segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

ISAÍAS, O ALFAIATE


Caiçaras de outros tempos em dia de festa (Arquivo Yolanda)

Grande Isaías (Arquivo JRS)

          Olhando algumas imagens, reparei nas vestimentas dos caiçaras de algumas décadas passadas. As roupas melhores eram as “de domingo”. As “de trabalho”, quase sempre com remendos sobre remendos, eram as usuais, do cotidiano, quase sempre feita pela mãe ou avó. Assim, quando se avistava alguém vestido melhor, logo se dizia frases do tipo: “Vai à missa, né?”, “Hoje é dia de ir ao médico?”, “Onde é o casamento?" etc.
         Ter charme era poder encomendar uma roupa sob medida, no alfaiate, no centro da cidade. Além do famoso Isaías Mendes, pai do Júlio, tinha também o seo Queiroga, pai do Francisco. O ateliê do Isaías era na rua Jordão Homem da Costa, entre a Casa Fernandes e o Bazar Nice, loja onde comprávamos materiais escolares, decalques etc. Somente uma vez adentrei na Mendes Alfaiataria, quando estava acompanhando o saudoso tio João, que portava uma peça de tergal verde para uma calça boca de sino. Mais ou menos assim foi a conversa, após o exímio alfaiate ter lhe tirado as medidas: “Quanto de boca você quer?”. “Trinta e cinco centímetros o senhor acha que tá bom?”. “Acho que sim, é daí até quarenta e cinco que os outros mais pedem”. “Então tá bom. Quando fica pronto?”. “Olha, eu tenho muito serviço na frente, mas pode passar depois de sete dias, para a semana. Acho que até lá já terminei”. “E quanto fica tudo?”. “Para você eu vou cobrar cinquenta cruzeiros: metade agora e metade quando vier buscar. Tá bom assim?”. Em seguida eu vi o titio tirando aquelas notas bonitas trazidas embrulhadas num lenço amarelado e pagando a referida parcela. Fiquei impressionado pelo ambiente de trabalho daquele alfaiate, com tudo bem arrumado e com umas peças de tecidos que eu nem imaginava que existiam. Também em impressionou a seriedade nas negociação, nas anotações das medidas etc. Meses atrás, contemplando o Isaías assistindo uma apresentação popular, me recordei de tudo isso, das lembranças da minha meninice, quando o sonho era: “Ah! Como eu gostaria de ter uma calça feita por ele!”. Fazer roupa tinha um ritual marcante. Na verdade, tudo seguia rituais que davam maior importância aos objetos e às pessoas, sem as banalizações corriqueiras e notórias da atualidade. Talvez por isso as alfaiatarias foram fechadas e os alfaiates se recolheram aos seus lares.

      Hoje, prestes a completar mais um aniversário, que o ano próximo e mais um ano de vida sejam maravilhosos ao alfaiate Isaías, aos seus familiares e a todos nós.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

ADEUS, EMÍLIO

Adeus, amigo! (Arquivo internet)

        Quando eu ainda morava no Perequê-mirim, assim que comecei a estudar no ginásio, por volta da sexta série, a família Campi se mudou para a mesma rua da nossa casa. Dona Helena, seo Alberto e três crianças: Emílio, Otília e Hermínia. Vieram de São Paulo para morar na chácara do seo Aldo Campi, tio deles, das crianças. Logo nos tornamos amigos. 

        Dona Helena, mulher de muita garra, era motorista profissional. Tinha uma perua kombi, e, assim como o tio Nelson, o Renatinho, o Freitas, o Ireno e outros, trabalhava como taxista no ponto que ainda existe defronte ao Fórum, hoje Fundart, próximo da cadeia velha, atual museu municipal. Não me lembro se houve, na nossa cidade, outra mulher taxista!  Seo Alberto era aposentado. Após sua morte, dona Helena casou-se com Rodrigo e se mudou para o Sertão da Quina. 

