segunda-feira, 31 de julho de 2023

UM NOVO ANJINHO

 

Tia Astrogilda e tio Silvário - Arquivo: Os caiçaras contam

Olha a turminha e o Ângelo no cavaquinho - Arquivo Mana Ana


    Domingo chuvoso, final de julho. Mandei mensagem para a minha irmã: “Tá em casa?”. “Tô”. “Então vou aí daqui a pouco”. “Pode vir, mas vai ter festa julhina na rua, já estão montando barraca. Vai ser preciso deixar o carro antes, vir a pé até em casa”. E assim fomos (eu as minhas queridas Gal e Maria Eugênia) para uma visita, uma prosa de fim de domingo.

   Assim que descemos do carro, de um portão ali perto saiu um menino já vestido à caráter, de caipirinha. Não teve como eu não elogiá-lo. “Que lindo!”.    Ele prontamente agradeceu todo alegre e animado. Na calçada da minha irmã já estava montada uma barraca, onde uma menina ajeitava algumas coisas. Aquele menino foi para o outro lado, na calçada oposta, com brinquedos e varas, revelando que ali seria a barraca da pescaria. Notei que as prendas tinham jeito de ser os próprios brinquedos do menino lindo. A minha Gal comentou: “Depois, quem pescar devolve para o dono os prêmios. Deve ser assim, né?”.

   A mana Ana nos esperava no portão, foi logo dizendo que aquele menino era o Ângelo, neto do Wilson, meu colega de escola primária, no Perequê-mirim. Depois toda a família se mudou para a cidade de Santos. Era a primeira metade da década de 1970. Somos parentes: tia Astrogilda, a mãe do Wilson, bisavó do menino Ângelo, “era filha do tio Anastácio”, segundo disse o meu finado pai. Gente da praia do Pulso. Tio Silvário, “filho do  finado Estevão, morava no sertão da Caçandoca, mas nasceu no Saco das Bananas”. Papai nasceu e morou perto dele, onde era a posse do meu bisavô Francisco Félix, casado com Anna da Conceição. Caçandoqueiros, meus ascendentes, minhas raízes. Então comentei com a mana Ana: “Será que o nome do Ângelo foi dado em homenagem ao Anjinho?”. “Creio que sim”. Ela concordou com a minha dedução.

  Anjinho era o nosso amigo da infância na praia da Fortaleza. Ângelo era o nome dele, filho da Rosa (irmã do tio Silvário) e do Angelino Roseno, da praia Grande do Bonete.  Naquela época o casal já estava separado. Mais tarde mãe e filho também foram morar na praia do Perequê-mirim. Ou seja, nos reencontramos e convivemos outros momentos. Para encurtar a história, com o apoio da comerciante Zenaide, Anjinho se equilibrou na vida e terminou se casando com a nossa colega Izabel, filha da Maria e do Odócio, gente-raiz do Ubatumirim, mas habitantes da Pedra Branca, na Enseada. Prole numerosa. O triste vem agora: há uns dez anos,  quando podava uma jaqueira perto da sua casa, o nosso estimado Anjinho foi acidentado, massacrado pelo peso de um galho. Não teve jeito de sobreviver.

   Vida longa e feliz ao menino Ângelo que agitou a festa julhina na rua Ponciano Eugênio Duarte e certamente dormiu muito feliz! 

   Viva nossas raízes culturais! 

   Parabéns a essa geração novíssima de caiçarinhas!

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Mensagem reenviada pela mana Ana no dia da publicação:

Nossa Ana, que lindo!
Tomando café e já chorando aqui com a foto dos meus avós do início da reportagem. Que lindo! 
Realmente foi isso, entre tantos nomes que surgiram durante a espera, quando falaram Angelo não tivemos dúvidas em abraçar a ideia. Nome lindo e que remete a lembrança desse primo que era tão querido por todos...
Agradeço o carinho ❤️

domingo, 30 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI... (VII)

 

Olhar - Arte: Raul Di Vicencio (Delfim Moreira - MG)

        Quem nos conta a história de hoje é a Beatriz, uma migrante que há décadas vive em Ubatuba, faz parte daquelas pessoas que deixaram suas terras injustas (de latifundiários, desemprego, violência etc.) em busca de um melhor lugar para poder viver. Distante ficou parte da família dela. Mas...o que é família senão pessoas unidas por sentimentos e ideais esperançosos num mundo de justiça? Com a palavra a Beatriz:

 

      A história seguinte aconteceu comigo, quando eu morava numa cidade do interior, divisa com o Mato Grosso do Sul. Era um ano igual aos outros, eu já estava casada. O meu marido trabalhava em outra cidade, então eu morava com os meus pais. Numa certa noite aconteceu uma coisa intrigante, quando eu dormia com a minha filha: eu acordei e vi uma pessoa em pé na porta do quarto. Fiquei nervosa e com medo, mas depois tentei descobrir quem era aquela pessoa que estava lá parado, nos olhando enquanto dormíamos. O dia amanheceu e eu contei para a minha mãe o que tinha acontecido. Ela me perguntou como era essa pessoa. Eu falei que era um homem alto, com uma capa cinza e que usava chapéu. Então ela pediu que eu rezasse antes de dormir. À noite, naquela mesma hora da noite anterior, a cena se repetiu:  aquele homem estava novamente no mesmo lugar, olhando para nós dormindo. Parecia que ele queria me falar alguma coisa, mas não consegui entendê-lo.

