quarta-feira, 31 de maio de 2017

POEMA TRISTINHO

Minha arte (Arquivo JRS)
O mano Mingo, se inspirando na história da nossa família na Caçandoca, no sofrimento do Tio Roque e de tanta gente que perdeu suas posses devido à ganância imobiliária, escreveu:

POEMA TRISTINHO

Seu Roque da Praia da Caçandoca
foi ao doutor juiz
e disse que não sabia ler,
mas sabia falar
e que sua língua
dizia só a verdade
e que não se fiava em papel
que aceita qualquer mentira.
O bom era assim
falar frente a frente
para o doutor juiz
interrogar suas palavras,
sua boca,
seus olhos
e seus modos.
Que a terra sempre foi sua
e que sendo analfabeto
foi ludibriado,
enganado,
tapeado
para pôr o dedão
na autorização
para abrir a estrada
para melhorar o transporte
das bananas,
das pessoas,
dos pescados
e tomaram toda sua terra
de não ter onde cair morto.
O doutor juiz não teve dó
e decidiu que,
mesmo para analfabeto,
vale o que está escrito.

terça-feira, 23 de maio de 2017

A CURA VEIO DO CHIFRE

Praia (?) do Saco da Ribeira - Foto: Reinaldo Rodrigues
     


Praia do Saco da Ribeira - 1945 (Ubatuba Histórica)


De vez em quando, relendo uns textos antigos, acho por bem divulgá-los. É o caso deste que relata a importância da sabedoria popular, da vida difícil justificando que a necessidade é mãe da criatividade.

            Os mais antigos falam das dificuldades dos “tempos d’antes”. É comum ouvir algo sempre assim, ou parecido com isto: “Antigamente tudo era dificultoso; não tinha estrada. Pra ir por mar dependia do tempo”. Eu fico sempre imaginando a situação quando alguém ficava doente! Talvez fosse por isso que quase todo mundo sabia um monte de remédios caseiros; tinham na memória nomes de plantas, simpatias e outras coisas do gênero. Também havia elementos estranhos, bizarrices no dizer de hoje. Você já imaginou chá feito a partir do cupinzeiro? Ou do picumã e do colar de capiá? E o que dizer do fumo com urina para curar frieiras? Porém, o que mais me intrigava era ver em quase todas as casas, pendurado nas travessas, chifres. Eles eram muito usados: geralmente depois de torrado e raspado, o pó era usado para combater uma série de doenças, principalmente aquelas relacionadas a vermes. Na casa do meu avô Armiro tinha dois: um curtinho, queimado pela beirada; outro novinho, sem uso. Acho que servia como sobressalente, para substituir o primeiro que já estava próximo do fim.  Então, lá vai o causo: 
       Armindo, pescador do lado do Norte, num tempo de mar grosso, precisou vir às pressas na cidade. Além de ter de resolver algumas coisas, tinha um filho adoentado sem que nenhum chá fizesse efeito. Andava pelo centro apressado, cumprimentando os conhecidos e prestando atenção nas novidades. Nisso encontrou um compadre, justamente o padrinho do filho que não passava bem. Foi logo lhe informando:  “Ó compadre Zé Mesquita, foi bom encontrar o senhor! O seu afilhado está muito doente. Ainda agora estou indo para a farmácia do Filhinho para comprar um remédio. Tomara que ele tenha um bom, porque lá em casa, desconfio eu, já se tentou de tudo. A mulher já começa a ficar desesperada!”. O outro, meio sem jeito, se desculpou dizendo, como se devesse alguma coisa:  “Eu devo cortar banana nesta quinzena, mas antes do tempo da tainha eu vou até a vossa casa ver o menino. Por enquanto não posso fazer nada; só rezarei para que Deus olhe por ele, por nós todos”. Despediram-se; cada qual tomando o seu rumo.
            Depois de muitos meses, quando o Zé Mesquita, um bom pedreiro, morador da praia da Fortaleza, até tinha se esquecido do afilhado doente, novamente os dois compadres se encontraram perto da Mercearia Paulista. Era tempo de Festa do Divino, mas a tainha já nem era tanta. O coração da cidade era só enfeite: tudo tinha a cor encarnada e fitas coloridas. Na porta da igreja – a matriz - ficava a guarda da bandeira, onde os devotos paravam para beijar a pombinha, se demorando na admiração dos enfeites do interior do templo.  Dito Bento, consertando bicicletas ali perto, dizia: "É a beijação da pombinha sagrada, onde as pessoas prendem suas fitas. Tem fila o dia inteiro na porta da igreja". Ali se respirava o sagrado. O assunto dos dois compadres sobre a festa do momento logo se esgotou. Então, meio sem jeito, o compadre que morava mais perto da cidade perguntou do afilhado: “O menino está bom, melhorou bem?”. Todo entusiasmado o pescador respondeu:  “Está uma maravilha! Curadinho, com a graça de Deus!”.  “Ainda bem!” – Suspirou o padrinho desnaturado. E continuou:  “Quer dizer que o Filhinho acertou no remédio? Qual é o nome?”. De pronto o Armindo respondeu cheio de satisfação:  “Ah! Não foi o Filhinho não quem indicou o remédio”. Cheio de orgulho arrematou a conversa:  “Eu tirei da cabeça: peguei um chifre, torrei, raspei e dei na água morna para tomar. Foi tomar e curar; uma luz que se acendeu! Não se deve esquecer das coisas dos antigos, dos remédios que eles conheciam!”.


