quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Que venham os turistas!

                Em meados da década de 1970, a Praça da Matriz (da Exaltação da Santa Cruz, de Ubatuba) era o ponto principal da cidade, onde a juventude se encontrava, os namoricos aconteciam e articulações políticas se teciam.
                Importantes encontros e reencontros faziam a gente buscar aquela praça. Algo semelhante à maioria das pessoas de hoje que é viciada nas interações virtuais. Também é dessa época que vi de perto o Mazzaropi filmando a Banda das Velhas Virgens.
                Em certa ocasião, depois de almoço, tendo resolvido uma questão trabalhista no escritório da Edna Marques, na avenida Iperoig, onde está atualmente a papelaria Marques, avistei o seo Filhinho num momento bem tranquilo no banco da praça olhando para o coreto recém-pintado. Puxei conversa sobre um monte de coisas. Foi quando eu percebi o que mais preocupava o farmacêutico: a questão do turismo e a onda de loteamentos e construções que punha a cidade de prontidão, receosa. Foi quando ele me explicou que tudo começou com uma série de reportagens feitas pelo jornalista Willy Aurelli, no final da década de 1920.
                De acordo com o Filhinho, o jornalista era um jovem destemido e idealista que veio para a cidade com a finalidade de fazer uma matéria a respeito do Instituto Correcional da Ilha Anchieta, de onde saíram as primeiras denúncias escritas sobre as condições reais dos detentos ali reclusos. “Ele se encantou pelas belezas naturais da nossa Ubatuba!”. Depois de retornar à capital, o mesmo publicou uma série de matérias expondo a cidade para o mundo, salientando as possibilidades turísticas. Essa foi a primeira vez que se apresentou o turismo como alternativa econômica, para as autoridades políticas pensarem nisso. Finalizando a prosa naquele tempo não tão distante, eis o comentário do nosso personagem: “Foi graças aos belos textos exaltando o nosso lugar que a antiga estrada imperial (Serra para Taubaté) ganhou a feição de rodovia no começa da década de 1930!”

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Assombrado



Tio Antônio estava casado havia pouco tempo com a tia Conceição quando isso aconteceu. Em uma noite escura como tantas, deixou sua casa no Sertão da Quina para   pescar ( passar picaré na praia). Afinal, era tempo de tainha! Na volta, já de madrugada, parou numa moitinha na beira da estrada por motivo óbvio. De onde estava agachado viu passando uma luz que julgou ser o Zeca Pedro com sua lanterna. Então gritou: “Espere por mim, Zeca Pedro, que eu te acompanho!”. No mesmo instante a luz parou e Tio Antônio, ao se aproximar um pouco, viu que não era o seu conhecido e sim uma luz esbranquiçada e informe que se transformou num vulto alto como um coqueiro que, parada, lhe impedia a passagem assustadoramente.
Tentando esconder o medo e manter a tranquilidade, e sem entender nada daquilo, disse num tom desafiador: “Se não me deixa passar não tem problema, conheço outro caminho”. E assim se foi, pegando um desvio, até que viu a luz aparecer novamente à sua frente. O que aconteceu desse momento em diante tio Antônio não soube explicar, julgava que havia perdido os sentidos pois não se lembrava de nada mais. Somente no dia seguinte foi que acordou na casa do velho João Firmino, no Sapê, distante do ocorrido mais ou menos um quilômetro.
Segundo o João Firmino, tio Antônio bateu em sua porta desesperado, gritando pela esposa, Conceição. Ao abrir a porta o velho percebeu que ele estava “assombrado”, então apagou a luz da lamparina (pois era assim que se agia quando alguém estava assombrado) e o colocou para dormir.
Desse modo o tio Antônio testemunhava a existência de assombrações.

sábado, 27 de agosto de 2011

É do povo!