     Os anos se passaram, eu vim morar em Ubatuba. Agora consigo entender o que tinha acontecido comigo naquela ocasião distante. Quem me ajudou nisto foi o Centro Espírita, onde me explicaram que aquele homem que me apareceu era o meu avô que havia falecido quando eu ainda era criança, que não tinha conseguido falar com ele porque não tenho o dom da mediunidade. Termino aqui a contação da minha experiência. Como eu gostaria de saber o que ele queria falar comigo!

sexta-feira, 28 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI... (VI)

 

Homens-árvores - Arte: Estevan



      “O Brasil está cheio de histórias de lobisomem”. Quem repetia esta frase era o finado Brasiliano. Então eu brincava assim: “Quer dizer que Brasiliano também pode ser lobisomem?”. E o bom velhinho dava aquela gostosa gargalhada antes de começar um bom causo. Faz tempo isso? Ah, faz! Eu era adolescente, trabalhava no Bar Orly, do Severino, no Perequê-mirim.

      História de lobisomem é coisa muito antiga mesmo! Os pesquisadores escreveram que, na Roma antiga, existia, no mês de fevereiro, derivada de mito mais antigo ainda, a tradição religiosa dos Lupercália (voltada aos lobos), uma festa de origem agrária que depois, apossada pelos ricos, foi oficializada como momento de purificação para o ano novo (que começava em março). Os sacerdotes (lupercos = irmãos do lobo) eram eleitos anualmente entre os patrícios mais ilustres da cidade. Bodes e cachorros eram sacrificados, depois os sacerdotes arrancavam tiras desses coitados, vestiam-se com o couro e saiam em torno da local para chicotear o povo, sobretudo as mulheres inférteis. Era uma forma de religião. No ano 494, o imperador Gelásio a proibiu, mudando-lhe a feição para a solenidade cristã da Festa da Purificação. Mas a base mítica de homens virando lobos de quando em quando, sob influência da Lua Cheia, continua fazendo sucesso até ao advento da iluminação pública dos nossos espaços. Quem, em Ubatuba, nunca ouviu história de lobisomem que precisa correr sete praias?

 

      A introdução acima foi só para indicar a direção da história de hoje, do tempo de uma Picinguaba bem pacata, uma praia maravilhosa de Ubatuba, sem iluminação elétrica. Quem contou foi a avó da Maytê.  Esta nos recontou:

    

     Há muitos anos, quando nem estrada havia até a cidade, um fato ocorreu com a minha avó Aparecida. Ela me contava de uma noite estrelada, bonita demais, como de costume ela resolveu sentar diante do mar para apreciar a beleza da natureza. Ela morava na praia da Picinguaba com meu avô e dois filhos.

     Estava ela lá sentada quando de repente avistou um cachorro correndo em sua direção. Só que não era um simples cachorro. Quando ela percebeu, o cachorro foi se transformando em um lobisomem. Na hora ela se levantou e saiu correndo para a sua casa. Entrou desabalada, foi trancando portas e janelas. Meu avô perguntou o que tinha acontecido e ela contou tudo o que tinha acontecido, mas ele não acreditou porque abriu a porta e não viu nada lá fora. Até hoje a minha avó jura que viu mesmo um lobisomem. Eu acredito nela.


quinta-feira, 27 de julho de 2023

UM ESPETÁCULO!

 


Canoas: arte do meu saudoso pai.



    Éramos seis pessoas amigas se reunindo costumeiramente para um bingo beneficente, arrecadando pouco a pouco para uma causa, uma luta do grupo. O evento acontecia uma vez por mês. Naquele, o amigo Napoleão, de Caraguatatuba, estava presente, participou. No final, ele segurava uma das prendas que não foi sorteada, que deveria ficar para a próxima ocasião. Éramos nós mesmos, membros do grupo, que fazíamos as coisas para servirem como prêmios a serem bingados. O estimado Napo segurava temporariamente um pinguim decorativo. Me perguntou: “O que eu faço com isto?”. Eu pensei que seria uma boa coisa deixar que ele levasse o objeto para a filha. Na hora eu pensei nela e falei para levar como presente. “Ela vai gostar”. Ele agradeceu e guardou.  Estávamos perto da praia, o grupo se dissipou. Somente eu e Napoleão seguimos juntos em direção a um ponto de ônibus, onde ele embarcaria de volta para a sua cidade. Nisso vimos uma movimentação no mar: embarcações formavam um quadrado faltando um lado, forçando alguma coisa a encalhar na praia. Imediatamente deduzi o que estava acontecendo: um grande cardume de tainha foi localizado e cercado, algumas já pulavam. Corremos para ver de um ponto mais alto. As tainhas começaram a encalhar, as pessoas começaram a jogá-las para um ponto mais alto, longe do mar. Napoleão se desesperou para ativar o celular e fotografar, mas nem sei se deu tempo. Foi tudo muito rápido. Uma das pessoas que auxiliavam a recolher os peixes eu reconheci: era o meu tio Tião Félix. Logo eu gritei: “Tio Tião, joga uma tainha pra mim”. Ele pegou uma, deu uma rodada e lançou com força. Ela caiu perto de nós, no asfalto. Até se machucou um pouco, mas eu nem me importei. Pensei, no instante que a segurei: “Vou levar pra casa e preparar logo. Ah, uma tainha frita com café e farinha!”. Assim que todas os peixes foram recolhidos, imediatamente apareceu um número num painel ali perto: o total  foi de 9.785, segundo falou o Napoleão.  Quando eu olhei já tinha se apagado. Acordei. Era um sonho.

