sábado, 25 de fevereiro de 2017

CAMBURI DE TODOS OS TEMPOS

Na roça do Seo Genésio, há anos. (Arquivo JRS)
Casa caiçara no Camburi (Arquivo B.Santiago)

           Sempre é importante apresentar questões, fazer perguntas, rever rotas e procurar melhores caminhos.

"DO ‘TEMPO DOS ANTIGOS’ AO ‘TEMPO DE HOJE’, O CAIÇARA DE CAMBURI ENTRE A TERRA E O MAR".
Quando teve um gestor caiçara ou quilombola dessa instituição chamada PESM? E mesmo que um dia tivesse, seria para cumprir o que o Governo acha que é melhor. Melhor para quem? Não me importa que gestores "importados" caiam, enquanto "técnicos acadêmicos" estiverem à frente dessas instituições artificiais, com uma falsa participação das comunidades, pois não decidem nada, apenas podem opinar sobre seu próprio território! Enquanto retalham e dividem a terra entre grandes construtoras usando um Zoneamento ridículo e nas mãos de empresários, enquanto esse turismo de massa confuso e descontrolado desaba todo fim de ano e feriado sobre a Mata Atlântica destruindo e poluindo... Não reconheço nenhum PESM, não reconheço sequer o Governo que o encampa e quer vendê-lo, continuarei andando pelas trilhas que sempre andei, seja na beira da praia, onde magnatas colocam cercas ou no pico do corcovado, onde nunca pedi autorização e nem o farei.
"DO ‘TEMPO DOS ANTIGOS’ AO ‘TEMPO DE HOJE’, O CAIÇARA DE CAMBURI ENTRE A TERRA E O Mar".
"As propriedades particulares acabaram com cerca de 95% da Mata Atlântica do estado de São Paulo. Em mãos de quem estavam os outros 5% que foram preservados? Grande parte estava no território de populações tradicionais espalhados pelo estado. Assim, quando percebeu o que havia feito com a Mata Atlântica, o homem urbano-industrial "olhou" para os outros 5% e decidiu, por intermédio do estado, preservá-lo. Parte desses 5% estava localizado no litoral norte do estado de São Paulo, e foi para lá que em 1977, o homem urbano-industrial depositou seu olhar e criou o Parque Estadual da Serra do Mar. Entretanto, pouco antes de decidir preservá-lo, o Poder Público havia proposto um modelo desenvolvimentista para essa área, construindo uma estrada que visava adequá-la para ser mais bem explorada pelo turismo, ao mesmo tempo que interligava duas metrópoles brasileiras. No inicio da década de 1970, o Governo Federal construiu a BR-101, intercruzando um dos poucos remanescentes contínuos de Mata Atlântica do país, tendo por propósito, "desenvolvê-la"; no final da mesma década, o Governo Estadual resolve que ela deve ser "preservada contra quaisquer ações que a desvirtuem". 

Entre o "fogo cruzado" de ações tão díspares, esteve o caiçara de Camburi. Nem no projeto desenvolvimentista, nem no conservacionista, os caiçaras foram os sujeitos a serem privilegiados: a estrada foi construída para privilegiar o turismo, a ser desenvolvido, é claro, por grandes empresários e não pelos moradores locais (para eles restariam os trabalhos de caseiros, garçons, empregadas domésticas, jardineiros...); o parque foi decretado para conservar a natureza, onde o homem urbano-industrial poderia desfrutar seu lazer e realizar pesquisas ou, ainda, para que suas gerações futuras também pudessem também desfrutá-la. Quanto aos caiçaras, nem mesmo suas gerações presentes estiveram no foco das preocupações do Poder Público, seja ele o federal, seja o estadual. 