                 Nesta semana comemoramos a Semana do Folclore. Quem se lembrou disso?
                É necessário ter uma ocasião para pensar e festejar tudo aquilo que passou a ser parte do folclore, da cultura popular. Afinal, tem uma sabedoria e/ou uma resistência que enfrenta o tempo, que nós usamos em diversas ocasiões como recurso imprescindível, mas por preconceito não queremos admitir como cultura popular, como saber preservado pelos mais pobres.
                É folclórico aquilo que só é praticado por uma minoria ou sobrevive na saudade de forma decorativa, ou seja, precisamos enxergar de vez em quando para ativar nossas reminiscências. Tudo aquilo a que recorremos de vez em quando, que “deixou de ser essencial” na sociedade consumista e individualista atual, classificamos como folclore.
                Eu prefiro, em muitas ocasiões, recorrer ao termo de cultura popular para mostrar uma sutil diferença entre as coisas que quase não sentimos necessidade e as coisas que, regularmente, apelamos como útil, que nos satisfazem. Vejamos as duas situações:
                1- É folclórico as técnicas de caçadas que supriam a mesa dos pobres caiçaras. Podem estar detalhadas em museus para que as gerações posteriores conheçam a criatividade que nasce da necessidade. Na minha varanda, só para ilustrar, guardo com muito carinho o bodoque confeccionado pelo amigo Irineu. É de guatambu. Quem já viu um bodoque ou conhece o guatambu, a sua enigmática/curiosa semente?
                Na confecção do bodoque está explícita a sabedoria prática dos antigos caçadores: o recurso do arco para lançar flechas sofreu uma adequação para atirar pedras. Agora não precisamos mais disso. O exemplar que tenho em casa é somente como recordação de um amigo e dos tantos bons bodoqueiros (Mané Gaspar, Tião Armiro, Joaquim Sirvino,  Janguinho do Morro e outros) que pude testemunhar na minha infância. Também o disponho aos meus filhos e visitantes para pratica de arremessos com o intuito de sentirem o quanto é difícil ser habilidoso com tal instrumento. (Muitos já arroxearam a unha!).
                2- Digo que é cultura popular aquilo que estou sempre buscando para uma solução imediata. Exemplos: Qual mato usar para aliviar essa dor?  O que vem depois de um sudoeste de três dias? Também pode ser sempre desafiante, mesmo ninguém sabendo de que tempo  é. O que seria a adivinha proposta pela minha vó Eugênia?
                “Ele morre queimando, ela morre cantando”.
                Ou essa outra:
                “São três irmãos: o primeiro já morreu; o segundo vive conosco e o terceiro não nasceu”.
                Quando a gente queria resposta, a sabida vovó respondia:
                “Use a cabeça para não enferrujar!”.
                É isso! Viva o saber com sabor que vem dos antigos, que nos supre nos dias de hoje! Viva o que chegou até nós graças a vontade-necessidade do povo!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Caiçaras versus pirangueiros e outros

De acordo com o caiçara Licínio Barreto, o primeiro questionamento cultural-étnico local (de definição  ao ser caiçara) aconteceu na metade do século XX, quando turistas do Vale do Paraíba também se autodenominaram caiçaras. Os ubatubanos (outra denominação dos nativos de Ubatuba) daquele tempo, na reação imediata daqueles que não queriam ter as características de cobiçosos, individualistas e sovinas (pechincheiros), deram-lhes a denominação de pirangueiros. Portanto, pirangueiro passou a ser  de modo genérico todo o pessoal do Vale do Paraíba. Desse tempo é Lycurgo, Bernardino Querido, Gebara, Sislas, Masset e outros loteadores da antiga sesmaria, origem da Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, doada nos primórdios a Jordão Homem da Costa.
Depois dos pirangueiros, chegaram os tubarões: turistas ricos, sobretudo industriais e grandes comerciantes paulistanos; alguns eram estrangeiros. A esses interessavam apenas as áreas de jundu, próximo dos ranchos de canoas dos pescadores. Entre abricoeiros, pitangueiras e tantas outras plantas, surgiram as casas de tijolos chiques. As mulheres caiçaras começaram a ganhar autonomia financeira como empregadas domésticas. Após essa leva veio a juventude hippie adorando o modo de vida caiçara. Muitos deles se acaiçararam de verdade e contribuíram com reflexões de autoestima dos próprios caiçaras. Desta “juventude transviada” também saíram pesquisas, teses sociológicas e antropológicas: bases científicas e legais para resistência e reorganização do espaço compreendendo serra, terra e mar deste município chamado Ubatuba. É a partir daí que uma geração de caiçaras se forma tendo novos desafios: produzir e resgatar as condições de uma minoria da sociedade brasileira; se orgulhar e defender a beleza de um pedaço/retalho dessa colcha multicultural que nos caracteriza como brasileiros.
Enfim, o termo caiçara (proveniente do cercado indígena) se enquadrou na limitação natural do relevo (serra de um lado, mar do outro) e se fez cultura nos séculos de história. Escrevi isso porque rondam por aí os espíritos pirangueiros, dos tubarões, da massificação cultural que impede muita gente de ver as incoerências entre se dizer caiçara e ser caiçara. A única certeza a esse respeito: muitos agora são ubatubenses.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sou caiçara!