     Me levantei para escrever. Não é extraordinário um sonho tão bem contextualizado, acompanhando o calendário da nossa cultura caiçara? Pelo jeito, hoje terei de ir ao mercado ou passar pelos ranchos em busca de tainha. Ontem almocei tainha, mas...conforme o sonho, ainda estou com vontade de comer mais. É a memória genética dos antigos, do indígena tupinambá que disputava com tupiniquim a chegada dos cardumes na região de Bertioga. Esses indígenas remavam grandes distâncias por causa da abundância em meados do ano, tal como ainda é nos dias de hoje. Tainha é peixe migratório. Hans Staden descreveu, em 1556, após ter sido poupado pela etnia Tupinambá, como era o preparo dos pescados: “Quando cozinham peixe ou carne, põem dentro habitualmente pimenta verde. Logo que está um tanto cozida, retiram-na de caldo e fazem uma papa fina que se chama mingau. Bebem-na em cabaças de que se utilizam como vasilhas. Quando querem preparar para durar muito tempo, deitam o peixe ou a carne sobre pequenos paus à altura de quatro palmos acima do fogo, deixando o alimento assar e defumar até que fique completamente seco. Quando mais tarde querem comê-lo, cozinham-no de novo. Chama a essa comida moquém. Também podem socar esse produto seco no pilão, transformá-lo numa farinha por nome de piracuá”. 

       Que maravilha de espetáculo! Que venham as tainhas!


sábado, 22 de julho de 2023

A RESISTÊNCIA GARANTE A FESTA

 


   

2001 - Organização caiçara para defender o território (Foto: Martha Martins)


       Na minha breve existência já pude testemunhar a importância de resistir, de ser solidário, de marcar território enquanto comunidade caiçara. Muitas derrotas aconteceram porque pessoas resistiram isoladamente ou porque se aliaram a interesses mesquinhos (de religiões e/ou empresários especuladores de terras). Ainda criança vi meu pai e outros se deslocando para Caraguatatuba a fim de auxiliar na tragédia, na tromba d’água que afetou os moradores de lá. Na década de 1970, ousados caiçaras se reuniam às escondidas para se oporem à ditadura militar. Na década de 1980, as ameaças do Porto Flamengo e da Avibras levou à criação de uma organização mais ampla. A resistência dos trindadeiros, do pessoal do Rio Escuro e da Caçandoca  nos fez aprofundar no desejo-capacidade “de eliminar a nuvem histórica que impede a visão transparente das transformações no espaço habitado dos países pobres”. E quantas movimentação houve de lá para cá?! Assim... é com grande alegria que vemos as conquistas da Comunidade da Almada. O meu desejo é que continuemos cultivando a consciência de que manter o nosso território é o último recurso para a sobrevivência da nossa cultura, da nossa dignidade caiçara. Gratidão ao Santiago por repassar o seguinte texto.

 

No dia 20 de julho, quinta-feira, durante a realização do 28º Festival do Camarão da Almada, a Comunidade Caiçara da praia da Almada recebeu o TAUS-Termo de Autorização de Uso Sustentável. O TAUS é um documento da Secretaria de Patrimônio da União-SPU, que garante a gestão e uso de áreas da União pelas comunidades tradicionais.

É uma conquista de uma luta de vários anos, mas que nunca a comunidade desistiu de seus direitos territoriais. As duas áreas contempladas pelo TAUS são o Espaço Cultural da comunidade e a área do estacionamento onde é feito sempre o Festival do Camarão.

O FCT (Fórum das Comunidades Tradicionais) esteve presente nessa luta junto com o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina-OTSS. Especialmente através do projeto Povos, que é uma cartografia social realizada com as comunidades tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba e com apoio jurídico e articulação política.

Que essa vitória do povo caiçara seja exemplo e incentivo para que as comunidades tradicionais caiçaras sigam se fortalecendo e se unindo para enfrentar os conflitos territoriais e a especulação imobiliária que assola a região. E que cada vez mais através da luta unida o povo tradicional possa ter seus direitos garantidos.


sexta-feira, 21 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI... (V)

 


Arte: Estevan

      Hoje a contação de causo está a cargo do estimado Jovelino, caiçara da Ponta Grossa do Farol. Dias desses nos encontramos (eu, ele e o Elizeu) diante de uma farmácia e a prosa durou um longo tempo. Adoro esses momentos!

 


    Bom, a história que vou narrar é verídica, aconteceu comigo quando tinha nove anos. Morávamos na Ponta Grossa e eu estudava no Itaguá. Saía muito cedo de casa devido a boa caminhada até a escola. O sinal de entrada batia às 7:30 horas para começar a aula, ia até 12:00 horas. Como o caminho era longo, eu chegava em casa por volta das 13:30 horas azul de fome e cansado.

   Certa vez, eu lembro bem, as aulas terminaram mais cedo, por volta das 11:30 horas. Fiquei trêmulo porque eu sabia que teria de passar pelo Caminho do Cego às 12:00 horas. Minha mãe contava umas histórias desagradáveis desse lugar sombrio e silencioso, onde se tinha a impressão que alguma coisa observava a gente quando se transitava por ali. Por isso peguei o material escolar meio sem pressa.

  O caminho parecia interminável. Eu, já azul de fome, apressei o passo e comecei a subir o morro da Praia Vermelha. Sabia que em pouco tempo estaria em casa. Passei a primeira curva, ouvi um barulho que vinha do meio do mato, parei para observar. “Nossa, que lindo! Dois cavalos brancos? Será que fugiram de alguém?”. Eles eram brancos na primeira vez que vi, olhos fixos não deixando tomar atenção em mais detalhes. Aos poucos deixei me levar pela visão e me distraí. Quando tornei a olhar, vi que os dois tinham asas. “Que legal!”. O que estariam fazendo ali? Segui em frente, logo parei para dar uma última olhada. “Êpa! Cadê eles?”. Fiquei arrepiado dos pés à cabeça, comecei a correr até a minha casa. Lá chegando, a minha mãe perguntou:

    - O que aconteceu meu filho?