Nos 5% de Mata atlântica sobreviventes à destruição pelo modo de vida urbano-industrial, o Governo Federal construiu uma estrada visando desenvolver a região (o que consequentemente degradaria os recursos naturais). Logo depois “chega” o Governo Estadual para acusar os habitantes dessa área de serem predadores da natureza e, mais, para dizer que eles não podiam mais ser lavradores. Não restam dúvidas que para realizar a agricultura itinerante o caiçara causa desmatamento de uma área. No entanto, se esses grupos não estivessem habitando esse lugar, provavelmente, não haveria aí a quantidade de mata existente. Com seu modo de vida, bem menos predatório, eles vêm conservando aquele meio natural, através dos tempos, pois seu modo de ser não permitiu que eles acabassem com o que lhes garante a existência. A ameaça maior não provém da roça itinerante, mas da estrada construída pelo próprio Governo, que trouxe e continua trazendo pessoas de fora, interessadas em comprar terras para construir suas casas e pousadas.
O velho caiçara de Camburi começa sua explanação falando do que mais respeita – o ambiente no qual sobrevive e que transcende há centenas de anos, como bem demonstram as datas das chegadas das famílias ao lugar – para depois ressaltar o que a estrada fez com ele, “encheu os rios do Camburi de terra”. Enquanto conversávamos passamos ao lado de um desses rios e ele comentou:

“A moça já pensou que quem construiu esta estrada e matou esse rio é o mesmo governo que hoje impede nós de plantar? Eu atravessava esse rio nadando e hoje pra atravessar não molha nem a meia.”
Presenciando os danos ao meio natural onde vive, ocasionados pela construção da rodovia, como pode o caiçara entender que é o seu modo de vida o destruidor da natureza? Em alguns momentos durante o convívio em Camburi, pude perceber a incompreensão de seus moradores: o que significava um parque, porque ele havia sido criado justamente ali, no lugar deles, em que se baseavam os “florestais” para dizer o que pode e o que não se pode faz, enfim, porque estão alijados de decidir sobre suas vidas? Todas essas perguntas se perdem no vazio, pois caem no buraco da alienação a que estão fadados, se depender de quem deveria lhes esclarecer.
“O interlocutor quer mais explicações e continua...

“[...] de quem vem essas leis? De o senhor vim e a pessoa tá cortano uma arvre seca... cortano uma arvre seca pra dona-de-casa fazê um di cume, uma comida prumas criança porque o dinheiro não tem pra comprá o gás... porque muitas vez tem fogão a gás mas não tem dinheiro pra comprá o gás. Ele tá cortano umas arvres seca na mata que a broca, os bicho mata... ele tá cortano umas arvres pra fazê lenha naquele regime que ele foi nascido e criado, e foi nascido e criado no campo, na lavoura... Então o sinhor vem, carrega seu facão, carrega sua foice... prigunto pro sinhor assim: da onde é que vem essas leis? de onde é que vem essas ordem? Aí ele responde: << Eu recebo essas ordem do meu superior>>. E eu respondo: <<É, do governo? O sinhor recebe dele? Então quero dizer pra eles que esse governo precisa é de estudá, ele precisa estudá. Farta estudo pra ele dentro desse moral>>. Os florestal falaram assim pra mim: <<Como assim Sr. G.?>> Eu disse:<< É lógico. É lógico meu velho amigo. Ele [o governo] dá uma lei e nós não pisamos por cima das lei porque nós somo reconhecedor...nós somo reconhecedor que a floresta, a raiz da floresta é uma lei que vem lá do fundo... de lá do fundo... eu reconheço isso. Porque eu chegá aqui e passa a mão na minha foice, no meu machado e for descurtivá uma nascente de águas eu to prejudicando a mim mesmo e meus familiares. Porque amanhã ou depois aquela nascente vai secá, vai secá, e aquilo que eu levo de água, o meu familiar, os novo vão sofrê por minha causa. Isso tá certo. Mas pricisa que esse seu superior, o seu governo, ele estude mais um pouco... ele chegue aqui e então ele reparta, tire aquela parte das cabeça dos morro, das nascente das água e diga: homem do campo, família do campo, ocê que foro nascido e criado dentro daquele local, então fica a parte das vargem procês discultivá, procês fazê os plantios, procês plantá o pé disso, pé daquilo pra dá pros seus filhos... que o senhor possa plantá uma cova de banana, que o senhor possa plantá uma cova de mandioca pra fazê farinha, porque nós fomo nascido nisso...”

