale mesmo!









terça-feira, 15 de maio de 2018

AGRÍCIO BARBOSA - MESTRE CANOEIRO CAIÇARA

      Eu conheci o Seo Agrício em 1981, por ocasião do censo agropecuário. Morador do Sertão do Ubatumirim, em Ubatuba. Naquela ocasião eu o encontrei no terreiro da sua casa, dando o acabamento com um enchó numa canoa. "Esta madeira, meu filho, é timbuíba. Ela não foi tirada muito longe não; tava numa grota logo ali. É encomenda do meu cunhado Florindo Teixeira Leite, que puxa rede na praia do Itaguá. É lá, no rancho dele, que ela vai ficar daqui a duas semanas".


     O amigo Peter, em seu  blog (canoadepau.blogspot.com), dá-nos algumas imagens do Seo Agrício, um grande mestre canoeiro do Sertão do Ubatumirim. Seus filhos e outros mestres canoeiros, em canoa nova embarcação, hão de reverenciá-lo em cada escolha de árvore, em cada tomada de linha e em cada arrebentação que é vencida pelas canoas caiçaras.




Agrício Barbosa - Mestre Canoeiro Caiçara

LUTO. Mestre Agrício Barbosa, o maior expoente da Canoa Caiçara do litoral norte de SP nos deixa. 
Em cada Canoa, em cada linha, em cada aprendiz fica o legado de sua arte e sabedoria
Mestre Agricio o senhor continua em nós. (fotos: Peter Santos Németh, julho de 2010)

A enxó não diz nada
Sem o seu olhar certeiro
Que Deus lhe dê um bom lugar
Mestre Agrício canoeiro. (Fandango Bacurau)






domingo, 13 de maio de 2018

UMA MISTURA


 
Nossa mãe (Arquivo JRS)













Nesta semana, para uma atividade escolar, me pediram se eu não poderia escrever algo sobre cambuci, a fruta. Pensei no reduto dos italianos, bairro do Cambuci, na capital paulista, onde mora o meu amigo Rui; lembrei-me de minha raízes culturais, da mamãe que fazia parte dos Scongelo, da praia da Fortaleza. Dei umas pitadas a mais na minha história e saiu esta história que eu dedico à memória da saudosa mãe, da Dona Laurentina.

               Há muito tempo, quando eu nem imaginava o que era cambuci, fui conhecer a cidade de São Paulo. Fiquei radiante! Imagine eu, cidadão do mato, de Ubatuba, desembarcando numa selva de concreto, com máquinas e carros de arregalar os olhos. Minha mãe chamou um táxi e disse: “Direto para o Cambuci, faz o favor”. Achei a palavra interessante porque rimava com o nosso macaco muriqui.
               Cambuci era o bairro onde moravam amigos de muito tempo da nossa família, do nosso lado italiano. Dizia a mamãe que os bisavós deles vieram no mesmo navio. Eram migrantes buscando outras condições para continuarem suas vidas. Tratava-se de amizade preservada pelas diversas famílias desde aquele tempo, quando quem governava o Brasil era um imperador velhinho bem barbudo. De tempos em tempos nossas famílias se visitavam nesse compromisso selado ainda na travessia do oceano Atlântico.
               Na casa onde fomos acolhidos havia um menino com a mesma idade que a minha. Logo parecíamos como irmãos. Criança é assim, né? O nome dele era Rui. Achei engraçado porque ele já usava óculos, cujas lentes fortes lhe davam olhos enormes. Quando lhe falei da minha curiosidade a respeito da palavra cambuci, ele assim me explicou: “Cambuci é uma fruta diferente. Agora, no fim do verão, a nossa árvore tá carregadinha. Vamos no quintal ver”. Chegando lá, ele já foi subindo numa escada que estava encostada por ali. Apanhou alguns frutos. Era diferente mesmo; não parecia com nada que eu conhecia. Na cozinha, a mãe do Rui, dona Giorgina, se dispôs imediatamente a nos fazer um suco. Achei gostoso, mas era um tanto que ácido e parecia grudar na garganta. Do outro jeito que ela fez mais tarde eu gostei mais: bateu com leite e mel. Desde essa ocasião essa combinação me traz ótimas lembranças do amigo Rui, da família dele e de tantas outras do bairro do Cambuci, na capital paulista.
               Na volta, trouxemos para Ubatuba um pacote de cambuci. Meu pai achou ótimo, colocou vários para curtir na pinga. Minha mãe fez geleia. Meu pai assim me explicou: “Cambuci é uma planta que quase foi extinta porque não é tão fácil a sua frágil semente germinar e crescer naturalmente. No nosso município nós temos poucas árvores. Tem esse nome porque a fruta se parece com um pote, como uma cambuca achatada. Sabe onde tem um bonito pé de cambuci, Zezinho? Lá no Morro da Anta, mais perto da Pedra da Igreja, no alto da Fortaleza, quase virando para a Lagoinha. Tente ir por lá no mês de abril para trazer umas frutas para nós”. Para finalizar: muitas mudas foram feitas a partir daqueles frutos.  Estão espalhadas por aí. Um cambucizeiro, ainda do tempo do meu finado pai, sobrevive no terreno da escola “Semíramis”, no Saco da Ribeira. Que ver? Vai lá!
               Viva o cambuci, de onde vem tantas coisas boas! Viva o Cambuci, lugar de tantas pessoas queridas! Viva o cambuci que hoje nos reuniu aqui! Viva! Viva! Viva!


