domingo, 22 de abril de 2018

A ESCRITORA DO SOMBRIO



         
A capa do livro da Janaína (Arquivo Rê)

Meu sol para tapar um buraco (Arquivo JRS)
     As minhas primeiras letras foram aprendidas na areia molhada do lagamar, na praia da Fortaleza, quando pelas manhãs eu ia olhar o mar com o meu pai. Naqueles dias, o homem estava com os pés na Lua. Com uma vareta na mãe ele ia desenhando as letras e eu copiava tudo. “Assim se escreve José, o seu nome”.  Desde quando aprendi a ler nos livros, graças à saudosa professora Olga Gil, tenho me aproveitado de preciosos textos, de mágicas narrativas, de viagens maravilhosas. De acordo com o escritor Daniel Pennac:  "Ninguém se cura dessa metamorfose. Não se retorna ileso de uma viagem dessas. A toda leitura preside, mesmo que seja inibido, o prazer de ler [...] Se, entretanto, o prazer de ler ficou perdido, ele não se perdeu assim tão completamente. Desgarrou-se apenas. Fácil de ser reencontrado”.

               Ontem, por motivos familiares deixei de comparecer ao evento promovido pelo Pedro Caetano, em Caraguatatuba, Mil desculpas, amigo Pedro. Esta postagem é pensando em você e em tantos outros que continuam fazendo um esforço incrível pela nossa cultura caiçara. Agora, entre as fotografias da amiga Rê, nos preciosos registros da E.E.P.G (ER) Paranabi (Saco do Sombrio – Ilhabela), encontrei uma escritora, cujo nome é Janaína, filha do estimado Élcio, o fazedor de canoas do lugar. O título: Conversas de pescador. Quem dá os depoimentos, gerando os versos: Sebastião, Antônia, Vô Maneco, Benedito e Pedro.

               Vou te contar, Antônia
               Estou fazendo canoinhas
               Pra vendê-las na Colônia
               E ver de dá uma graninha.
               Não é que eu me queixe,
               Mas o tempo da fartura,
               Em que havia muito peixe acabou
               E hoje a vida tá dura.
               Até a caça no mato havia em grande quantidade...
               Era o quê de passarinhos, 
               Mais de cinquenta qualidades.
               E lembro que tempos atrás
               Para fazer casa, canoa,
               Remo e colher de galho,
               Gamela, cesto ou samburá,
               Era bastante barato.
               Era só ter o trabalho
               De ir buscar no mato.
               Também tinha comida que o mato dá, sem plantar:
               Palmito, taioba, ingá,
               Pinha, fruta do conde, abiu e araçá.
               O vô plantava mandioca
               (Vê? Estou com água na boca)
               Pra cozinhar ou ralar e
               No forno virar farinha.
               No terreiro sempre tinha
               Mamão, carambola e jaca.
               Já a manga, abacate, goiaba,
               Banana e pitanga: de saca!
               Tempo bom em que eu era
               Moça na costeira brincar.
               E o pescador tinha roça.
               Hoje? Nem tem quintá.
              
               Por hoje é só! Espero que esta parte, escrita por uma criança, pela querida Janaína do Saco do Sombrio, tenha lhe revelado a importância de uma educadora na descoberta do prazer de ler e de escrever. Que importante registro histórico! Valeu, Rê!

terça-feira, 17 de abril de 2018

LUGAR CAIÇARA: SACO DO SOMBRIO


             
Preparando o moinho de cana (Arquivo Rê)

Embarque e desembarque nas pedras (Arquivo Rê)

       
        Se muitos dos meus irmãos não conhecem sequer as praias de Ubatuba, imagine um lugar distante como o Saco do Sombrio, na Ilhabela! Para chegar lá é preciso enfrentar o mar. Fica bem depois da praia dos Castelhanos. Na primeira vez, a viagem, de canoa movida a motor, durou duas horas e meia. 

                Eu conheci os caiçaras do Sombrio há vinte e cinco anos, quando a amiga Regina foi professora na escola isolada local. Dessa época vem a minha amizade com Vera e Pedro, outrora professores na ilha dos Búzios, parte  do mesmo arquipélago. Para desembarcar lá era uma manobra que exigia agilidade e pernas boas: uma estiva de paus roliços se espalhava sobre a costeira, por onde subiam as pessoas, as mercadorias e as canoas para serem guardadas nos ranchos. Assim se repetiam os embarques e desembarques na Serraria,  Búzios e Vitória, outras ilhas vizinhas onde ainda temos parentes.

