quinta-feira, 26 de maio de 2022

AS AVES

Jacu na mesa - Arquivo JRS


Havia uma minhoca, mas não se via;
Só sabiá a enxergou
(Porque seus filhotes piavam de fome)
E a puxou num safanão.
Pensei: "Nem de enxada precisa".

No nosso terreiro sombreado
Essas criaturas fazem festa.

Um chão cheiroso,
Uns capins que brotam,
Muitas folhas se decompondo...
Eu apreciando tudo.
"Um pedaço da Mata Atlântica"
Diz de vez em quando a mana Ana.

Vem a gata da vizinhança
Desperta a passarinhada,
Os piados são outros:
Sinal de perigo às aves.

Bato o pé; a gata salta o muro.
Volta à calma, sem muito barulho.
 

sábado, 21 de maio de 2022

ELES CONTINUAM VIVENDO EM NÓS

Gravura do viajante Hans Staden - Arquivo JRS



     No lugar por nome de Bertioga, quase chegando em Santos, era o ponto de combate entre Tupinambá e Tupiniquim, dois dos povos que habitavam o litoral paulista. Assim começo este por estarmos em maio, época em que começa a chegar os cardumes de tainhas que migram da região mais ao sul. Esses peixes eram disputados, constituíam uma valiosa reserva nutricional aos povos originários. Por eles os antigos combatiam. Hoje, somos nós que não vemos a hora de degustar esse precioso prato da nossa cultura. O significado de Bertioga, segundo os entendidos, vem de parati + oca, ou seja, toca, refúgio, morada ou paradeiro das tainhas. Hans Staden foi capturado por ali, perto do forte português que ainda existe na entrada do rio, quando se aventurava em uma caçada nos arredores, em meados do século XVI. Passou um sufoco entre os Tupinambá, mas depois voltou para a Alemanha e escreveu um importante documento a respeito do território que agora ocupamos. Vejamos uma passagem desse relato:


     No dia seguinte, ao cair da tarde, alcançamos a aldeia. Portanto, a viagem de volta tinha durado, ao todo, três dias, completando uma distância de 30  milhas em relação a Bertioga.

     Quando nos aproximamos da aldeia chamada Ubatuba, notei sete cabanas. Bem perto da praia, para onde os barcos foram puxados, as mulheres estavam trabalhando no campo, onde se cultivava mandioca. Muitas mulheres tinham justamente acabado de colher as raízes da planta. Tive de gritar-lhes, na língua delas "Aju ne xe pee remiurama", o que vem a ser a mesma coisa que: "Eu, a sua comida, estou chegando".

     Na nossa chegada vieram todos correndo, jovens e velhos, para ver-me. Os homens, por sua vez, pegaram seus arcos e flechas e foram para as cabanas que ficavam numa pequena colina, deixando-me nas mãos das mulheres. Estas me levaram entre elas, algumas andando em frente, outras atrás de mim, cantando e dançando à minha volta. Tal canto é entoado sempre que um prisioneiro vai servir de alimento.

    Atingimos a caiçara, uma fortificação semelhante a uma cerca de jardim, feita de estacas grossas e longas posicionadas em torno do conjunto de cabanas. É usada para evitar o ataque dos inimigos. No momento da minha chegada à caiçara, todas as mulheres correram juntas e bateram em mim com os punhos, puxando minha barba enquanto diziam: "Xe anama poepika ae!" - "Isto é a minha vingança pelo homem que seus amigos mataram!". Depois conduziram-me a uma cabana, onde tive de me deitar numa rede. As mulheres me espremiam em torno para bater-me e puxar minha barba; também me ameaçavam de ser devorado.

    Enquanto isso, os homens estavam reunidos numa cabana, bebendo ali seu cauim e cantando em honra a seus deuses maracás, que lhes predisseram o meu aprisionamento.

    Ouvi esse canto sendo entoado, mas, por meia hora, nenhum homem veio até onde eu me encontrava, apenas mulheres e crianças.

       O  que eu pretendi com esta postagem? Eu gostaria de, hoje, ao passarmos pelas ruas da cidade e encontrarmos os parentes originários que ocupam as três aldeias no nosso município, recordemos das nossas origens, das heranças indígenas, sobretudo Tupinambá, que cimentaram o nosso ser caiçara. Diga para si mesmo: "Nós somos isto porque eles continuam vivendo em nós". E, com certeza, não foi diferente disso o que aconteceu em outras regiões deste país, de onde não para de chegar gente em busca de melhores oportunidades neste município de Ubatuba. Portanto, nada justifica a gente se posicionar contra as nossas próprias raízes.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

QUAL CHÃO É O NOSSO?