        O menino Emílio Campi Neto, com a minha idade, também estudava no centro da cidade, na escola Capitão Deolindo, na mesma classe que eu. Viajávamos juntos, enfrentávamos o mesmo trajeto e fazíamos juntos alguns trabalhos escolares. Ele só não precisava trabalhar como eu. Depois de terminarmos o colegial (Ensino Médio), o Emílio seguiu outros caminhos, foi estudar fora, na área de comunicação. Levamos tempo sem se ver. De repente, soube que ele estava de volta, produzindo um jornal na Maranduba. Nossa! Que beleza! Outro amigo em comum, o Juliano, que trabalhava num armazém no Largo do Sapê, sempre me proporcionava um exemplar do periódico que eu adorava. Tendo como parceiro o primo Ezequiel, as matérias caiçaras se destacaram, bem como as ações a favor do nosso lugar. Quem não se lembra de uma temporada dessas, quando a sua frase, denunciando os esgotos jogados diretos no rio era: “Ubatuba fede”?

        Num belo dia, estando em casa sossegado, um carro aparece. Era Emílio e Ezequiel para fazer uma gravação sobre história de Ubatuba. De vez em quando alguém me diz: “Oi, Zé. Assisti uma gravação sua, chamada Maré Legal. Gostei”. É, já faz um tempo, a minha barba ainda era preta. Ah! Os dois também fizeram a matéria a respeito da famosa Festa da Cultura que acontecia na escola Aurelina, na Estufa. Prometo republicá-la em outra ocasião.

      Ontem, ao receber a notícia do falecimento do Emilinho, narrei nosso passado em comum para a minha Gal. E logo comecei a escrever um pouco desse parceiro que sempre lutou por Ubatuba, divulgando nossas belezas, nossas histórias e denunciando as muitas irregularidades. Muita força aos seus! Que os seus projetos prossigam no mesmo ideal!

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

RABO PRESO NOS AGUDÁS


Livro Agudás - ilustração

        É dando maior importância a determinados aspectos, coisas que lhe convém, que cada indivíduo se compõe em grupos sociais, em instituições que com o tempo se fortalecem e se sobrepõem a outros indivíduos e grupos, podendo até escravizar populações inteiras.  

         Do lado paterno, eu descendo de Estevan Félix, da Caçandoca, filho de Francisco Félix (vitimado pela gripe espanhola no início do século XX). Diziam que seu bisavô casou-se com uma caapora, ou seja, uma índia aprisionada nas matas. Portanto, a história mais remota diz que a nossa origem está em uma caapora. Ainda: os Félix, de Ubatuba, são da linhagem de três irmãos que vieram da Bahia: um fixou moradia no Rio Escuro, outro no Sertão da Quina, e o terceiro na Caçandoca, onde também nasceu meu pai e seus ascendentes.

         Lendo a obra de Milton Guran – Agudás – achei passagens interessantes, que podem até ter relação com os Félix que vieram, ainda no século XIX, parar no nosso município. A palavra agudá vem, provavelmente, da transformação da palavra ajuda, nome português da cidade de Uidá, no Benin (África), por causa do forte português da referida cidade, chamado de Forte São João Baptista da Ajuda, construído em 1680 por Bernardino Freire de Andrade, governador de São Tomé e Príncipe.

          Em francês, a língua corrente no atual Benin, os agudás são chamados e se autodenominam simplesmente por “brésiliens”. A maior parte dentre eles, sem dúvida, é constituída por descendentes de traficantes ou de comerciantes brasileiros ou portugueses estabelecidos nesta costa, ou ainda, por descendentes de antigos escravos retornados do Brasil.

           A importância política da presença brasileira na região desde o começo do culo XIX, com o retorno dos antigos escravos do Brasil, em consequência da deportação de centenas de participantes da grande revolta [dos Malês] de 1835 na Bahia, pode ser convenientemente ilustrada pelo papel desempenhado por dom Francisco Félix de Souza, o todo poderoso Chachá, traficante baiano, nascido em 1754, filho de pai português e mãe indígena, uma caapora. Ele exerceu imenso poder sobre toda a Costa dos Escravos na primeira metade do século XIX.

        Prova irrefutável do prestígio e da importância política de Francisco Félix de Souza no reino do Daomé foram as homenagens a ele prestados pelo rei Guezô ocasião de sua morte, aos 94 anos de idade. Tão logo recebeu a notícia do falecimento do seu amigo, ocorrido em oito de maio de 1849, Guezô enviou a Uidá dois de seus filhos, à frente de um destacamento de oitenta amazonas, para realizar as cerimônias tradicionais que duraram vários meses. Caso você vá ao Benin, visite o "Quartier Brésil", local onde até hoje prevalece a influência direta dos descendentes dos sessenta e três filhos reconhecidos e batizados desse brasileiro do passado. Enfim, essa história de pai português e mãe indígena pode ser a mesma da caapora que é parte de mim herdada dos Félix. Meu pai? Leovigildo Félix dos Santos!