                Naquele tempo, as roças dos moradores chegavam até na costeira, ou seja, o morro próximo era bem cultivado. Informo que nenhuma área era plana. Foi o primeiro lugar que não encontrei ninguém mais rechonchudo, aparentando ter algum peso a mais. Justificativa: a alimentação era constituída pelo pão nosso de cada dia básico (peixe, farinha, feijão, arroz...) e  todos  eram obrigados a um exercício contínuo. Era subir ou descer morro sempre, não tinha como escapar! Desde as criancinhas até os idosos: todo mundo driblava as pedras, as partes escorregadias, escolhia os melhores lugares para galgar os caminhos que se teciam na encosta, entre as dez casas que ali existiam. Eles corriam tanto no dia como na noite. Enxergavam que era uma beleza!

                Os caiçaras do Sombrio, simpáticos e acolhedores, viviam numa humildade impressionante, tal como quase todos os ubatubanos há cinquenta anos. Tinham suas roças de mandioca, feijão, milho e cana. Cultivavam bananeiras, extraiam palmitos e cocos. Faziam canoas.

                Não tem como se esquecer da gostosa farinha de mandioca do Seo Pedro e do Alessandro. E o melaço apurado pelo Élcio? Que delícia! Foi lá que eu aprendi a fazer uma espécie de caipirinha, mas com folhas de limoeiro. Também foi onde vi o uso de uma pasta de óleo e farinha para curar ferida “arruinada”.

                Para aumentar a diversão, cortaram um pedaço do morro e fizeram um campinho onde jogavam futebol. Era um chão cascalhento, num espaço reduzido, com uma pedra no meio. Canelas se encontrando, “soltando faíscas”, era coisa comum. Ruim era correr morro abaixo atrás da bola. Para quem não estava acostumado, era um sofrimento essa diversão. Outra atividade muito aguardada era o baile na casa da dona Vinina, que ficava logo acima da costeira de embarque  e desembarque. Não sei de onde aparecia uma vitrola alimentada por pilhas e vários discos de forró. Todos se produziam como se fosse uma noite de gala. Tinha gente comedida, mas as assanhadas também eram evidentes. Não existia salão para competir com aquele espaço embarreado de 4 X 4. O suor descia em bicas direto para o chão de barro socado. Era um mundo que não se afastava muito da faina do mar, das necessidades do eito e dos prazeres da carne.
                A escola era um lugar especial. Ainda hoje, quando vejo o álbum da Regina, através dos desenhos e textos da caiçaradinha, viajo no tempo e nos sonhos. Terrível é o modelo econômico que continua matando essas expressões de vivências tão simples, essas particularidades culturais tão específicas, esses lugares de caiçaras tão queridos. É assim que o mundo vai ficando mais sombrio.


segunda-feira, 16 de abril de 2018

RETORNANDO

Rê e Élcio (Arquivo Rê)

                              Por motivo técnico, o blog ficou incomunicável. Daí, as postagens encalharam. Agora, acidentalmente, consegui entrar. Sei lá o que aconteceu. Só sei que tenho um material valioso sobre a passagem dessa professora, na nossa estimada Regina Natividade Azevedo, recém-formada na época, convivendo nas comunidades mais isoladas da Ilhabela (Galhetas, Sombrio, Praia Vermelha, Praia Mansa...), onde conviveu com caiçaras, aprendeu muito e deixou a sua marca com certeza. Suas singelas anotações nos conduzirão a essa percepção, a um continuar aprendendo com a cultura caiçara dos ilhéus.  Na foto, por exemplo, na casa de farinha do Élcio, as primeiras lições de farinhada. Aguardem!

quinta-feira, 5 de abril de 2018

TRABALHO EM EQUIPE

Dona Bereniza e Luizmar



     

             Continuando a história da Regina, a professora:

          Assumir a escola PARANABI, para uma professora recém-formada, foi uma atitude radical, bem apropriada para alguém tão idealista. Vendo umas fotos e umas poesias, imaginei um relatório da amiga. Assim...