Essas perguntas também não foram respondidas.”
(TRECHO DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE CANDICE FILIPAK MANSANO: DO “TEMPO DOS ANTIGOS” AO “ TEMPO DE HOJE”, O CAIÇARA DE CAMBURI ENTRE A TERRA E O MAR”, 1998, UNICAMP.)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

“SE ACHEGUE, B’VENHA PRO CUPIÁ, ZEZINHO”


           
Olha nós! (Arquivo JRS)
    A primeira vez que encontrei o Seo Dito Madalena (Benedito Antunes de Sá) foi quando ele, seus irmãos e suas famílias estavam entranhados no Saco dos Morcegos, onde é possível ver ainda hoje ruínas que atestam as posses dos Antunes de Sá, herdeiros do antigo território da grande fazenda da Caçandoca, que começava na Pedra da Cruz e terminava na Pedra do Um. Naquele tempo, bem mais tarde, os três filhos, os herdeiros, se fixaram nas praias da Caçandoca, da Raposa e no Saco dos Morcegos. Você ainda não viu esses marcos históricos? Mas voltando ao começo, numa tarde distante no tempo, depois de uma caminhada maravilhosa a partir das Galhetas, cheguei num momento de fechar a farinhada. O preto tava branco do pó que se suspendia da borda do forno. Dona Constantina, de saudosa memória, se desdobrava entre a lida da casa de farinha e o cupiá. Não sabe o que é cupiá? É a casa do fogão, feita ao lado da cozinha. Pensou que fosse besteira, né? Na verdade, era estratégia para não pretejar a casa por dentro, para não deixá-la toda cheia de barbas de picumã. Ai, chega! Não vou explicar mais! Hoje, justamente, neste dia (20 de fevereiro de 2017), Seo Dito está completando 83 anos. Por isso fiz questão de ir até a Caçandoca no último sábado, de tomar um café e rir muito com ele e alguns dos filhos.
               Seo Dito Madalena! O Benedito da Magdalena, a escrava que foi a companheira de um dos Antunes de Sá! Dito  Madalena, o “Coruja” que tantos desafios enfrentou para se manter na posse de seu pedaço de chão! Foi ao comandante do Exército, em Caçapava. Foi ao presidente Garrastazu Médici em Brasília para ter uma garantia contra os grileiros. Um detalhe: “analfabeto na leitura, mas alfabetizado na resistência”, conforme as palavras do ricaço Bassin, aquele que comprou a posse do Gregório Crispim, no Saco das Bananas.
               Está longe aquela tarde, quando cheguei suado, com carrapichos até os joelhos. Ainda tinha cajus e jacas, mas eu preferi a chaleira de café e os beijus que fartavam no cupiá. E naquele lugar, com aquelas pessoas eu fui muito feliz! Ótimas lembranças! Por isso faço questão de cumprir este ritual (da visita) a cada ano. E na nossa linguagem, na correria da vida, assim como no lagamar, tenha do esperar, de “aproveitar o jazigo para atravessar a arrebentação” e novamente ficar tranquilo. É o meu povo! É a minha memória!

               Parabéns, Dito Madalena! E vê se não descuida do fortificante!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

ESCOLA E SUSTENTABILIDADE




Artistas da escola (Arquivo Diego de Sá)

                                                                                  
           
