terça-feira, 23 de maio de 2017

A CURA VEIO DO CHIFRE

Praia (?) do Saco da Ribeira - Foto: Reinaldo Rodrigues
     


Praia do Saco da Ribeira - 1945 (Ubatuba Histórica)


De vez em quando, relendo uns textos antigos, acho por bem divulgá-los. É o caso deste que relata a importância da sabedoria popular, da vida difícil justificando que a necessidade é mãe da criatividade.

            Os mais antigos falam das dificuldades dos “tempos d’antes”. É comum ouvir algo sempre assim, ou parecido com isto: “Antigamente tudo era dificultoso; não tinha estrada. Pra ir por mar dependia do tempo”. Eu fico sempre imaginando a situação quando alguém ficava doente! Talvez fosse por isso que quase todo mundo sabia um monte de remédios caseiros; tinham na memória nomes de plantas, simpatias e outras coisas do gênero. Também havia elementos estranhos, bizarrices no dizer de hoje. Você já imaginou chá feito a partir do cupinzeiro? Ou do picumã e do colar de capiá? E o que dizer do fumo com urina para curar frieiras? Porém, o que mais me intrigava era ver em quase todas as casas, pendurado nas travessas, chifres. Eles eram muito usados: geralmente depois de torrado e raspado, o pó era usado para combater uma série de doenças, principalmente aquelas relacionadas a vermes. Na casa do meu avô Armiro tinha dois: um curtinho, queimado pela beirada; outro novinho, sem uso. Acho que servia como sobressalente, para substituir o primeiro que já estava próximo do fim.  Então, lá vai o causo: 
       Armindo, pescador do lado do Norte, num tempo de mar grosso, precisou vir às pressas na cidade. Além de ter de resolver algumas coisas, tinha um filho adoentado sem que nenhum chá fizesse efeito. Andava pelo centro apressado, cumprimentando os conhecidos e prestando atenção nas novidades. Nisso encontrou um compadre, justamente o padrinho do filho que não passava bem. Foi logo lhe informando:  “Ó compadre Zé Mesquita, foi bom encontrar o senhor! O seu afilhado está muito doente. Ainda agora estou indo para a farmácia do Filhinho para comprar um remédio. Tomara que ele tenha um bom, porque lá em casa, desconfio eu, já se tentou de tudo. A mulher já começa a ficar desesperada!”. O outro, meio sem jeito, se desculpou dizendo, como se devesse alguma coisa:  “Eu devo cortar banana nesta quinzena, mas antes do tempo da tainha eu vou até a vossa casa ver o menino. Por enquanto não posso fazer nada; só rezarei para que Deus olhe por ele, por nós todos”. Despediram-se; cada qual tomando o seu rumo.
            Depois de muitos meses, quando o Zé Mesquita, um bom pedreiro, morador da praia da Fortaleza, até tinha se esquecido do afilhado doente, novamente os dois compadres se encontraram perto da Mercearia Paulista. Era tempo de Festa do Divino, mas a tainha já nem era tanta. O coração da cidade era só enfeite: tudo tinha a cor encarnada e fitas coloridas. Na porta da igreja – a matriz - ficava a guarda da bandeira, onde os devotos paravam para beijar a pombinha, se demorando na admiração dos enfeites do interior do templo.  Dito Bento, consertando bicicletas ali perto, dizia: "É a beijação da pombinha sagrada, onde as pessoas prendem suas fitas. Tem fila o dia inteiro na porta da igreja". Ali se respirava o sagrado. O assunto dos dois compadres sobre a festa do momento logo se esgotou. Então, meio sem jeito, o compadre que morava mais perto da cidade perguntou do afilhado: “O menino está bom, melhorou bem?”. Todo entusiasmado o pescador respondeu:  “Está uma maravilha! Curadinho, com a graça de Deus!”.  “Ainda bem!” – Suspirou o padrinho desnaturado. E continuou:  “Quer dizer que o Filhinho acertou no remédio? Qual é o nome?”. De pronto o Armindo respondeu cheio de satisfação:  “Ah! Não foi o Filhinho não quem indicou o remédio”. Cheio de orgulho arrematou a conversa:  “Eu tirei da cabeça: peguei um chifre, torrei, raspei e dei na água morna para tomar. Foi tomar e curar; uma luz que se acendeu! Não se deve esquecer das coisas dos antigos, dos remédios que eles conheciam!”.


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