Não é incomum encontrar pessoas dizendo orgulhosamente: sou caiçara! Então pergunto nessas ocasiões:
- Você nasceu aqui? Os seus pais e avós são deste lugar?
Digo isso porque, por enquanto, não dá para afirmar que todos os nascidos aqui (em Ubatuba) são caiçaras. São ubatubenses se aqui têm seus registros de nascimento. Ao contrário, quando aqui moram há várias gerações, desde o tempo quando a sobrevivência dependia, principalmente, dos recursos naturais, dos hábitos e costumes herdados dos primeiros habitantes, não há como negar que são caiçaras.
Tem mais! É caiçara:
a) Quem sente necessidade de hábitos e costumes herdados de seus pais e avós;
b) Quem reproduz os saberes que vêm de outros tempos;
c) Quem se preocupa com um ambiente equilibrado, capaz de se sustentar e promover a fraternidade entre os seus ocupantes;
d) Quem não se conforma com as afrontas ambientais em nome da cobiça e do descaso;
e) Quem se empenha em recuperar as soluções culturais para recriar o espaço;
f) Quem não se envergonha em recuperar os costumes, sonhos e história deste lugar, dessa região caiçara (a faixa litorânea desde o sul fluminense até o norte paranaense).
Depois disso... Quem não é caiçara pode muito bem se acaiçarar, crescer nesse estado de espírito e de vivência que só é possível porque existem condições ambientais e culturais.

domingo, 21 de agosto de 2011

Belarmino

                Pela realidade caiçara de Ubatuba passa um mundo de gente: alguns deixam saudades; outros já vão tarde.
                Belíssimas obras já foram produzidas em agradecimento pela convivência com essa gente do lugar e com o próprio lugar. Nesse momento me vem à lembrança tantas prosas e poesias, alguns livros, as telas de Benjamin, os azulejos de Cirineu, as esculturas de Pio, Jacob, Da Motta e outros que se contagiaram pela nossa cultura e pela terra.
                Na semana passada, do amigo-professor Emerson, lembrando-me do saudoso caiçara Belarmino do Puruba, o patrono da escola do lugar, recebi a seguinte pérola:

                Belarmino

                Tantas auroras que fizeram parte
                Da minha vida... E quantos parceiros,
                Quantos alunos... Par de anos dessa arte
                Em se traçar horizontes inteiros...

                Dias, meses e anos que deixarão
                Em mim saudades; do primeiro dia,
                De tanta aula; tentar fazer paixão.
                Do que escolhi como ofício. Sabia.

                De tal presente-possibilidade
                Da semente não brotar, ou de não
                Encontrar terra fértil... Ansiedade

                Ingênua! O que realmente importa, então
                É ser amigo leal, ter verdade,
                Habitar na mente e no coração!

                                                               Um beijo saudoso!
                                                                             Do amigo Emerson

               

sábado, 20 de agosto de 2011

Boi-tatá II


Segundo os índios que aqui viveram, boi-tatá era  uma cobra de fogo que surgia no mar. A descrição de Leovigildo Félix lembra a imagem sugerida pelos índios:
“Naquele tempo a praia do Pulso, dos meus avós maternos, era o nosso principal lugar de brincadeiras. Num final de dia, depois do serão, eu, o Antônio, o Ditinho Ricardo, o Pedro Cesário e outros meninos mais velhos fizemos uma fogueira na areia. Os mais velhos falavam que o boi-tatá não gostava de fogo, mas nós não estávamos nem aí para isso. Estávamos nos divertindo quando vimos surgir uma luzinha lá para os lados da Praia Grande do Bonete (a quilômetros de distância). E começamos com a provocação, gritando: 'Lá está um boi-tatá, se há de prestar que venha cá'. Enquanto isso a molecada batia tição contra tição, pulava na areia e fazia a maior farra. Aí nós vimos aquele fogo se aproximando por cima do mar. Era vermelho-alaranjado, girava com violência espalhando faíscas e deixando um rastro de fogo atrás de si, como um cometa. De repente já estava no morro do Pulso, na costeira. Nessa hora foi uma correria só: a criançada disparou em desespero, buscando suas casas. Nunca mais ninguém pensou em repetir isso.”
A caiçarada diz que o boi-tatá foi sumindo com a modernidade, a luz elétrica, o aumento da população no litoral. Mas muita gente ainda hoje tem viva a lembrança do medo que passou ao ver, em tantas ocasiões, aquela misteriosa luz sobre o mar.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Viajando de um modo especial