Viva a minha Gal, mãe querida e exemplar da Maria Eugênia e do Estevan!

quinta-feira, 10 de maio de 2018

ILEGAL, GRAÇAS A DEUS

Este mundo não é apenas dos homens (Arquivo JRS)


               Totonho do Rio Abaixo mora nesta terra há muito tempo. No tempo da fartura de mandioca, nasceu por descuido. Por aqui cresceu gritando pelos caminhos, se banhando na cachoeira. “Também soltei muita pipa, estilinguei muito passarinho. Sou um exemplo para os meus filhos”. Que exemplo, né?
               Conforme as suas próprias palavras: “Fui alfabetizado e doutrinado nas Santas Escrituras”. Pois é, Totonho! Isto lhe é de muita valia, pois hoje você se aventura em enganar ingênuas pessoas, pobres coitadas, para aumentar os seus bens. “Eu ameaço até com castigo eterno. Tenho o dom da palavra, sou iluminado, meu amigo”.  Um terreninho aqui, uma chácara acolá, mais um carro etc. “Vou me fazendo, Zé. E olha que eu só estudei até a quarta série, naquele tempo nem tinha escola aqui”.
               Agora, quando o dia está raiando, Totonho  já está longe, fazendo coisas irregulares, fora da lei mesmo. Depois... é só entregar a carga e receber os cobres. “Ainda não faturo muito;  é pouco, mas ajuda. De vez em quando tenho de subornar alguém senão vou em cana e pode acabar com a minha moral”. E assim, com mentalidade de quem está levando vantagem, o dito cujo é mais um a dar a sua contribuição para a destruição da nossa riqueza ambiental, do nosso meio ambiente. Lógico que, das crias os pais são os primeiros professores! Daí segue-se a lógica cruel; no dizer antigo: “Filho de peixe peixinho é”. Ou seja, sem-noção.
               Você já pensou, Totonho, que as futuras gerações, seus netos inclusive, precisarão de um ambiente saudável para uma vida de verdade? Você, que se diz formado nas Sagradas Escrituras, não percebe a contribuição que dá para o Inferno nesta terra (aliás, o único de verdade)? E não me venha com esse papo de “se eu não fizer, os outros fazem”. Você tem de responder por você. Aquele rio limpo onde você cresceu se banhando já não existe mais, mas é possível recuperá-lo. Esses rombos pelos morros onde alguns continuam explorando devem ser embargados. Esse tanto de esgoto tomando o mar não deve continuar. Enfim, o vil metal é o seu câncer. Tasquei. E ele: “Sou ilegal graças a Deus”.

terça-feira, 8 de maio de 2018

IMAGENS E POESIAS

Cachoeira na trilha da Água Branca (Arquivo Rê)

                          De repente
                      Vi aquela imensidão
                      De água escorrendo,
                      Escorregando pelas pedras.                      
                      Mais abaixo
                      Um poço enorme
                      E a mata estava ali
                      Protegendo a cachoeira.
                                                              (Rê)

          Você que lê,  que acompanha em especial a narrativa da professora do Saco do Sombrio, deve se maravilhar pelas imagens e pode imaginar o quanto elas se superam na realidade. Na primeira vez que fiz a trilha até a praia dos Castelhanos, num percurso de mais de sete horas desde o desembarque na Ilhabela, só a mata na sua diversidade já era um espetáculo. Depois tinha as cachoeiras, os pássaros e pequenos animais. Deu fome. Pela metade da caminhada, quando fazíamos os atalhos bem conhecidos dos caiçaras, encontramos umas touceiras de coco baga (que poucos conhecem!) e fomos nos saciando. Que delícia! Não é à toa que as poesias jorram entre as imagens captadas nas andanças pelos caminhos (do mar e da terra) que dão sentido ao nosso idealismo, à nossa esperança num mundo melhor.