       Tio Chico Félix, nos desvarios da “mardita branquinha”, dizia assim: “Os nossos antigos têm rabo preso no contrabando de pretos das terras distantes da África”. É, pode ser mesmo!

Em tempo: os agudás, os “brésiliens” são, hoje, 5% da população beninense.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A VIDA É SACRAMENTO

Os músicos da Universidade  no Cine Theatro (Arquivo JRS)
Olha aqui, filha!  (Arquivo JRS)
Parabéns, Má! (Arquivo JRS)


         De acordo com os estudiosos, os povos europeus mais antigos, do tempo das tribos, festejavam a festa do Sol, próximo do que mais para a frente foi denominado de período natalino no calendário cristão. Sunday - domingo - dia do Sol. Festejar o Sol é festejar a coisa mais sublime, considerando que sem ele não haveria vida na Terra. Na verdade, por volta do dia 21 de dezembro ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte, quando devido à obliquidade do eixo de rotação do planeta, a insolação é mínima, ou seja, com noites longas. Após isso, os dias vão se alongando: é o re-nascimento do Sol, tempo de festejar porque o inverno vai passar e novamente as paisagens florirão, os animais deixarão seus abrigos com novos filhotes, a vida desabrochará.

         As festas de antigamente não eram de um dia só. Grupos pequenos de deslocavam, formavam enormes grupos para dançar, beber, comer, competir etc. Tudo em homenagem ao Sol da vida!
Mais tarde, com o advento do cristianismo, não houve como simplesmente acabar com tais festividades. Então, tal como outras datas do nosso calendário, foi introduzido um novo sentido: vamos comemorar o nascimento de Cristo. "É  mesmo, faz sentido à nova doutrina, aos ensinos catequéticos!". Cristo passa a ser o sol da vida humana.

         Neste tempo me recordo de outros tempos, quando o período natalino era marcado por presépios, por cantorias de reis, por brinquedos novos, por roupas cheirosas, comidas e bebidas. Papai sempre aparecia com garrafão de vinho em casa, com uma ou duas garrafas de champanhe. Alguém matava um porco e dividia com a comunidade. Peixe abundava, frango nunca faltava, mas carne bovina era rara. Raro também era qualquer espécie de pão. Marcante mesmo era a família feliz, reunida pela festa. Até parentes mais distantes, que viviam em outras cidades, vinham para se reencontrar com os que tinham permanecido na terra. Depois, enquanto os adultos conversavam ou madornavam, as crianças brincavam, faziam o maior alarido.

          Véspera de Natal: dia de pensarmos nos muitos momentos que vivemos em família. Tempo de agradecer pela minha família. No dia 19, cinco dias atrás, Maria Eugênia, a nossa filha, venceu mais uma etapa na Universidade Federal de Juiz de Fora. Creio que eu e minha Gal estamos cumprindo a nossa parte, procurando ser o melhor possível nas condições que temos. Eles (Maria e Estevan) farão, com certeza, a parte deles. Família é para isso: celebrar a vida. Então… Natal, retornando ao sentido original, é celebração da vida. A vida é um sacramento (algo sagrado). Natal – nascimento – vida. Feliz Natal a todos que lutam para celebrar a vida!




domingo, 22 de dezembro de 2019

ARTESANATO É A NOSSA PRAIA

Primeiro registro (Arquivo JRS)
Eu e Tacinha
Maria Eugênia e suas cerâmicas (Arquivo JRS)
Estevan e nossos balaios (Arquivo JRS)

                 Agora, pela primeira vez, graças ao incentivo da minha Gal, eu e a família estamos expondo com outro tanto de gente boa o nosso artesanato. A Fundart (fundação cultural do município) está nos apoiando, fornecendo as barracas e garantindo o espaço (boca da barra dos pescadores - praça Anchieta).  Ainda falta dar um jeito na iluminação daquele cantinho para maior projeção ao espaço e aos trabalhos da minha gente, mas o grupo setorial tem se mostrado disposto a continuar os esforços para que as artesãs e artesãos se mostrem com a maior dignidade possível. Os amigos têm aparecido para prestigiar. Os turistas vão chegando aos poucos. É compensador ver os trabalhos, suas autoras e autores. É prazeroso escutar como se dão os processos criativos, os materiais e técnicas  usadas, saber que estão utilizando outros meios para divulgação e vendas etc.