Artistas da cozinha - Arquivo JRS



“As emoções precedem os sentimentos, foram construídas a partir de reações simples que promovem a sobrevida de um organismo e que foram facilmente adotadas pela evolução [...] A sensação de prazer e dor é um componente necessário desse sentimento [...] Espinosa recomendava que lutássemos  contra as emoções negativas com emoções  ainda mais fortes mas positivas, conseguidas por meio  do raciocínio e do esforço intelectual”.

 

     Posto os fragmentos acima de António Damásio, um especialista português  em Neuropsicologia  e Neurobiologia, eu procuro entender alguns comportamentos, sobretudo de rapazes, durante uma palestra proferida por uma advogada, cujo tema era  a violência, suas diferentes classificações e procedimentos jurídicos: alguns dormiam, outros viravam as costas e/ou faziam comentários irrelevantes com alguém que lhes dispensava atenção. Ainda bem que uma maioria prestava atenção! Naquele momento, o descaso de um exemplar me levou ao seguinte pensamento: “Esse moço não é suficientemente educado, mas poderia manter a aparência de possuir educação básica. Ele é um potencial cidadão, só precisa optar por ser de fato”. 


       Certamente que cada um de nós confirma as emoções precedendo os sentimentos. O passo seguinte é a elaboração da (s) ideia (s). Cria-se os conceitos, as palavras que visam solidificar algo como “nossa essência”.  (Gosto do filósofo   Heidegger que diz que "a essência do homem é o cuidado").   Assim, estar atento a uma simples palestra, cuidar para que ela dê certo, mesmo que ocorrida num espaço improvisado, é conhecer, muitas vezes, aspectos que mexerão com nossas emoções, revisarão nossos sentimentos e produzirão novas ideias. Serão estas as forças que derrubarão velhas mentalidades, principalmente as decorrentes do velho patriarcado. Grave! Muito grave ver essas cabeças novas do Ensino Médio abraçando essas velharias tão atrasadas, apoiando o discurso de ódio tão ativo em parte da realidade brasileira. Como afrontar isso? Eu recomendo cultivar mais literatura de qualidade, reduzir o encantamento desmesurado pelas redes sociais, pensar além da própria bolha, atentar mais às causas comunitárias e ambientais, cuidar do outro como você quer ser cuidado etc. Escrevi esta crônica no momento no qual me encontrava aguardando o resultado do exame médico, sob suspeita de covid - e confirmada! A duas cadeiras depois de mim estava uma jovem mãe e seu filhinho por nome de Heitor, talvez com um ano e alguns meses. A mãe, com grande atenção ao celular, se encontrava em adiantada gravidez. A criança, lógico, arteira, escorregava e rolava pelo piso de duvidosa condição de higiene devido a falta de funcionários. Presumi que logo serão duas criaturinhas a se esbaldarem no referido ambiente. Isto tudo aqui descrito são partes da base da nossa cidade constituída por caiçaras, migrantes e seus descendentes. Portanto, todo cuidado é pouco para alcançarmos os melhores níveis de civilidade. Lya Luft assim expressou: "Quem ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país".

quarta-feira, 18 de maio de 2022

A IGNORÂNCIA PEDE PASSAGEM

Eu faço a minha parte - Arquivo JRS

 


      Acabei de chegar do Posto de Saúde do bairro onde moro. A noite passada foi difícil, pois os sintomas de um possível resfriado agravaram. A decisão de ir procurar ajuda médica foi a suspeita de covid. Afinal, convivo a cada dia com, aproximadamente, quinhentas crianças e adolescentes, mais colegas e/ou passageiros que fazem parte do meu trajeto e locais de trabalho. Não tenho o direito de ser irresponsável, colocar tanta gente em risco.