segunda-feira, 15 de maio de 2017

MEU TIO SALOMÃO

Tio Salomão e Tia Umbelina - Aparecida, 1954 (Arquivo Zamberto)

                Eu, aproveitando o tempo de férias escolar, me pus a buscar as minhas anotações, onde, num tempo distante, no bairro da Estufa, a tia Maria Mesquita contava do tio Salomão e da tia Umbelina. Infelizmente não achei os escritos para rever o meu texto original em homenagem a estes dois que já não estão entre nós, mas deixaram suas marcas, contribuíram com a nossa cultura.  "Nela veio um pouco do tio Onofre; nele ficaram as marcas do Nhonhô Armiro". Por isso, peço desculpas aos primos e primas que ficaram magoados pelo texto anterior. De uma coisa estejam certos: eles deram passos que nos sustentaram na educação de nossos filhos e netos. Assim se garante um pouco do ser caiçara que somos todos nós. Grande abraço a vocês, mesmo que a gente, por estar em terras mais distantes, nunca mais se encontre.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

LIÇÃO À BEIRA-MAR

O Mano Mingo recorda o nosso tempo, quando aprender as letras foi a grande revolução em nossas vida, depois da herança cultural de tantas gerações entre a serra e o mar. Pelos livros, tantos mundos apareceram em nossas vidas de pequenos caiçaras. Quer mais? Vai ler: barbatuba.blogspot.com.br


























Desde menino,

quando faltava livro em casa,

eu ia ler o céu

deitado na Praia da Fortaleza.

E foi assim que fiquei alfabetizado

no voo da fragata

que percorre meio mundo

no sopro da corrente de ar,

aprendi que a nuvem espinha de peixe

é a vanguarda da frente fria

e assisti muitas vezes o desenho animado

de bichos, pessoas e castelos

que são feitos e desfeitos no céu.

Eu aprendi a viver nas nuvens

desde quando era menino.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

HISTÓRIA DE AMOR

Juventino, Porfírio, Sérgio e Serginho (Arquivo Fátima)

Dona Clície

               A tradição oral dos caiçaras hoje se encontra enfraquecida, mas houve um tempo em que as rodas de causos no jundu, as histórias de serão e as prosas em família testemunhavam a nossa cultura e a reconstruíam a cada dia. Ou seja, alimentavam nossas almas. Meus filhos (Maria Eugênia e Estevan) carregam os nomes dos bisavós que mais contavam histórias. Assim nos formaram! Alguém duvida?

               Outro bom contador de histórias foi o saudoso Tio Izídio, um dos descendentes do Velho Antunes de Sá, da Fazenda Caçandoca. Na verdade, ele era casado com a minha tia-avó Luzia. Numa ocasião, tendo a atenção dos mais novos, assim começou:

               “Nós somos daqui desde muito tempo. Meu avô, o Velho Antunes de Sá comprou este lugar do Granadeiro, o fazendeiro da praia da Mococa. As terras da Fazenda Caçandoca começam na Pedra da Cruz, que fica na costeira da Maranduba, debaixo do Morro do Cemitério, depois corre pelo espigão da Serra da Caçandoca até na divisa com a Serra da Lagoa. Dali desce de novo para a costeira, na Pedra do Um, a outra divisa.
             Esse meu avô, o Velho Antunes, tinha uma filha muito bonita já em época de se apaixonar. Uma escrava bem jovem lhe servia de ama. Dizem as histórias que essa cativa gostava muito da sinhazinha. Era tanta a estima que até escondia do senhor a paixão da moça pelo filho do fazendeiro da praia da Lagoinha. Foi por isso que, no dia que descobriu a respeito do romance, o fazendeiro se preparou para castigar a ama que lhe omitiu a informação. Ao perceber que seria espancada, a negrinha correu pela casa, indo para a parte de cima do sobrado que ficava no Areão [da praia da Caçandoca], na beira do rio. Acabou ficando encurralada, com o fazendeiro quase lhe alcançando. No desespero se jogou pelo janelão em direção ao terreiro. Foi quando aconteceu uma coisa fabulosa: o vestido se espalhou, igual a uma flor aberta, amortecendo a sua queda. Então ela saiu correndo pelo caminho bem conhecido da costeira do Pulso. Já era serão, escurecia, mas mesmo assim foi perseguida por gente da fazenda.  O que lhe valeu de esconderijo foi um oco numa grande timbuíba que existia quase chegando na Pedra do Cruzeiro, onde mais tarde morou o Velho Salomão [pai do Élcio]. Só na madrugada criou coragem e foi bater na porta da fazenda da Lagoinha, onde morava o rapaz apaixonado pela sinhazinha. Foi acolhida, explicou tudo. Logo foi comprada pelo fazendeiro. Mais tarde, conforme a história prova, deu certo o namoro dos dois jovens. Após o casamento, a sinhazinha foi morar na Fazenda da Lagoinha e a escrava, sua antiga ama, continuou lhe servindo. Mais tarde ela também encontrou um parceiro e teve filhos. Gertrudes, Porfírio, Juventino, João e outros vieram desse casal de escravos”.

             Agora eu acrescento à fala do Tio Ezídio: 

            Depois Juventino se apaixonou por Dona Clície e.... Maria de Fátima, Serginho e tantos outros descendem dessa fugitiva da Fazenda Caçandoca. Não é uma bela história de amor?