    - Espera eu tomar fôlego que eu falo. Eu vi dois cavalos brancos de asas no Caminho do Cego, mãe.

    - Que nada, filho! É coisa da sua cabeça, isso passa.

    Atualmente, depois de tanto tempo, quando passo por lá acabo me lembrando desse acontecido. Até hoje ainda aquele lugar me assusta.


quinta-feira, 20 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI... (IV)

 



Artesanato caiçara em totoa - Arquivo JRS



     A narrativa a seguir, contada pelo tio da Shirley, me faz relembrar de várias outras iguais, de mesmo teor, que se resumem, segundo os mais antigos, em “almas que se apegam à Terra e não querem ir embora”. Diante de testemunhos assim, o comum era levar o padre para benzer o local, encomendar missas etc. Deixo a narrativa por conta da Shirley. Manda brasa!


     Há um bom tempo o meu tio se interessou por uma casa que ninguém da rua gostava de entrar. O motivo era porque havia morrido um casal nela. Os vizinhos diziam que, nas noites, ouviam gritos do casal que eram assustadores. Só que o meu tio não acreditava nessas coisas e resolveu comprar a casa do mesmo jeito.

     Depois de um tempo reformando, ele se mudou. Ah! Os pedreiros que trabalharam para ele diziam que sentiam alguma coisa estranha quando estavam na casa. Meu tio, lógico, continuava não acreditando. Mas assim que se mudou, na primeira noite, ele ouviu alguns gritos mesmo. Pensou que fosse imaginação dele. Da segunda noite em diante, as coisas que estavam em cima da estante começaram a cair no chão sem mais nem menos. O meu tio achou estranho, começou a acreditar nessas histórias. Resolveu sair da casa, mas não sabia o que fazer, pois ninguém queria morar lá.

    Levou um certo tempo para ele resolver derrubar a casa e montar uma loja no lugar. Mesmo assim, depois disso tudo, ainda meu tio e quem vive mais próximo afirmam que escutam gritos, mas não cai nada da loja, das prateleiras.

    Essa foi a história que o meu tio me contou. Agora ele diz que não acredita muito nessas coisas. Segundo ele, isso só acontece porque as pessoas colocam na cabeça que existe fantasma; por isso escutam barulhos na casa.


terça-feira, 18 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI... (III)

Arte: Gal     (@ternura_atelie)
 


     A história intrigante de hoje fica por conta da Dona Marilena, uma vovó muito querida moradora da região central da cidade de Ubatuba:


      Esta história que vou contar foi baseada em uma história real que aconteceu no Rio de Janeiro há muito tempo. Tudo começou assim: numa noite muito chuvosa, um homem estava sentado em um ponto de ônibus.  De repente chega uma mulher muito bonita, morena, cabelos longos lisos. Senta-se ao seu lado também esperando a condução. Ela estava molhada, com uma roupa de calor, pois não sabia que iria chover à noite. O homem que estava ao seu lado ofereceu a sua jaqueta preta de couro porque notou que a moça estava com muito frio. A coitada aceitou e perguntou:

     - Você tem uma caneta para eu lhe dar meu endereço? Assim você poderá buscar a sua jaqueta outro dia lá em casa.

     - Tenho sim, moça.

     Ela anotou o endereço, entregou para ele e subiu no ônibus em seguida. Depois de uma semana esse homem resolveu ir buscar sua jaqueta e a caneta na casa da moça. Chegando lá, se deparou com uma casa bem velhinha. Bateu palmas, dizendo:

   - Ó de casa. Tem alguém aí?

   A porta se abre para revelar uma senhora bem idosa:

   - Quem é você? Com quem gostaria de falar?

   - Boa tarde. Eu sou o Arnaldo, vim buscar minha jaqueta  que emprestei para uma moça. De acordo com a anotação feita na ocasião, ela mora aí, nessa casa da senhora.

   A senhora respondeu assustada:

  - Bom, a única moça que morava aqui comigo era a minha filha, mas já faleceu faz tempo.

  O moço, pasmo com que acabara de ouvir, lhe pergunta:

  - Não, não  é possível. A sua filha era morena, cabelos longos e lisos, muito bonita e também muito educada?

  - Sim, era assim mesmo. Gostaria de ver a fotografia dela que eu tenho aqui?

  - Sim, mas claro que sim! Quem sabe pode não ser ela?

  Então ela entrou na casa e ele a seguiu. Ao se deparar com a fotografia na parede, ele leva um susto e diz:

   - Mas como isso pode ser possível? É ela mesmo! Eu não acredito nisso, não pode ser ela!

  A mãe da garota lhe pergunta:

  - Você gostaria de ir ao túmulo dela para ter certeza absoluta do que viu e ouviu?

  E os dois foram até o cemitério mais próximo. Ao chegar no local do túmulo, lá estava a caneta e a jaqueta depositada na lápide da moça falecida há anos.

 


segunda-feira, 17 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI...(II)

 

Arte: Ricardo Azevedo


Cada causo, cada história tem um objetivo. A gente viaja na imaginação de cenas e vive buscando lições ao passar pelas narrativas. Quem me contou a quem vem a seguir foi o Anderson depois de escutar do próprio avô. Preste atenção.