     Quando saiu um decreto liberando o uso de máscaras nas escolas, no dia seguinte a quase totalidade das pessoas abraçou a medida, deixou de se proteger com máscaras. Um aluno do Ensino Médio metido a besta deu de tentar uma ironia comigo, mas levou uma carga para refletir antes de falar besteira: “Você acredita que o vírus vai acatar a lei do governador? Você é daqueles que vive aplaudindo o presidente se omitindo de suas obrigações, dando péssimo exemplo durante toda a pandemia? Você acha que, mediante essas desastrosas e irresponsáveis atitudes políticas, a pandemia acabou? Você é mais um ‘cidadão do bem’ se deliciando no esgoto que aflorou no Brasil?”. Ele apenas disse “nada a ver” e saiu dando uma risada sem graça. Miséria cultural! Deve estar naquela porcentagem de 70% que recebe informações apenas pelas redes sociais e televisão que alienam. Disto para o conhecimento requer esforço. Alcançar a sabedoria então é sonhar demais!


      Eu continuei usando máscara. Ainda bem! Imagine se, tendo trabalhado e convivendo com esse tanto de gente por estes dias eu não estivesse de máscara! Meus perdigotos (gotículas de salivas contaminadas) ganhariam os canais de respiração deles, principalmente porque as posturas "ignorantes", sem educação de alguns exigem que eu eleve o tom da fala.  Sempre usei máscara preocupado em não colaborar com a contaminação. Eu acredito que elas reduzem os riscos!”.


     Vivendo uma pandemia, é bom que cada indivíduo esteja convicto que é um potencial receptor e emissor de vírus, bactérias etc. Então...não deixe a ignorância pedir passagem. Que ela não tome os espaços como o cisco espalhado pelo vendaval. Ah! E se cuide!

terça-feira, 17 de maio de 2022

DESCOMPASSO CORDIAL


Vem se abrindo toda toda - Arquivo JRS

Vem o dia junto com a poesia do mano Mingo batendo no coração, resultando num...


 DESCOMPASSO CORDIAL


 - Tio Maneco Mesquita, rabequista popular,

qual é o instrumento mais difícil de afinar?

- Ora, é o ribombar do tambor

que bate no peito

de quem está perdido de amor!

domingo, 15 de maio de 2022

FESTAR É CELEBRAR E RESISTIR

Eu e Lucas - Arquivo JRS

O cacique e as professoras - Arquivo JRS

Ilha do Prumirim vista da aldeia - Arquivo JRS



      As lideranças jovens da aldeia Boa Vista estão de parabéns. As lideranças antigas mais ainda por continuarem na tradição do protagonismo juvenil! Este foi o meu primeiro pensamento ao ver crianças e jovens se movimentando para o sucesso de mais uma festa na aldeia. Logo depois foi chegando a geração mais velha trazendo produtos artesanais e outros. 


     Eu e minha filha aguardávamos ansiosamente a chegada do dia de sábado para podermos ir até o Prumirim e rever o povo querido da aldeia do grupo guarani mbya. Embarcamos no ônibus da 7:50 h, na direção norte do município. Depois, subindo um trajeto sob as árvores, chegamos no território indígena por volta das 9:30 h. Maravilha ver aquele espaço, escutar aquele rio de água cristalina e ver a movimentação do “grupo do Altino”.


   Altino é pai do atual cacique Marcos Tupã. Eu o conheço desde quando chegou. Me lembro bem de quando o reduzido grupo ainda ia aos sábados à noite na Praça da Matriz, na década de 1970, para vender seus produtos. Meu tio Nelson dizia assim: “Aquele que está sempre em pé, como se vigiasse os demais, se chama Altino. Ele é o capitão da aldeia que se localiza no alto do Prumirim, por onde agora está passando a estrada que vai ligar a nossa cidade a Paraty”.


   A abertura do evento coube ao jovem cacique e à Luiza acolhendo com maior prazer a todos. A sensação era de que estávamos em casa. A fala do Marcos logo nos relembrou que: “É o quarto ano desse desgoverno que vem afetando muito os povos indígenas. Estamos perdendo nossos direitos. Reclamamos no nosso canto, mas precisamos resistir, pois somos povos originários, nos compomos nas comunidades tradicionais aqui em Ubatuba. No município, agora brigamos pelo Conselho das Comunidades Tradicionais. Esperamos que o calendário cultural da nossa aldeia seja contemplado no calendário cultural da cidade. Também queremos ter um espaço no centro da cidade para expor os nossos produtos, nos dar a conhecer e receber o respeito que merecemos.  Que a prefeitura nos garanta isso. Vocês são bem-vindos não só para nos prestigiar, mas, sobretudo, para se somar às nossas lutas. Agora, além da perseguição física, há a perseguição aos nossos direitos lá no Congresso Nacional, onde iremos, com os demais parentes, em julho, pressionar contra o projeto maléfico do marco temporal”.