            A minha aposta neste ano (2017) é num tema superinteressante: sustentabilidade.
            Sustentabilidade é a palavra do momento que nos faz pensar em ações que, além de suprimir as nossas necessidades, preserva este planeta para as futuras gerações. Trata-se de usar os recursos naturais com sabedoria, de reaproveitar materiais, de repensar atitudes etc., alcançando um desenvolvimento sustentável. Portanto, dentro desta definição, a reciclagem e o reaproveitamento merecem atenção especial.
            Eu sou privilegiado porque sempre me deparo com bons exemplos nos ambientes que frequento. Hoje, devido a minha grande estima pelo pessoal que trabalha na Escola Estadual Professora Florentina Martins Sanches, no Perequê-mirim (Ubatuba), quero elogiar, reconhecer o valor de um grande trabalho concebido e realizado pelo pessoal que passou o mês de janeiro preparando tudo para termos um bom início de ano letivo. Em especial a Solange Nassa, a Andrea Palmeira e o Diego de Sá.
            O que eles fizeram? Explico agora: notando o estado deplorável das cortinas e dos bancos, esse pessoal fez um trabalho maravilhoso: as cortinas velhas foram substituídas por outras novas, devidamente tingidas e com palavras motivadoras de reflexões éticas para a nossa coletividade escolar. Ou seja, aquelas cortinas sem vida, muito estragadas, agora com letras de pano estarão cumprindo mais uma função: despertar novas atitudes nos leitores. São atitudes cidadãs. Já as velhas cortinas, agora com estampas pensadas e estampadas por esse pessoal, serviram de forro aos bancos danificados do pátio, onde é servida a merenda. É isso: reaproveitaram e deram outra feição ao ambiente, além de nos fazer pensar a respeito da alteridade e da responsabilidade. Um gesto pequeno; uma contribuição grandiosa! Certamente que vai nos servir de  exemplo para outras iniciativas.

            Parabéns a todos!   

domingo, 5 de fevereiro de 2017

ESTÁ NO D.N.A DESSA GENTE!

Seo Martins, da Trindade, avô do nosso saudoso Elias. (Arquivo Trindadeiros)

                Na década de 1990 eu tinha um amigo que fazia transporte de pescados de Ubatuba para a cidade do Rio de Janeiro. Eram duas viagens que o Nelson fazia semanalmente num caminhão (Mercedes Bens, modelo 1313, equipado com uma potente câmara fria). Dizia: “Eu até já decorei essa estrada daqui para o Rio. Tem lugares lindos: Paraty, Angra, Mangaratiba...”. Esta introdução já deu para perceber que muito peixe era desembarcado no nosso Caisão e no atracadouro do Saco da Ribeira.
Saco da Ribeira - O pescador Rodrigo, gente da Picinguaba (Arquivo JRS)

                Não creio que muitos saibam que a corovina (corvina) não é um peixe preferencial na dieta dos caiçaras de Ubatuba. Vovô Armiro explicava: “Corovina é peixe que numa em época do ano tem cheiro forte e se enche de vermes. Por isso não presta. Saprezado até que passa”. Tinha até um amigo do meu pai que, devido ao bafo forte que exalava, tinha o apelido de Corovina. Já a família Corovina, que morava no jundu, perto da Barra da Lagoa, próximo de onde hoje é o aeroporto da cidade, nem sei o porquê dessa denominação. Assim, é quase natural os ubatubanos torcerem o nariz para a corovina. Fiquei muito admirado quando o Nelson me disse naquela ocasião: “Sabe de uma coisa, Zé, o peixe que mais agrada os cariocas é a corovina”. “É mesmo? Que coisa, né?”. “É isso mesmo, Zé! Até no posto da polícia rodoviária eles sempre me pedem um tabuleiro de corovina!”. “Olha só! Que danados de policiais!”.

                A novidade vem agora! Lendo a revista Pesquisa (Fapesp - setembro de 2016), me detive num artigo a respeito da pesca pré-histórica, baseado nos estudos de treze sambaquis do estado do Rio de Janeiro, entre Angra do Reis e Arraial do Cabo, com idade entre 5.600 e 700 anos. O material pesquisado levou os autores a terem uma ideia da quantidade, dos tamanhos e espécies que constituíam a base alimentar desses povos antigos. Legal, né? E tem mais: os vestígios recuperados nos sambaquis fluminenses atestam que a pesca era uma atividade dominante na região. E sabem qual a espécie com maior número de registros, provavelmente a mais intensamente capturada pelos pescadores-coletores desse trecho do litoral? Ela mesma! A corvina (Micropogonias furnieri)!    Ah, é!?! Está no D.N.A!!!  Então é por isso que os cariocas continuam fanáticos pelas corvinas!