     “Era uma vez...” assim começou o meu avô. “...um rapaz que se aproximava dos trinta anos, nunca tinha se casado e era muito maldoso com as pessoas e bichos. Ele odiava cobras, vivia castigando qualquer uma que encontrasse. Então, dizem as pessoas, que um certo dia ele encontrou uma cascavel no caminho que ia da sua casa até a roça. Como sempre, deu uma pancada nela, mas não chegou a matar. Percebendo que ele ainda vivia, resolveu fazer uma maldade pior: pegou a coitada, colocou num oco de árvore e tapou-a com pedra e barro. Depois de muito tempo, quando esse homem já era idoso, com setenta anos, casado e com três netos, sendo um deles muito apegado a ele, aconteceu um fato que nos deveria fazer pensar melhor os nossos atos em relação a todos os seres vivos. Foi assim: num belo dia, bem de manhãzinha, chamou o neto querido para ir à roça ver como estava linda a plantação. Então, caminhando naquele trajeto, passou debaixo da velha árvore em que ele tinha colocado a cobra há quarenta anos. Sentindo-se cansado, ele sentou à sombra e resolveu contar o que tinha feito com a cobra: ‘Olha, meu neto, um dia eu coloquei uma cobra cascavel aqui neste oco tapado com terra e pedra. Já faz muitos anos’. Então neto perguntou: - Vovô, será que ela já morreu? – Claro, meu filho. Quando eu coloquei ela aí eu não tinha nem conhecido a sua avó. – Nossa! Então faz tempo mesmo! Nesse ponto da prosa o idoso resolveu abrir o buraco para ver o aspecto da tal cobra. Com a ajuda de uma faca começou a cavoucar. De repente sai uma cobra sequinha, magra de fazer dó. Estava viva e picou o  avô. Ele caiu tremendo todo e logo morreu. Foi o troco dado pela cobra à maldade dele”. E o meu avô garantiu que esta história é verdadeira. 

domingo, 16 de julho de 2023

QUEM ME CONTOU FOI...

Arte: Maria Eugênia
 


     Cada causo, cada história tem um objetivo. Na série que começa agora há de tudo um pouco: desde advertência moral até assombrações tradicionais e lobisomens. A história seguinte, de alguns anos, quando a moda era frequentar/dançar no TomBar, na avenida Iperoig (Ubatuba), quem me contou foi a avó do Thiago. Preste atenção.

 

     Numa noite uma garota jovem, já com seus 17 anos, resolveu ir a uma balada com suas amigas. Para poder ir, bastava apenas pedir autorização à mãe.

    - Mãe, eu combinei de ir a uma festa com minhas amigas, a senhora poderia deixar eu ir? Eu prometo que não vou demorar, hein! A senhora deixa?

    Ela, sem pensar duas vezes, respondeu:

    - Não! Porque já é tarde, mais de 22 horas. E se mesmo eu deixar você ir, você não vai conseguir voltar no horário certo, né minha filha?

   A moça revoltada respondeu:

   - Eu vou sim! Nem que eu tenha de dançar com o Diabo!

  Então ela se trancou no quarto e fingiu que foi dormir. Depois de meia hora ela se levantou na ponta dos pés, pulou a janela e foi para a festa. Chegando lá, ela se enturma e vai para a diversão, começa a dançar com as suas amigas. De repente, um homem alto, morenão, corpo todo definido, bem arrumado, chega perto da garota e pergunta:

   - Você gostaria de dançar comigo?

  Ela responde:

   - É claro que sim!

  Então eles ficaram dançando horas e horas. Depois de muito divertimento, o moço fala à garota que vai ao banheiro, mas que voltaria logo. Só que demorou, demorou, demorou...e nada de ele voltar. Então ela foi atrás dele. Quando entrou no banheiro feminino ela viu escrito no espelho do banheiro: Você disse que viria para a festa e dançaria até com o Diabo. Seu pedido foi realizado: eu vim e você dançou comigo.

   Depois do susto, dizem que ela ficou muda.


sexta-feira, 14 de julho de 2023

FOI EMBORA

 

Akamaru na casa - Arquivo nosso


Foto: Maria Eugênia


     Akamaru foi o nome que Maria e Estevan deram ao pequeno cachorro que fomos  buscar na casa da Madalena, na Pedreira Baixa. Era uma bolinha preta encrespada com trinta dias de vida. De início ficava na varanda, fazendo a festa pra lá e pra cá, depois ganhou casinha no quintal: todo o espaço era dele. Disputava as jabuticabas com os passarinhos, se escondia no quarto de ferramentas, virava mudas de plantas porque era estabanado e curioso. Latia em tudo, fazia buracos, pulava em todo mundo que se aproximava. Adorava visitas!


     Akamaru envelheceu, estava para completar dezesseis anos. Segundo o rapaz da loja de medicamentos, essa idade equivaleria a cento e doze dos nossos. Portanto, a nossa companhia, o nosso fiel amigo era um ancião. Fazia tempo que já não enxergava, mas nunca esqueceu de ser carinhoso, de fazer festa com a gente. Tinha aquela tosse que os mais antigos chamavam de “tosse de cachorro velho”. De uns dias para cá a tosse estava lhe castigando, mas a veterinária não notou nada de anormal nos exames. Receitou uns remédios que nem tiveram tempo de fazer efeito.

    Ontem, no meio daquela crise toda, Akamaru saiu pelo quintal sempre acompanhado pela Maria Eugênia. Até na parte da frente, onde eu fazia uns trabalhos de mosaico, ele apareceu bem fraco das pernas. Naquele momento eu pensei: “Está se despedindo do quintal o nosso querido cachorro”. De fato, na hora do remédio, um pouco antes das 18 horas, findou o sofrimento dele. Aquela respiração sofrida deixou de acontecer. Nós choramos.