  Logo após a fala das duas jovens lideranças, teve início a programação do dia. Grande satisfação!


Deseja ajudar? Eis o apelo oficial da aldeia:

Nós, povos indígenas Mbya Guarani da TI Boa Vista – Ubatuba – SP, lideranças cacique Marcos Tupã, Luiza, Ivanildes e Patrícia, estamos nos mobilizando para ir a Brasília a fim de acompanhar o julgamento de repercussão geral do Marco Temporal no STF, a  partir de 23/06/2022. Toda ajuda para essa viagem é bem-vinda! Marcos dos Santos – Tupã (Cacique) – BB: Ag. 2748-0  - C/C 26930-1 – CPF/PIX: 133.337.838-60 – Contato: (12) 99661-2574

https://www.instagram.com/aldeiaboavista/

sexta-feira, 13 de maio de 2022

REFLEXOS DO PATRIARCADO


Juventude de outro tempo (Arquivo JRS)

      

       Eu vou partir de minha própria experiência para abordar um assunto que parece banal, mas não é. Há trinta anos tenho acompanhado as evoluções dos/das adolescentes. Posso dizer que as meninas me alegram mais porque têm demonstrado que estão levando mais a sério os estudos. Prova maior disso é quando se indica os destaques discentes a cada bimestre. Isto é evolução! Mas quero retransmitir o que dizem alguns estudiosos do motivo principal dessa apatia generalizada dos meninos: é reflexo do machismo, do patriarcado que marca a nossa sociedade baseada nos princípios dos pouquíssimos homens brancos e ricos. Como assim?

      Por nascerem machos, os meninos são ideologicamente convictos de que são superiores. Portanto, já estão em vantagem em relação às meninas. Assim, não estudam como deveriam, não refletem de forma mais apurada, abraçam as “verdades” que lhe são convenientes, seguem alimentando o velho patriarcado com suas mazelas. Estas “verdades”, quase sempre satisfatórias ao macho, são reforçadas na atualidade tecnológica pelos algoritmos e realimentam os aspectos reacionários que compõem o patriarcado. Ou seja, essa moçada, cabeças novas, abraçam na maior fé/fanatismo velhas mentalidades, certamente até nem percebendo a incoerência ao cantar com Zeca Baleiro: "Você, por sua vez, se orgulhando da bravata/ de ser apoiador de um imbecil sociopata/ Requenguela, mequetrefe.../ Cada um tem a cultura que merece". Assim, deixam de evoluir e/ou alimentam uma sociedade de ódio às
minorias em geral. Pior: é notório muitos pobres perpetuando essa situação lá dos primórdios, essa miséria cultural. Comparo estes a um supliciado aplaudindo seu algoz. Agora ilustrarei este papo com um exemplo bem caiçara, da década de 1950, quando eu nem estava nos planos da minha mãe e do meu pai. Como foi que eu soube? Minha tia Tereza anunciou: “O que vou contar agora, menino, aconteceu há muito tempo, lá para as bandas de onde nasceu a vossa mãe. O ........, um homem da roça e do mar como todo mundo daquele tempo, havia se casado com a finada Maria. Depois de 15 dias, ele compareceu diante das autoridades para anular o casamento. Alegava que ela não era mais virgem. Ele, na lei, tinha o direito. E foi atendido! A coitada da mulher retornou envergonhada para a casa dos pais. Ele, não demorou muito, já estava de casamento marcada com outra caiçara”.