                         
Ponta da Cabeçuda (Arquivo Rê)
                               Percorrer o caminho da humanidade
                     E perpetuar a espécie em cada geração;
                     Trilhar  aventuras e viajar no coração.
                                                                               (Deme)

Crianças no rio da praia Vermelha (Arquivo Rê)


O bom da água 
encontrada 
e do pão por esforço 
                                (Guimarães Rosa)

domingo, 6 de maio de 2018

ENTRE MEMÓRIAS... AS LEMBRANÇAS

Eu me despedindo da Praia Mansa - 1993 (Arquivo Rê)


               Agora, me aproveitando do silêncio do domingo que começa, digitalizo mais fotografias gentilmente cedidas pela amiga Regina. Aos poucos vou dando conta do recado. Tenha paciência.
Regina e  jovens caiçaras da Praia Mansa (Arquivo Rê)

               É gostoso rever as imagens que me permitem as boas lembranças de outras vivências, em outros tempos. Eu me detenho em cada rosto, fico imaginando que agora constituíram famílias e talvez nem vivam tão perto do mar. Certamente que muitas dessas pessoas sequer se imaginam em imagens em uma mesa de trabalho,  vinte e cinco anos depois, numa casa em Ubatuba, no bairro do Ipiranguinha. Mas ei-las aqui!
               
Num ponto da costeira : "Ali é Galhetas!" (Arquivo Rê)

        Suas praias, seus rios, seus laços de amizades e de parentescos, seus afazeres ligados ao mar e aos roçados... Tudo está espalhado na minha frente, bem pertinho dos olhos e do coração. Presente também de muito valor são as poesias e os pensamentos que permeiam as imagens: todas da estimada Rê, a professora que aceitou, no princípio da década de 1990, ficar por dois anos trabalhando na escola do Saco do Sombrio, na Ilhabela. Através dela aprendemos que havia muito mais que beleza em tudo ali:

               “Não é só beleza! É de onde os frutos alimentam pais e filhos que habitam esta terra maravilhosa!”.

Construção de canoa - Praia Vermelha (Arquivo Rê)

               Havia artes das crianças e artes dos adultos. Havia conhecimento em todo o verde circundante:

               “No meio da mata, bem de dentro dela, lá estão imbuias, cerejeiras, jatobás... Desse jeito, dessas madeiras, pouco já”.
 
Canto direito da Praia dos Castelhanos (Arquivo Rê)
               E olho o mar, a arte na imagem feita pela umidade retida pela nossa mata. E vejo rios e praias que provavelmente já não se encontram assim.  


Rio da Praia Vermelha (Arquivo Rê)

               Mas... tal como a amiga:

               “Sonho com um novo mundo, numa terra nova, e trabalho desde para a esperança não se esvaziar”. Este há de varar a minha existência, a nossa existência, mas... conforme, o poeta português, em Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

O LIVRO DA JANAÍNA

Janaína, ao lado de quem veste rosa (Arquivo Rê)
Ilustração da Janaína (Arquivo Rê)


             Na última parte do Livro da Janaína, a escritora do Saco do Sombrio, aparecem denúncias sérias: desde os turistas que se apropriaram da área rente ao mar, inibindo o acesso do pescador ao seu local de trabalho, de onde tira a sua subsistência, até a sujeira deixada pelos petroleiros no mar, afetando seriamente os pobres caiçaras. O cultivo de mexilhão aparece como uma alternativa ao pescador ameaçado em sua sobrevivência. Agora, quem se interessará por procurar a Janaína e dá-la a chance de publicar o seu livro? Vamos torcer, né Rê?!?

               Hoje a terra é dos de fora;
               Para se alcançar o mar,
               O pescador que se aguente
               De passar pelas casas de gente
               Que nem morar nelas mora
               Ou então tem de ir embora.
               Mas a gente tem o mar.
               Ah! Isso ninguém vai nos tirar.
               Nasci e vivi no mar,
               É assim que vou me acabar.
               Mas o mar está mudando,
               O peixes está se acabando.
               E, devido à estragação
               Que certas embarcações
               Fazem aí por fora,
               O peixe acaba ou vai-se embora.
               E o petróleo também
               Acaba com tudo o que tem.
               A pesca está para morrer.
               O que se pode fazer
               Para salvar o mar
               E o peixe não acabar?
               Tem pescador aqui perto
               Que já sabe o jeito certo
               De cultivar o mexilhão,
               Pois com essa criação
               A cada 9 ou 10 meses
               Tira-se grande quantidade
               E pescador mais dinheiro
               Pode tirar de verdade.
               Temporada de verão
               E também de mexilhão
               Lá vai o pescador
               Tirar um dinheirão.


                                                                     Janaína - Saco do Sombrio,1994