    Hoje o dia amanheceu faltando alguém que tinha o costume de chamar no portal da varanda, de estar dizendo que queria alguma coisa. Agora me lembrei que ele era o primeiro a dar sinal que eu estava chegando do trabalho tarde da noite. Nós continuaremos a sentir falta da presença dele, da fidelidade dele, da festa que fazia a de cada momento que íamos ao quintal. Akamaru foi embora, mas deixou as boas lembranças para a nossa família.




Foto: Maria Eugênia

domingo, 9 de julho de 2023

PROA DA CANOA








Canoas na barra - Arquivo Tempos d'antes

Capa do livro - Arquivo Santiago


     Canoa emborcada – para quem não sabe - é canoa virada, descansando depois de uma tarefa cumprida pelo povo do mar, das águas. Assim considero que deve estar se sentindo o estimado Santiago Bernardes, o “Santi”, ao finalizar mais uma obra literária. A canoa chega ao fim de sua viagem, mas a peleja dos caiçaras continuará contra os desdobramentos da especulação imobiliária e enfrentado crises na própria comunidade que se contagia com o fermento da discórdia, da cobiça, da tentação de copiar o opressor. A CANOA EMBORCADA pode ser um farol importante nessa navegação.

     Desde o começo da leitura eu percebi um lado fantástico entremeado de fatos históricos, cujo pano de fundo era a construção da BR-101, a Rio-Santos. Personagens reais se teceram pela história, nomes conhecidos e familiares se compuseram pela escrita talentosa do Santi. Eu me vi nas linhas vivendo importantes momentos, tal como admirar “o imensurável mar de estrelas frias e alheias às pelejas mundanas”, mas me orgulhando de pertencer ao “pequeno mar de gente” a se recolher “em si mesmo pelas recortadas costas do litoral atlântico”. Imaginei o autor de CANOA EMBORCADA no seu tranquilo refúgio no morro do Cambury. Quantas décadas se passaram desde quando, se arranchando na praia da Barra Seca com sua família, ele foi crescendo nas alegrias e resistências embalado pela maresia? E assim, conforme escreveu, “um tempo vai pagando o outro”. Tal como o povo do lugar descrito, eu vivi episódios parecidos: com jagunços em chão de Ubatuba, fui barrado com armas em punhos nas praias da Lagoa e do Simão, vi estradas destruírem patrimônios culturais e naturais. Em várias ocasiões, ao contemplar pescadores na labuta, imaginei-os em seus retornos “numa remada lenta para sua praia e, ao se aproximar, o escuro da praia foi sumindo dando lugar a um clarão de luzes de grandes casas e píeres tomando toda a orla onde havia os ranchos e telhados de sapê e as bananeiras”. A vida do povo do lugar era assim e agora é desse jeito. É preciso refletir a partir da memória do povo, talvez desemborcar e se recolher numa canoa. Afinal, “afastado da terra o homem começa a pensar”, se desapega, conversa em silêncio com personagens de outros tempos carregados da mística que nos fez brotar da terra que existe entre a serra e o mar.

     Assim como o meu amigo escritor, eu desejo que a gente descomplique a vida e cultive uma essência genuína conforme costume dos nossos antigos ao olharem o mundo “por uma janelinha de pau em suas madrugadas de vigília à espera do retorno das canoas”. De hábitos assim vem a força para ultrapassar as ondas, as arrebentações “no mar das gentes do mundo, onde os portos vão ficando distantes uns dos outros, os faróis se apagando, as canoas emborcando, o povo pelejando, pelejando e perdendo os remos pelo caminho”.

    Conforme eu já confidenciei ao Santiago, a Ilha dos Sumidos se torna a partir dessa sua obra literária uma ilha mítica caiçara, lugar onde muitas histórias precisam ser lembradas e contadas. O que mais poderíamos acrescentar e/ou descobrir no “jeito de ser do Antônio Rabequeiro”? O que fazer para redescobrir, reforçar a mística do povo que se fez entre roçados, pescarias e festejos? Como nutrir nossos espíritos para evitar que o nosso território não se torne um inferno aos seus moradores e visitantes?

     Enfim, desejo a cada pessoa que, ao ler CANOA EMBORCADA, consiga se imaginar na proa de uma canoa caiçara “conversando em silêncio com um outro vulto sentado no banco da popa”, se sentindo como um urutau “de olhos fechados, mas olhando profundamente o mundo”. Um cordão feito com um dente da tintureira herdado de meu pai, talvez muito parecido com aquele feito pela avó Manu (que tanto se assemelha à minha saudosa vó Martinha), me relembra do quanto é importante juntar nossas memórias caiçaras e nossas leituras para “conseguir ver o que muitos não veem”. O relato, ouso dizer, pode nos servir de farol enquanto “navegamos a nossa cota de existência”. Prezado Santiago: CANOA EMBORCADA cumpriu a sua tarefa! Prova primeira são todas as citações acima que me auxiliaram neste texto. Gratidão mesmo!

   



sábado, 8 de julho de 2023

QUANTO SÃO DE PASSARINHO?