       Essa  história, que sempre achei injusta, permaneceu na minha memória. Imagine só que, depois de duas semanas dormindo com a esposa, ele resolveu apelar e anular o matrimônio. Que coisa, né? Onde ele se apoiava? No Código Civil de 1916 que considerava a mulher casada “civilmente incapaz”, a exemplo de crianças, índios
e alienados. Ela não podia trabalhar fora sem autorização do marido, aceitar heranças, administrar bens, votar ou se envolver em política. O homem podia anular o casamento se ela – mulher – não fosse virgem. Também as filhas podiam ser deserdadas caso fossem “desonestas”. Oh, céus! Pois é! E sabe quando ela lei caiu? Somente em 2002 o Código Civil retira a perda da virgindade como
justificativa para anulação do casamento. Ou seja, depois de 86 anos tal lei é banida. Se fosse hoje, com o governante e seus apoiadores que aí estão, ela continuaria existindo. Sabe por quê? Porque prevalece o machismo e outras heranças do patriarcado. Então já sentiu o quanto é desanimador ver grande parte da juventude perpetuando essas velhas mentalidades?  Cá entre nós: aquele pobre caiçara apelou a uma lei para repudiar a pobre companheira. Não sei dizer o quanto de caiçaras e de migrantes que acham certo tal princípio surgido, de acordo com a Sociologia, há 12 mil anos, quando o homo sapiens deixou de ser nômade e se fixou próximos dos rios e fundou as primeiras cidades. Só tenho uma certeza: essa gente que continua nessa mentalidade arcaica está na porcentagem de apoiadores
desse governo fascista. Logo, estudar a sério, refletir e tomar partido de um pensamento que inclua mais gente em vez de excluir é a melhor atitude.

Em tempo: o dito caiçara, depois que fez aquilo com a companheira, “se aproveitou” de umas moças do lugar. Ao menos dois filhos estão por aí como “prova do crime”. E depois? Ah! Ele se converteu a uma religião fundada por Louis Francescon, um ítalo-americano, se
tornou um “homem honrado”, e, se não estou enganado, morreu como um respeitável ancião no seu grupo religioso. Agora me pergunto: como aquele sujeito isolado sabia da existência dessa lei  e das condições para repudiar a mulher?

 

segunda-feira, 9 de maio de 2022

DÚVIDA SIDERAL

 

Nas grimpas da Mantiqueira - Arquivo JRS


O mano Mingo está a bilhões de anos-luz desde o tempo em que olhávamos para o céu ainda pequenos, quando não havia luz alguma a atrapalhar o espetáculo de uma noite iluminada em infinitos pontos, com suas estrelas cadentes e luzes estranhas aparecendo de vez em quando para nos encher de mistérios.



Poema da dúvida sideral

 

Este que vos escreve não sabe de nada, 

só matuta no universo de 14 bilhões de anos old, e entrevê

o que as lentes do telescópio espacial Hubble permitem ver -

formações estelares a 13 bilhões de anos-luz de distância,

e ri baixinho enquanto vai girando no carrossel da Via-Láctea:

na cabeça dos cientistas falta um parafuso,

como viemos parar tão longe

se a velocidade da luz é impossível?


sexta-feira, 6 de maio de 2022

DESARRANJO NA CASA

Comemorando o carnaval em outro tempo - Arquivo JRS

Quarto dia de lixo num ponto de ônibus - Arquivo JRS


     Eu, como de costume, estava bem cedo, num ponto de ônibus no centro da cidade. O dia não estava claro de vez. Um rapaz se aproxima e começa a falar: “O senhor poderia me arranjar R$ 4,50 para eu ir embora? Eu moro na Almada e preciso ir para casa”. Eu escutei esta primeira parte e permaneci em silêncio à espera, talvez, de mais "justificativas" . Outra pessoa estava ali perto, tal como eu, esperando o transporte para ir trabalhar. Em seguida o rapaz me perguntou: “O senhor é daqui mesmo?”. Eu respondi: “Eu moro no Ipiranguinha. Não tenho dinheiro, pois uso passe da empresa”. Mediante a minha resposta ele se retirou, foi seguindo em frente. O senhor que também estava atento, esperando para embarcar, comentou: “Vez ou outra esse rapaz está por aí. Se ele é da Almada, o que passa fazendo toda a noite por aqui, na cidade? Aí tem coisa”. Nisso vem chegando um casal jovem, discretamente se acomoda junto à parede. Pelo jeito, passaram a noite na balada, tiveram uma noitada agitada. Assim que a outra pessoa embarcou para o seu destino, ficamos a sós: eu e o casal. Então o rapaz se aproximou de mim e explicou: “Sabe, moço, nós somos do Puruba, mas não temos dinheiro para voltar. Você não poderia dar uma ajuda?”. Novamente eu disse que tinha apenas a carteira de passe. Em seguida veio o veículo com destino ao bairro onde eu iria trabalhar. Naquele dia, por diversos momentos, fiquei pensando nesse desarranjo da cidade, do pessoal que se dizia ser de comunidades do lado norte do município onde, até poucos anos atrás, não tinha nem acesso rodoviário; talvez gente ainda dos estimados Dito Fernandes, Tio Dico, Tia Baía, Agrício, Mané Grande e tanta gente antiga deste chão caiçara. Vai saber!