                   Na primeira noite, na barraca próxima, avistei a prima do papai, a Tacinha (Ana). Logo que ela me viu, veio me cumprimentar e prosear um pouco. Ela, gente do Pulso e Caçandoca, filha do meu tio-avô Leopoldo Félix, assim que notou os balaios se encantou: "Que beleza, Zezinho! É de papel mesmo? Quantas vezes eu vi o papai ir ao mato para buscar taquara e cipó para fazer balaios, samburás, peneiras! Os seus estão lindos! E tem a vantagem de agora não precisar mais ter tanto trabalho, nem de correr risco, né? Se é tudo feito de papel, nunca vai lhe faltar material. Já passei vendo as outras barracas, tudo tá muito bonito. Espero que vocês vendam bastante. Parabéns, mesmo! Assim, fazendo balaios, você continua coisas nossas de antigamente".  Valeu, Tacinha!

                  Reutilizar e reciclar, na proposta de quem faz artesanato, visa reduzir o ataque contra a natureza, contra o nosso lar, a Terra.

                Abraços e sucessos a todos nós da Feira de Artesanato de Ubatuba. Bem-vindos os amigos e visitantes! Boas festas a todo mundo!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

ADVENTO

Sob controle (Imagem da internet)


         Meus pais, caiçaras de outros tempos, sabiam acolher as pessoas. Faziam de tudo para promover a satisfação de quem passasse por nossa casa, pelo lugar onde estivéssemos morando. Ninguém ficava sem um pouso caso precisasse, nem sem partilhar do nosso alimento se estivesse desamparado. “É pecado negar comida. Não presta deixar de ajudar quem é mais pobre do que nós”. Só que eles, na simplicidade daquele tempo, logo viam quem estava querendo se aproveitar deles. Pelo olhar e pelos modos sempre acertavam em suas percepções, dando logo um jeito na situação. Eu creio que herdei um pouco deles neste detalhe (de confiar desconfiando).
          Hoje, mais do que naquele tempo, muita gente acorre para a nossa terra na ambição de se fazer por aqui. Só que encaram a vida com princípios ruins, pretendendo se fazer às custas de quem trabalha, fomentando a discórdia e danando a vida das pessoas simples. Sim, simples! Pessoas com princípios nefastos não vão em cima de quem elas notam ser também aproveitadoras! Adiam ao máximo lançar mão de confirmar o ditado de “cobra engolindo cobra”.
      Atualmente tenho notado um outro tipo de perversidade: o controle ideológico. Pessoas do seu mesmo nível econômico, que precisam do salário de cada mês como você, se entrincheiram na ideologia dos poderosos e fazem de tudo para arrasar com aquelas que não estão com elas. Ou seja, investem primeiramente contra quem está mais próximo, quase sempre que trabalha ao lado e depende do mesmo patrão. Fofocas, intrigas, criação de “provas” idiotas denotam o caráter de gente assim, envenenam o ambiente profissional. Gente desse tipo se recusa a desenvolver a inteligência e aperfeiçoa a maldade. Pode até ter um discurso bonito (demagogia), mas nunca vai deixar de ser alguém que apoia as práticas excludentes, elitistas e destruidoras do mundo e da felicidade para todos. E, encerrando seus discursos apoiadores de uma minoria que vive às custas de quem trabalha, vai repetir sempre uma frase alienada, tipo “fala de papagaio de pirata”. E você vai pensar: “É cabeça gorda mesmo! Pensa que está enganando quem?”. E as "convicções de gado" que se reforçam? "A Terra é plana", "Paulo Freire é um energúmeno", "O pobre tem muitos direitos", "A privatização de tudo é a solução", "Tudo está  bem, graças a Deus" etc. Resumindo: a porteira está aberta para dar um fim na democracia brasileira.

     É tempo de Advento. Neste momento de reflexão, quero agradecer pelas pessoas boas que se empenharam em desvendar a realidade, promovendo a consciência libertadora, sendo solidárias e alimentando as esperanças, sobretudo as minhas. É a minha gente! Grande abraço amigos e amigas! Boas festas!

domingo, 15 de dezembro de 2019

EU PRECISO MESMO?