 

João Alegre e Renato Teixeira - Arquivo Tempos d'antes

VIOLA, MINHA VIOLA

      A minha lembrança de antigamente, quando menino ainda, era de se admirar ao ver grande parte das casas caiçaras de pau-a-pique com o piso da sala assoalhada, tendo o restante dos cômodos no chão duro. Fui entender a razão apenas quando era dia de festa, de dança.  O tablado respondia ao bater dos pés nas funções (bailes). Assim, bate-pé era sinônimo de dança entre o meu povo. (Fico imaginando o desespero do lagarto que morava debaixo das tábuas da sala do Nhonhô Armiro, na praia da Fortaleza, nas noites de bate-pé). Hoje, recorrendo às anotações do Olympio Corrêa de Mendonça, transmito a contribuição de Mané Mancedo, do Ubatumirim, acerca da dança chamada marrafa, uma cantiga executada na dança da ciranda nas funções. Num de seus passos, formam-se duas rodas: a externa, dos homens, e a interna, das mulheres que dançam em sentido contrário ao dos cavalheiros. A marcação fica ao encargo dos violeiros, sendo o momento mais redundante aquele em que as damas, balanceando em torno dos respectivos pares, em evoluções sucessivas, alternam-nos. A cantiga, rasqueada pelas violas, é empolgante como as demais cantorias locais. Acompanhe o Mané Mancedo. Saudações à caiçarada que toca em frente nossas cantorias e danças. Grande estima eu tenho por vocês.

 

Viola, minha viola

Viola, meu violão;

Quebra na marrafa

Viola, meu violão;

Minha viola conhece

O punho da minha mão.

 

Me chamo Manoé

Me conhecem por Maneco;

Quebra na marrafa

Eu canto de peito aberto;

Quem apanhô foi o galim

Quem morreu foi o marreco.

 

Fiz a casa no arto

Do arto se enxerga tudo;

Quebra a marrafa

Do arto se enxerga tudo;

Esperando meu benzinho

Quando vorta do estudo.

 

Marrafa é boa dança

Veio de Montevidéu;

Quebra na marrafa

Veio de Montevidéu;

Ainda onte uma ave pousô

Na aba do meu chapéu.

 

No cabo dessa viola

Eu faço guerra civi;

Quebra na marrafa

Eu faço guerra civi;

Em cima da carabina

Eu faço cama pra dormi.

 

Peito que canta firme

É peito curitibano;

Quebra na marrafa

É peito curitibano;

Eu canto dia, canto a noite

Pois canto à roda do ano.

 

Viola, minha viola

Vamo no campo chorá;

Quebra na marrafa

Vamo no campo chorá;

Você sabe nome bão

Pra onde eu vá mariscá.

 

A tainha é um bom peixe

Que corre na costa do má;

Quebra na marrafa

Que corre na costa do má;

Quando chega no baixio

Logo se põe a sartá.

 

No embalo dessa moda

Que minha boca falô;

Quebra na marrafa

Que a minha boca falô;

No peito sarta saudade

No coração o amô.

 

No dia que eu morrê

Me interre no chapadão;

Quebra na marrafa

Me interre no chapadão;

Dexando uma mão pra fora

Com seu retrato na mão.

 

O sinhô que me descurpa

O momento já que está;

Quebra na marrafa

O momento já que está;

Eu vô dá uma corridinha

E a viola já vô pará.

 

Um pau com trinta galho

Cada galho tem seu ninho;

Quebra na marrafa

Cada galho tem seu ninho;

Cada ninho trinta ovo

Quanto são de passarinho?

 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

QUEM PARIU MATEUS?

 

Em primeiro plano: Igreja da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos - Arquivo Ubatuba Antigo


      “O filho da Magda, gente nossa, menino bom que também se fez gente comendo sapinhauás e outras iguarias da nossa cultura, há anos se embrenhou mato adentro do sertão [porque não pode competir com a especulação imobiliária junto à praia, na restinga onde a família toda habitava há gerações], escreveu dias atrás que vai votar em quem o inelegível (imbrochável, imoral, inescrupuloso...) indicar”. Este foi o comentário da querida Ana assim que eu cheguei para uma visita rápida. Comentei imediatamente que eu já desconfiava disso. Afinal, ele está, desde que o pai faleceu, trabalhando como segurança num condomínio, guardando casas de ricaços. Além do mais, se tornou um fundamentalista católico, do tipo que "recebe revelações, fala em línguas etc.". Sem contar que a parentalha por parte da esposa é quase toda reacionária. “Pobre caiçarada!”.    A Ana concordou com a minha fala, mas logo tascou: “Mas ele não era tão atuante, não vivia com vocês nos movimentos do bairro, escola etc.?”. “Isto é verdade!”. Concordei.

        Eu creio, no fundo, que atitudes semelhantes ao do filho da Magda se trata de uma anomalia, uma falta de autonomia reflexiva que deságua na “consciência” tecnológico—científica notório em pessoas que até ontem não esperava nada disso. Toda evolução que tivemos, que vivemos desde a sobrevivência à base da farinha com peixe e banana verde, está representando para muitos caiçaras um obstáculo ao nascimento de uma nova consciência. O “desenvolvimento” que nos assaltou nos últimos tempos, de umas décadas para cá, é de perpetuação da exploração, da negação de uma maturidade humanitária. Ou seja, continuam inabaláveis as estruturas conservadoras de controle de atitudes, de comportamentos alimentadores do individualismo e do egoísmo. Em relação ao povo caiçara (e aos pobres migrantes!), as tentativas ideológicas e sociopolíticas se valem, sobretudo, da religião e da limitada formação cultural. Daí a fundamental importância das mentiras nas redes sociais (fake news) servindo de alimento, dando sustância. Grossamente falando, o desenvolvimento maduro desaparece na linha do horizonte; nem das grimpas dos morros o avistamos. Podemos regredir à barbárie? Sim, é possível!

        Estamos nas garras das palavras! Renegamos nossas raízes, aplaudimos quem deseja a nossa própria morte porque abraçamos um racionalismo equivocado. O maior desafio é recuperar a Fonte da Vida. Acredito que a maioria de nós está cheia de lembranças de seus sonhos, mas não consegue dar assistência a uma nova e restauradora consciência da humanidade aí implícita. Desse modo, fica difícil o alcance da plenitude do ser humano.