   Enquanto as regiões central e sul já começavam a febre do turismo, das construções de "casas ricas", essas pessoas do norte viviam quase que isolados, sem contato com atividades noturnas (que aconteciam no centro da cidade) na década de 1970. Seus momentos de lazer e suas interações aconteciam por lá mesmo, sobretudo nas festividades religiosas e nas funções (bailes). Agora, caso eles não tenham mentido, vislumbrei sinais de degradação, precisando pedir uma ajuda para voltarem às suas casas após uma noite se divertindo. E tomara que tenham se divertido mesmo! Pode ser que sejam migrantes ou descendentes de migrantes, mas também há possibilidade que sejam caiçaras, filhos ou netos de caiçaras. Em qualquer das alternativas, uma coisa me parece evidente: um espectro miserável se alastra, contagia o meu povo, degenera a "Casa de Putifar". Há uma teia de mecanismos que precisa ser entendida e alterada para evitar a ruína da cultura caiçara e das demais culturas que vão se compondo com ela. Tudo isto passa pela política? Sim, tudo passa pela política! Por uma ideologia que seja mais inclusiva, que invista em educação de qualidade e não persiga os mais humildes, as minorias exploradas há mais de 500 anos neste país! Cadê as oportunidades a esse pessoal?

quarta-feira, 4 de maio de 2022

A DONA DA CASA DE PUTIFAR

   

Três dias de lixo num ponto de ônibus - Arquivo JRS

    Putifar  era  um  general  importante  na  corte  egípcia,  no tempo antigo,  na época  em que  o meu xará foi levado para o Egito. Diz o texto do livro do Gênesis  que  ele era eunuco e foi quem comprou o filho de Jacó como escravo. Precisa lembrar que o José fora entregue pelos irmãos por ciúmes?

    A saudosa Tia Maria Mesquita, caiçara da praia da Fortaleza, contou para nós uma história estranha: “A mulher de Potifar sofria porque o marido era eunuco, por isso cobiçou namorar o escravo José. que ele era santo, não quis cometer nenhum delito com aquela senhora. Ela então mentiu, levando Potifar a encerrar o inocente na prisão, onde o coitado se revelou como alguém especialista em decifrar sonhos e alcançou as graças do faraó, vindo a ocupar um alto cargo no Egito.  Depois disso, o general se tornou símbolo de marido traído, e, sua mulher, de adúltera”.   Na minha infância eu não captava todo o sentido dos termos, mas entendi o motivo da queda da casa de Putifar: o desarranjo doméstico.

   Desarranjo doméstico nos remete a lar desequilibrado, casa se desmoronando. Andando por alguns lugares da nossa cidade, não consigo deixar de relacionar o desarranjo da casa do personagem egípcio com algumas anomalias na nossa realidade próxima, no nosso país. Buracos pelas vias, lixos acumulados em ponto de ônibus ou ocupando locais impróprios, perseguição aos mais frágeis na sociedade, educação/educadores relegados a quase nenhuma importância, Bancada da Morte alcançando sucesso a favor dos agrotóxicos, do genocídio indígena, da privatização das praias e costeiras etc. são sinais de desequilíbrio na casa.  Mas a pouca consideração dispensada ao conjunto que move a Educação no município e pelo país afora é o que mais me angustia. Exemplo: “O departamento jurídico estabeleceu que o professor readaptado [quem passou a uma outra função por motivos de saúde] não deve ter os mesmos direitos de quem está na ativa, na sala de aula”. A Prefeita desta Ubatuba não é professora? A Secretaria da Educação desta cidade não é professora? Ah! Deve ser mentira essa falta de consideração e mais esse ataque aos direitos trabalhistas! Se for verdade, danou-se a casa de Potifar, o eunuco do faraó.

   Eunuco do faraó porque eunuco do genocida. Eunuco do genocida...eunuco do genocida...eunuco do genocida...eunuco do genocida...