       
Mariposa azul (Arquivo JRS)
              "Cedo ou tarde, o oceano do tempo nos devolve as lembranças que enterramos nele" (Carlos Ruiz Zafón)

         Uma amiga que me conhece muito bem vive recomendando: Você deveria procurar um especialista, tipo psicólogo, para resolver alguns embaraços da sua cabeça”. Será mesmo? “É bom, amigo. Gente assim se preparou para isso, pode orientá-lo para viver melhor, sem se angustiar por coisas desnecessárias”. Então fui.

         Cheguei ao local do atendimento faltando dez minutos antes do horário marcado (dez horas, de um dia ensolarado). Um grupo de quatro pessoas já se encontrava ali conversando, amizade antiga talvez. Imaginei que eles seriam atendidos antes, pensei que me atrasaria nos outros compromissos. Assim que avistou o relógio em meu pulso, um deles perguntou:

          - Que horas são, senhor?
          - Quase dez horas.
         - Ah, bom. A nossa atividade será às treze horas, mas a gente chega antes para conversar um pouco.

          Me admirei do adiantamento deles, não me lembro de ter visto nada igual antes, mas tudo bem. Olhando umas mensagens no celular, mesmo sem nenhum esforço, fui acompanhando o papo dos amigos (três mulheres e um homem).

           - Em que mês nós estamos?
           - Agosto, né?
           - Não, acho que já é setembro.

             Na dúvida, se voltam para mim. Afirmo que é dezembro.

           - Já é dezembro?!?
           - Então logo é Natal!

            O homem, rapaz novo:

          - O meu filho faz aniversário antes do Natal, em março, no dia seis.

            E acrescentou:

          - Eu também faço em março, dia dezesseis ou vinte e cinco, não lembro mais.

          Nossa! Pensei: essa gente precisa de ajuda mesmo! De repente, uma das mulheres, longe de ser magra, olhando para a outra sentada na cadeira da frente:

         - Eu era gorda como ela, mas agora emagreci de perder roupas.

           E eu escutando tudo. Logo, a outra, se referindo à colega ao lado :

         - Ela tem menos de trinta anos, mas o marido diz que ela é fria. Quem me contou foi ela mesma.

         Nossa! Será que estou escutando isso mesmo?!? O assunto estava bom, eles variavam. O grupo estava tão concentrado que nem percebeu o momento que fui chamado para a consulta. Ainda na porta, olhando para quem me recepcionou, eu hesitei: “Será que eu preciso mesmo? É bom se cuidar, né? Ainda bem que eu vim!”

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

PARABÉNS AO XARÁ


Ronaldo & Zé Ronaldo (Arquivo JRS)
Orgulhos  nosso (Arquivo Lu)

Napoleão, grande companheiro! (Arquivo Lu)



                Há muitas décadas, o meu xará Ronaldo Vidal de Araújo deixou Belém do Pará e veio para o Sul. Depois de pouco tempo no Rio de Janeiro, seguiu mais no rumo do sul, com trabalho em São Sebastião. Dali se mudou, e, em Caraguatatuba, conheceu a Isaura com quem se casou. Os filhos vieram, seis ao todo. Depois de se aposentar, começou a ensinar arte em palha de bananeira. Veio a necessidade de continuar os estudos, principalmente porque pressentia ser essa uma exigência se aproximando para poder continuar as oficinas de artesanato. Por intermédio de alguém, soube da nossa escola voltada ao público que, como ele, não conseguiu estudar no tempo normal, quando era mais jovem. Localizada no Massaguaçu, o CEEJA (Centro de Estudos de Jovens e Adultos), nas palavras do Ronaldo, “foi um dos achados mais valiosos na minha vida. Aqui encontrei o carinho de todos, a dedicação e a vontade de ajudar no meu sucesso. Por  isso eu divulgo esta escola pra todo mundo que precisa estudar e terminar o  Ensino Médio”.