                Andei por diferentes regiões, conheci muitas formas originais de locomoção, mas nenhuma delas me comove tanto como a canoa caiçara! Ela é bonita, de uma harmonia inigualável, bem característica do nosso litoral. Deixando a modéstia de lado, posso afirmar que a canoa do litoral norte paulista é a mais bonita de todas.
                Os caiçaras herdaram dos tupinambás a tradição da canoa. Foi Hans Staden quem primeiro observou, em 1555, sobre a arte de tirar da mata as perfeitas embarcações. Eis o relato do alemão:
                “Na terra deles há um determinado tipo de árvore a que dão o nome de igaibira. Eles descascam a casca dessa árvore de cima para baixo, num único pedaço. Para consegui-la inteira, fazem uma armação extra em torno da árvore. Transportam essa casca das montanhas até a beira do mar, onde ela é aquecida sobre o fogo e então dobrada para cima, tanto na parte de trás quanto na da frente. Antes disso, amarram madeiras no meio para que não se distenda. É dessa maneira que fabricam barcos, nos quais até trinta homens podem ir em expedições de guerra. A casca é da grossura de um polegar, tendo mais ou menos quatro pés de largura e quarenta pés de comprimento, algumas ainda mais longas, outras mais curtas. Com tais barcos, eles viajam o quanto quiserem, remando depressa. Se o mar está agitado,  arrastam os barcos para a terra até que o tempo melhore novamente. Não ousam afastar-se mais de duas milhas no mar, mas navegam trechos muito grandes ao longo da costa”.
                Foi a miscigenação, aliada à técnica e aos instrumentos trazidos pelos portugueses (machado, enxó, cipilho, formão goiva etc.), que permitiu um aperfeiçoamento das embarcações e possibilitou as aventuras marítimas dos pobres. Ela (canoa) sempre providenciou o sustento aos caiçaras. “É preciso ter uma canoa e uma casa de telha”, dizia a tia Maria (do tio Genésio) referindo-se às condições, por volta de 1930, para um casamento com um mínimo de segurança.
                A necessidade é a mãe da criatividade. Este foi o princípio que despertou tantos fazedores de canoas, dentre eles o meu pai, nas  tantas praias de Ubatuba. Muitos deles já morreram, mas suas fabulosas canoas continuam nos encantando, são testemunhas da perfeição estética que se alcançou em séculos de história.
                É isso aí!
                E viva a Mata Atlântica que sempre forneceu as grossas árvores para serem escavadas, transformadas em invejáveis canoas para serem manejadas por gerações de caiçaras!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A casa da tia Quinhinha

Sempre que precisávamos de uma vara de pesca, recorríamos ao bambuzal que ficava no pé do morro, perto da casa da Tia Quinhinha, no Perequê-Mirim. Obrigatoriamente tínhamos que passar pela “porta da cozinha” dela, pelo seu terreiro. Era quando parávamos para apreciar algum passarinho que estava por ali engaiolado. Ela dizia assim: “Isso é coisa do Tacílio, meu filho!”.
Nunca a Tia Quininha deixava alguém sair sem tomar um café com beiju. E assim, na cozinha da gostosa casa de pau-a-pique nos acomodávamos em torno de uma chaleira de café e de uma cuia grande com beiju. Também era comum ter piché e raízes cozidas (inhame, cará, mandioca...). Era nessas ocasiões que eu me encantava mais pela casa que sempre me despertava para alguma coisa. Descrevo-a agora, mas sei que o maior esforço do leitor não captará a beleza acolhedora desse lugar da minha infância:
A casa por fora era somente embarreada, tendo uma barra lisa cinza até a altura de um metro por toda a sua volta, mas por dentro estava toda rebocada com argila branca, tirada do rio do Licínio que não era tão longe. A sala era assoalhada, onde ficava um simples altar (o oratório). Nos dois quartos da casa ficavam as camas-tarimba.  Explico: madeiras em forquilhas eram fincadas na terra e recebiam a estrutura em juréu (uma plataforma de paus roliços) que era forrada por esteiras. Era onde se acomodavam os caiçaras de antigamente. Que sono! O curto corredor tinha imagens coloridas, feitas pelo jovem Otacílio. Eu nunca soube entendê-las, mas eram bonitas. Eram riscadas de carvão na brancura da argila, pintadas com amarelo do cipó chumbo, rosa da maravilha, roxo da pixirica, vermelho da begônia e tantos tons de verde que até não dava pra contar.
Para encerrar: eu ficava tão maravilhado com a casa e com a bondade da dona da casa que teve ocasião até de esquecer de ir ao bambuzal, de cortar vara.