“Oficialmente, num dia encoberto embarcamos no barco da prefeitura que atendia todas as comunidades do arquipélago de Ilhabela, composta de treze ilhas, mas sendo apenas quatro habitadas (São Sebastião, sede da Ilhabela, Búzios, Vitória e das Cabras), com uma companhia muito respeitada (Dona Bereniza, 64 anos, moradora dos Búzios). Luizmar, um parceiro, me auxiliou muito naquele dia. Logo em torno de nós se formou espontaneamente a primeira equipe: três meninos, meus futuros alunos, ajudaram a carregar as caixas e bolsas, abriram a porta da escola e me apresentaram o lugar onde eu moraria nos dois anos seguintes. A sala de aula guardava os sinais da outra pessoa que ali exerceu a docência; pelas paredes, os desenhos revelavam as aspirações de quase todos os meninos e meninas: traineiras coloridas permitiram que eu visse ambições de um povo ligado à pesca, ao universo marítimo. Do terreiro da escola rodeada de árvores frutíferas, eu avistava o porto da comunidade, todo o Saco do Sombrio. E então escrevi o primeiro poema:

Não é só beleza;
É de onde os frutos alimentam
Pais e filhos
Que habitam 
Esta terra
Maravilhosa.

E a natureza de variadas espécies arbóreas, me fez pensar nos mestres canoeiros que vasculham as matas sondando as melhores madeiras para fazerem suas embarcações, me fez pensar nos espaços vitais de roçados que estão ao meu redor... Me fez registrar isto:

Desse meio da mata,
Bem de dentro dela,
Lá estão elas:
A imbuia,
A cerejeira,
O jatobá.
Desse jeito,
Essa madeira,
Pouca já!

Tenho a certeza que ela, a mata, tem seus segredos e mistérios e guarda consigo a doçura do dia e da noite, do passado e do presente... E sabe lá Deus o que será do futuro! 

Eu sonho com um novo mundo 
Numa terra nova 
E trabalho desde já 
Para a esperança não se esvaziar. 


E nos dias seguintes, nas primeiras aulas e nas que se seguem pelo tempo, a equipe inicial se refez, se desdobrou, se multiplicou nas tarefas que tínhamos no cotidiano. A escola, a MINHA PRIMEIRA ESCOLA  assume outra feição, deixa de ser apenas uma casa no alto do morro do Sombrio”. 

domingo, 1 de abril de 2018

A ESCOLA DA RÊ

Porto do Seo Élcio (Arquivo Rê)


               Ontem, por uma feliz coincidência na caminhada matutina, encontrei a Rê, a amiga Regina Natividade, professora lutadora como a minha querida Gal e tantas outras. “Que prazer, Zé! Você não sabe o quanto eu estava pensando em você nesta semana! É que a escola está pensando em trabalhar a cultura caiçara com a criançada. Só tem um detalhe: pouquíssimos professores sabem alguma coisa nesse assunto. Por isso recomendei o seu blog como leitura”. E fomos andando e conversando. Afinal... há muito tempo que a gente não se via. Prosear então nem se fala!
               A Rê, professora desde o começo da década de 1990, acompanha meus textos muito facilmente porque fez parte das minhas andanças e das muitas atividades por tantas partes deste litoral norte. Recordamos de tantas coisas, de tantas pessoas que têm grande importância em nossas vidas... Também comentamos fatos tristes, de gente nossa que, em seus desvarios, estragaram vidas, inclusive de filhos.
               A vida profissional da Rê, quando ela assumiu uma escola, começou na Ilhabela, em 1993, na comunidade do Saco do Sombrio, na E.E.P.G (ER) PARANABI. Lugar longe, gente! Sobretudo para quem morava em Ubatuba, no bairro da Estufa! Era uma condução até Caraguatatuba, depois outra até São Sebastião. Depois de atravessar de balsa para a Ilhabela, outro ônibus até o centro da vila, onde, no cais, uma canoa a motor enfrentava o mar por duas horas e meia. Pronto! Chegávamos ao Saco do Sombrio!
               Ao chegar, logo avistávamos as expressões curiosas, dos caiçaras desse local isolado, do outro lado da Ilha; nos olhavam da costeira, dos terreiros mais próximos, das janelas das moradias simples de pau a pique embarreadas. Assim que a canoa se aproximava das pedras, alguns desciam para ajudar. As primeiras pisadas nas pedras foram no Porto do Seo Élcio. As madeiras estivadas sobre as pedras recebiam as canoas cansadas do mar. Que faina! “Onde é a escola?”. “Vamos subir, é logo ali”, disse quem está mais perto ajudando no desembarque da carga. E o “logo ali” é um morro. E a escola, “logo ali”, é a última casa, depois de todas as outras moradias. Depois dela é só mato. Na hora pensei: “Não tem como engordar num lugar assim. Ou você sobe e desce ou você sobe e desce”. Por dois anos a Rê viveu entre eles. Quero, nos próximos textos, compartilhar as imagens e as anotações dessa professora que se formou em Ubatuba, dessa amiga de tantos anos.