      Na última sexta-feira, seis de dezembro, o Ronaldo, prestes a completar setenta e sete anos, concluiu o Ensino Médio. A sua esposa Isaura, durante o empenho do esposo na realização das últimas avaliações, na disciplina de Filosofia, estava apreensiva, mas se aguentou. Nós a ajudamos enquanto o marido dedicado se debruçava e irradiava um ar de vencedor. Por fim, a professora Luciane caprichou na sessão de fotos. Maravilha, mesmo! Quantas emoções! Quanta alegria ao ver o coroamento do nosso trabalho, do grupo que faz essa escola!

sábado, 7 de dezembro de 2019

O PRESÉPIO DA DONA NADIR


Dona Nadir e seu presépio (Arquivo JRS)


           Bem no centro de Ubatuba, na rua Maria Vitória Jean, nesta época do ano um presépio é montado num pequeno quintal, dando muita satisfação, causando admiração nos passantes. O espaço é pequeno mesmo, mas a mensagem é maior do que o mundo. Trata-se da esperança, de acreditar em novos dias, em novos tempos. Natal-nascimento-renascimento a cada ano.

       Dizem que a tradição do presépio nasceu no século XIII, na Itália, com Francisco, o santo da cidade de Assis. Os católicos tradicionais montam seus presépios no começo de dezembro (tempo do Advento) e desmontam no dia de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro) ou no dia dos Santos Reis (6 de janeiro). Dias atrás encontrei nas cercanias do dito local o Manoel conduzindo duas crianças. Elas estavam afoitas: “Vamos logo, vovô. Vamos ver o presépio da dona Nadir”.

         Neste tempo, aguardando o Natal, as festas de final de ano, não tem como deixar de passar sempre pela tal rua para apreciar o cenário preparado com tanta dedicação e carinho. Dona Nadir, a proprietária da casa, natural do município vizinho de São Luiz do Paraitinga, diz que “tem mais de vinte anos que esse pequeno espaço se torna motivo de devoção”. E não cansa de convidar: “Você precisa ver quando anoitece! Que beleza fica com as luzes acesas! Encanta todo mundo! Tem gente que se emociona demais, tira fotografias, me elogia muito. digo que sigo o costume dos meus antigos, dos meus pais. A minha neta diz que logo vai precisar de uma passarela para a gente poder entrar em casa. Recebo muitos elogios, muitos agradecimentos. Só posso dizer que faço isso sempre com muito amor. E aí, nesse pequeno espaço meu, vai permanecer até o dia da festa da Nossa Senhora das Candeias, no começo de fevereiro”.

        A Dona Nadir diariamente embarca no mesmo ônibus que eu, vai trabalhar numa casa na Praia Grande. Segue lutando e nos dando alegria com seu caprichado presépio. Imagina a satisfação dela se aparecesse por lá um grupo de Reisado para cantar:

      “Bem podia te nascido em colchão de ouro fino,
       mas pra dar exemplo ao mundo,
       nasceu pobre o Deus-menino!”.

 BOAS FESTAS, DONA NADIR!
FELIZ NATAL, PESSOAL!

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

NÃO PAGA A PENA!

Tié  piranga ou tié sangue (Arquivo JRS)

Correntes (Arte: Victor Harabura)

            Totonho do Rio Abaixo não pensa direito, faz coisas sem calcular as condições. Do burro velho puxando charrete, degrau por degrau, chegou a condução de carroceria grande. Agora depende disto, vive de cargas pra lá e pra cá, num vai e vem de tudo.  Brinquei com ele, insinuando que estava ganhando muito dinheiro, “lavando a égua”, conforme dizem.   É, é sim. Mas não basta”.

          Foi nessa ocasião que eu disse a ele que cobiça é pecado social. O danado só sacudiu os ombros, sinal de pouco importa. “Ah, que se dane”. Avisar eu avisei. Ele virou os olhos desencontrados e só faltou dizer que se conselho fosse bom não era dado, mas sim vendido.

          Tempos desses, mais de ano acho, perguntei da sua terra, no município vizinho. “Agora ninguém mora lá, Seo Zé. Grande parte dos morros virou mata de eucalipto, o restante tá tomado pela braquiária pra uns poucos bois. Quase todo mundo fez como eu, veio para Ubatuba. Lá é lugar que não cresce não. Aqui sim! Olhei aquilo tudo por lá… Agora também não me dou com trabalho duro”. É, eu sei. Ele pensa que eu não vejo as suas pilantragens e que não escuto das outras tantas que apronta por aí? 

         “O dinheiro move o mundo, Seo Zé. Agora sou crente”. 