domingo, 14 de agosto de 2011

Essa caiçarada entre tantos!

                Hoje faço questão de publicar algumas das fotografias dessa caiçarada e de outros amigos que me inspiraram a escrever nesses poucos meses do blog. Deste eu também sou pai! É pena que a maior parte das imagens está na memória, em outros tempos.  Além dos meus registros fotográficos, também utilizei outras fontes que já citei. Mesmo assim, no final faço as devidas referências, inclusive de outras fontes que certamente recorrerei mais vezes.


Banco de imagens:
 Documentários: 1- Vento Contra (1976)
                                 2- Trindadeiros: trinta anos depois (2010)
                                 3- Festa do camarão (2004)
                                 4- Viagens da Maria Eugênia
                                 5- Paint do Estevan
                                 6- Imagens de muros e outros espaços públicos

sábado, 13 de agosto de 2011

A casa de pau-a-pique

                Todos sabem que num relacionamento perfeito ninguém sai infeliz. Assim é com os bichos; assim é com os homens e as coisas. Ninguém também é ignorante a ponto de dizer que não precisa de nada e nem de ninguém para viver. Porém, com o progresso, chegou outra mentalidade: a de levar vantagem sem se importar com a situação do outro e das coisas, incluindo a natureza. Assim começa a competição danosa, o desrespeito e as desavenças. E o homem vai se afastando de uma sabedoria que se deu numa simbiose natural, espontânea. Ou melhor: vai perdendo a paz.
                A partir desta linha de pensamento eu procuro proporcionar, sobretudo aos mais jovens, um contato com o conhecimento de nossos antepassados, da cultura caiçara (da sua formação e continuidade). Creio, atualmente, que a escola é o caldeirão que recebe os ingredientes de tamanha vitalidade, mas é preciso evidenciá-los.
                Hoje escrevo sobre a casa de pau-a-pique: a casa dos antigos caiçaras.
                Quem já teve a oportunidade de ver uma casa de pau-a-pique, entender a sua montagem, perceber que é totalmente ecológica? Ela leva uma sugestão prática, alternativa para a construção civil. Quem já fez um esforço para sentir o cheiro da madeira, do bambu, do cipó, do sapê e do barro?
                A lição principal dos tempos das casas de pau-a-pique ainda precisa ser digerida por todos: o homem se dá à natureza (material) ao mesmo tempo e na mesma medida que esta se dá ao homem, sem jamais ser uma relação danosa, prejudicial, infeliz. Nisso me recordei de tantos momentos que já vivi, dos muitos pitirões (mutirões), das falas que jamais deixaram de ecoar em mim:
                Tá toda envarada. A jiçara veio do Morro da Anta, bambu é do Costão. Tudo devezado e cortado na lua certa. Jacatirão, tarumã, massaranduba... Foi tudo labrado. A timbopeva e o imbé foi cochado, tá cherando. A cobertura é arte do Bito Neve, do Girdo  e do Tonico. Vai aturá até que tudo se acabe. Manhã bem cedo chega um mundaréu de gente pro pitirão. A comidoria e a bebida já tá garantida pra adespois do embarreamento. Notra semana é a veiz da casa do Lorenço da Ilha que veio pra terra; se cansô de vivê no Mar Virado”.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Príncipe das Astúrias

Fragata - Arquivo JRS

Entre Santa Rita e Enseada está a Boa Vista - Cortesia: Peter Alemão


Antônio Julião, do Perequê-mirim, adorava contar histórias de muito antigamente, de um tempo que nem era do pai e dos avós dele. O seu lugar predileto era no jundu, ao lado do rancho de canoa do Pedro Cabral, onde havia uma amendoeira frondosa que nos acomodava em suas raízes nos serões, quando o sol deixava a terra do nosso lugar para ir aquecer outras paragens. Esse era o lugar e o momento de escutá-lo atentamente, além de um  ou outro dos tantos contadores de causos.
Hoje, no silêncio da madrugada quebrado pelo vento sudoeste, lembrei- me de quando escutei sobre o naufrágio do navio conhecido como Príncipe das Astúrias. Parece que estou ouvindo o Antônio Julião, torcedor santista de coração, dizer emocionado:
“Muitas das coisas que eu conto a vocês são coisas que o meu pai contou que ouviu de seu pai, que tinha ouvido dos mais antigos. Agora, o que eu conto agora é do tempo do meu pai. A casa da gente era ali, na Santa Rita. Depois da nossa roça de mandioca era a costeira da Bela Vista. Trata-se da história de sofrimento de muitas pessoas depois que o navio deles, próximo da Ilhabela, bateu num parcel e afundou. Era espanhol, com nome de Príncipe das Astúrias. Os caiçaras daquelas pontas de costeiras testemunharam o momento: a lua cheia iluminava, mas a borrasca quase não deixava ver nada. Dizem que era capitão novo, de primeira viagem. Deve ter se desesperado quando as pedras craquentas da Pirabura moeram as vigas do costado e o chão deles sumiu rapidamente nas águas". Naquele momento os mais velhos dos presentes se benzeram e viraram o rosto para o outro lado. E Seo Antônio continuou: "Não havia nada o que fazer porque o parcel estava longe, ventava forte junto com a água fria de agosto.  Só no clarear do dia poderiam avaliar melhor  a situação".
"No outro dia amanheceu tempo pior: o vento estava mais forte, o vento engrossou e a chuva forte tornara todo o mar barrento. Nenhum corpo; nada por perto dizia que alguma coisa tão horrível tivesse ocorrido. Passou. Só mais tarde, tempo depois, as notícias: os corpos e outros sinais da embarcação foram trazidos pela correnteza para a nossa terra. Só na costeira da Bela Vista, do lado de fora da Praia da Santa Rita, quase cinquenta corpos foram recolhidos e lá mesmo estão sepultados. Desde esse tempo as pessoas dizem que aquele lugar é mal assombrado".
(Em tempo: o acidente ocorreu 06/03/1916)

domingo, 7 de agosto de 2011

Batismo de maresia

               
              Verão distante; fim de tarde faltando  pouco para passagem do serão para a noite : momento de voo dos primeiros curiabôs.  A canoa balançava no ritmo do mar calmo. Na popa o meu avô Estevan; na proa eu. Tempo de pegadeira de tortinha, um peixe de largo, pequeno, bem gostoso quando frito.
                Depois de uma hora de pescaria, a balaio do centro da velha canoa de capurubu já passava da metade. De repente, começo a sentir uma sensação estranha: tudo roda. Só escuto vovô gritar:
              -Vomita na água! Vomita na água!
              E lá se foi o que restava no estômago. Mas não parou nisso: novas marolas, novos vômitos. Vovô ria tal como riu um dia, no passado distante, o seu pai. Esse era o Batismo na maresia dos caiçaras; sempre haveria um dia para alguém passar por ele. É ritual de gente do mar.
             O balanço vacilante, apesar do mar calmo, dava a impressão de ser imensas vagas de alto mar em situação tormentosa. Vem o cheiro (horrível!). Os arrancos se sucedem; o cuspe tem um tom verde espumante. Tudo arde; peço água ao vovô que continua a retirar peixe da água, quase enchendo o balaio. Pergunto a ele de onde vem aquele cheiro ruim.
              - É da maresia, Zezinho. Você tá mareado; só assim se percebe com o corpo a força do cheiro do mar. É o momento de voltar para a praia: só lá o corpo se cura. Recolha a poita.
            Dito e feito: ao pisar em terra firme estava curado.
            Depois de recolher a canoa ao rancho, aos primeiros que se aproximavam o vovô me apontava e dizia em tom de riso:
            - Pronto! Foi o batismo dele! Quem se deu bem foram as tortinhas: estarão empanturradas até amanhã.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A casa do morro do cemitério II