        A fé, a religiosidade do povo simples também virou negócio aos oportunistas. Isto escutei: “A minha irmã está como missionária na Espanha, se casou lá. Fala muito bem, tem o dom da palavra. Os filhos são espanhóis. Logo segue para a África do Sul. Está bem de vida, é dona de quatro casas aqui no Brasil”. E pensa que Totonho não cobiça isso de ganhar dinheiro usando a oratória?!? Quando ele me fez tal revelação, eu recomendei que estudasse ao menos uma língua estrangeira, pois não tem como almejar tamanho voo sem antes diminuir o tamanho da ignorância. E ele, que mesmo arregalando os olhos não me convence, deu a seguinte resposta: “Estudar? Eu tenho de estudar? Então não paga a pena alimentar esse sonho!”.

domingo, 1 de dezembro de 2019

MORCEGOS DAS LAPAS, VALEI-NOS

Descanso (Arquivo JRS)
Balaios (Arquivo JRS)



              Era tarde, tardinha, quase serão, quando o tio Dito me convidou: 

          - Vamos até o fim do loteamento, onde foram construídos os chalés. Já estão funcionando

           - E o esgoto, como resolveram?

           - É isso que eu quero que você veja.

         De longe eu avistei, onde começava a nossa vargem, uma espécie de tanque, bem grande, onde revoavam morcegos. 

               - O que é aquilo?

        - É pra onde segue o esgoto dos sobrados, dos chalés. Naquele tipo de tanque enorme, toda tarde ajunta um monte de morcegos. Eles vêm para se alimentar dos pernilongos dali que voam. Imagine só a quantidade de mosquitos que se gera ali. Ainda bem que os morcegos deixam as lapas e rumam para aquele lugar!

            - Mas será que eles dão conta de tudo? 

        - Creio que não, mas já abranda. Imagine só se eles não viessem!

           - E dali o esgoto segue para onde?

          - Ganha a vala, vai pro rio do Boi, se espalha pela vargem toda. É por isso que já não há lambaris, nem bagres, nem mussuns, nem sururus, nem cágados e nenhum dos outros seres que dependiam da água limpa. Faz tempo que eu não encontro  nenhum deles por aqui.

          - E depois?

          - Depois o quê?

          - O esgoto se finda na vargem?

           - Lógico que não! Depois, correndo até onde era a casa do João Firmino, essa porcariada se encontra com o rio do Sertão e vai para o mar.

        - Então é por isso que nem sapinhauá se encontra mais na praia da Maranduba!

           - É! E o que fazer?

sábado, 30 de novembro de 2019

O PAI DA CORUJA

Botões (Arquivo JRS)



        De vez em quando avisto o Bito Madalena, filho de Magdalena, esperando o ônibus. Está sempre bem arrumado, indo para a igreja. Se converteu ao pentecostalismo já idoso, preocupado com a vida depois do findar da vida. Já dizia o saudoso Jeú, do Corcovado: “A gente pensa de verdade no perdão quando pressente a morte mais perto”. Ah! Quantas e tantas já aprontou o estimado Benedito Antunes de Sá!

         Além desses nomes, o nosso personagem também era o Coruja. Por quê? Porque houve um tempo que, galopando ou andando pelo caminho entre a Maranduba e o Saco das Bananas, ele trazia uma coruja empoleirada num dos ombros. “Bicho manso, que se apegou assim ao Ditinho porque foi bem tratado desde filhote”, explicava a saudosa Constantina, sua esposa.

             Numa ocasião, tempo que já vai longe, pousei na casa deles, no morro da Ponta dos Morcegos. Naquele tempo ele abusava da “branquinha mardita”; naquela noite não dormiu em casa. No outro dia, ainda clareando, a Constantina gritou aos meninos: “Vão ver adonde está o pai de vocês”. Imediatamente dois deles saíram correndo, na direção do Morro da Mata Virgem. Não levou meia hora já estavam de volta. “Encontramos o pai naquela badeja, pra cá de onde é a casa do Caetano. O cavalo tava em pé, no meio do caminho; ele tava dormindo no meio do capim melado, com a coruja em cima da barriga”. “E o que fizeram?”. “Deixamos ele lá, ué! Depois que acordar ele vem pra cá”. “Tá bom, assim ele descansa um pouco”. Não demorou muito, no alto do morro despontou a figura em cima do cavalo e a sua coruja junto.
            “Lá vem o Ditinho”.
           “Lá vem o pai da coruja!”.