Aquela proximidade da casa dos Félix com o cemitério era assustadora. Leovigildo conta que uma noite esqueceram de guardar o machado dentro de casa. Então, quando todos já estavam deitados, começaram a escutar o barulho vindo de fora – eram pancadas vindas do lenheiro, de machado rachando madeira. Isso durou a noite toda. Mas quem ia sair de casa para ir ver quem era naquela escuridão? No dia seguinte, parecia nada ter acontecido: não havia lenha a mais no monte, nem lascas ou madeira derrubada. Tudo estava como havia ficado. Mas todo mundo tinha ouvido o barulho.
Tempos depois o machado ficou para fora de novo. Então a noite inteira se ouviu o som do corte de árvores na mata em volta da casa, eram galhos sendo quebrados, troncos caindo e derrubando outras árvores. Parecia que muitas árvores tinham sido derrubadas naquela noite. De novo, ao amanhecer, nada havia sido tocado, nem uma árvore fora do lugar. Só um mistério a mais para inquietar os moradores.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Cemitério dos bixiguentos


            Bixiga é sinônimo de peste, de uma “doença feia” mais conhecida hoje como varíola.
            Bem antigamente, por ser um mal amedrontador, sem uma explicação de causa, os bixiguentos não eram enterrados em cemitério comum a todos, nos fundos da igreja, mas sim numa área bem isolada, onde as pessoas evitavam  passar.
            Em Ubatuba, esse “lugar distante” era onde atualmente se encontra a área da empresa de transportes São José (Rodoviária da Rua Thomás Galhardo), no quarto quarteirão depois da orla da Praia do Cruzeiro, ou seja, no centro da cidade!
            Desse modo eu ouvi, há décadas, o simpático Freitas explicando ao Ulisses, o ucraniano que se acaiçarou  com uma das filhas do Velho Barroso:
            “Nunca faça argum trabalho por ali, seo Ulisse! Não presta - inda  hoje! - andá em terra onde sepurtaram bixiguento! Não visse o que aconteceu com o Chaga? Foi internado no Campo do Jordão com doença nos peito. Também, né? Não era ali o cagadô dele? Pode crê que é arma de bixiguento castigando o coitado! Veja: lá vem chegando o Tonho Pifano que pode confirmá tudo  que acabei de dizê.”

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Centenário da recordação


Fotos: Thales Stadler e outros
                Em 2004, escutando o pescador de Caraguatatuba, o seo Leopoldo Louzada, por ocasião de seu centésimo aniversário, pude refletir um pouco mais sobre a pesca artesanal, o patrimônio imaterial dos caiçaras. Também aprendi um pouco mais sobre a Praia do Canto do Camaroeiro e adjacências. Agradeço ao amigo João pela oportunidade que tive.
                O nosso patrimônio imaterial envolve o rancho no jundu, os apetrechos de pesca, a canoa, as festividades e tudo mais que preenchem  momentos do homem do mar. Entendemos melhor isso quando ouvimos a caiçarada, sobretudo aqueles que viveram toda uma vida na faina do mar.
                Falando da sua infância, o velho pescador explicou a origem do nome do local onde hoje acontece a Festa do Camarão a cada ano. Recordou que naquele canto da praia sempre teve camarão em fartura, encalhava com a maré. Na vinda das ondas, era possível encher as mãos, recolher em balaios e depois sair para pescar. Era quando muitos diziam: “Óh quanto camarão! Que camaroeiro!”. Ficou  sendo o Canto do Camaroeiro.
                "Peixe, após apoitar a embarcação um pouco mais da arrebentação, era demais: dava embetara, corovina, roncador, pescada..."
                Um lugar impressionante era o Tanque da Prainha, onde as pessoas iam buscar água para beber. Dele vem a lenda da moça da pedra, que impressionava  as pessoas que lá se serviam, pois aparecia da água e na água desaparecia.
                Encerrando a conversa, assim expressou o pescador:
                “Agora eu não conheço mais a minha Caraguá! Só espero que o povo sempre continue fazendo as suas festinhas (...) Eles não conhecem a vida passada; então que façam festa com a vida de hoje”.