         Na despedida, a Ana resumiu a prosa: “Quem pariu Mateus que o embale!”. Eu puxei a brasa para a filosofia, me lembrei de alguém que escreveu que a atitude filosófica pode ser resumida como “um movimento do mythos para o logos”. Sendo assim, não adianta ter cabeça de homem, mas agir como um animal irracional retornando à barbárie como uma espécie de touro devastador da evolução cultural. Conclusão: precisamos de uma nova via de questionamento, de redescobrir o segredo da dialética que sustenta a civilidade. Me recordo neste momento da figura da vovó Eugênia se abaixando, ficando da altura da netalhada pequena para dispensar toda a atenção possível: lição de nossas raízes caiçaras!

        Como viverão meus descendentes neste cenário de aliados se debandando, transformados em agentes da nossa destruição e da extinção da utopia de um mundo melhor?

        “Quem pariu Mateus que o embale!". Quem o pariu?

quarta-feira, 5 de julho de 2023

A FAZENDINHA

 


 

Bruxinha - arte da Gal (Arquivo JRS)

        Maria Eugênia, minha filha, há poucas semanas começou a expor suas/nossas artes e algumas mudas de plantas na Feira Agroecológica. Não sabe o que é? Explico: é uma feira onde predomina a comercialização de alimentos, artes e outros produtos produzidos de forma saudável, com o máximo de respeito ao meio ambiente e aos consumidores, nos moldes da agricultura familiar e da economia solidária. O local, onde fica?   No centro da cidade de Ubatuba. Ali, na rua Orlando Carneiro, 422 –  Aos caiçaras de outros tempos digo que é no antigo matadouro, quase chegando na ponte de balanço; aos mais novos  chamo pelo nome de Sítio do Ilhado. O ponto agradável para qualquer idade   já é conhecido por mim há um certo tempo, desde quando apenas a Rosa e mais dois ou três ofereciam seus produtos cultivados em família. Era – e é! –  uma alternativa para se livrar dos adubos químicos, dos produtos causadores de tantas doenças na modernidade. Eis o principal motivo que nos fez buscar essa via. Porém, hoje eu encontrei alguém que me fez pensar em como ajudar as pessoas a acharem, a descobrirem esse local maravilhoso, com pessoas e coisas incríveis. Foi assim: eu estava indo de bicicleta, bem tranquilo, quando um carro parou logo adiante. De dentro dela uma senhora perguntou: “Você sabe onde é a fazendinha?”. Talvez por eu estar na proximidade, perto do ponto onde era o matadouro antigamente, logo deduzi que ela queria chegar à Feira Agroecológica. Então expliquei, indiquei a direção e fiquei torcendo para que ela visse a entrada, quase chegando na ponte de balanço, um acesso à BR 101 e ao bairro da Pedreira. Portanto, o lugar ainda é pouco conhecido, falta mais sinais indicativos (faixas, placas etc.).  Eu poria na entrada do sítio uma faixa com a seguinte frase: “Aqui é a Fazendinha – Feira Agroecológica Caiçara de Ubatuba”.

      Um dia por semana, na quarta-feira (das 9 às 14:30 horas), há de tudo um pouco produzido por pessoas que acreditam num mundo melhor para todos. Passa lá e confere.  

terça-feira, 4 de julho de 2023

AS PALAVRAS FAZEM O MUNDO

 


Professora Valda e eu - Abril/2023 - Arquivo Má



        "No começo era a Palavra". Neste tom começa a narrativa de uma grande epopeia antiga originária no Levante, no Oriente Médio. Estou cada vez mais convicto de que a palavra põe tudo em movimento. Começo assim depois de me reencontrar com duas pessoas queridas: Jessé e Telma, ex-alunos maravilhosos que nunca deixaram de ter uma boa prosa comigo. (Quero salientar que tais momentos nunca foram planejados, que acontecem nas andanças da vida, no corre-corre). Nessas ocasiões eles me recordam um monte de momentos, curiosidades e desafios que perseguimos graças à vida escolar e ao empenho de gente como eles.  Eu aprendo muito com esses eternos estudantes que abraçaram o Magistério e se realizam em suas aulas. Não é maravilhoso?!?


O escritor Malba Tahan conta que o saudoso professor Tales Melo, um grande matemático brasileiro, ao visitar o Ginásio de Friburgo, teve ocasião de palestrar com vários alunos. Em dado momento um adolescente, em tom muito sério, perguntou:

                - Que idade o senhor tinha, Dr. Tales, quando descobriu esse teorema que tem o seu nome: Teorema de Tales?


                A introdução acima foi só para entender o que contarei agora: no meu segundo ano escolar, na Escola Agrupada do Perequê-mirim, no tempo em que sentávamos em duplas naquelas carteiras de ferro e madeira maciça com um buraco para tinteiro no meio do tampão, tendo a professora Valda como mestra enérgica, o meu colega de assento era o Joãozinho Góis que adorava conversar. Era muito espirituoso, estava sempre soltando suas gracinhas. Em decorrência disso, num dia eu levei o pior. Foi assim:

                A professora era brava, “descia o braço” quando alguém nem extrapolava os limites da disciplina. Numa manhã, logo após a volta do recreio, estando a professora escrevendo  a atividade na lousa, o danado tascou:

                - Professora, a minha mãe comprou um remédio da senhora.

                - Meu remédio? A sua mãe comprou? Como assim? Eu não tenho remédio nenhum para vender!

                - Ah é! Então amanhã eu trarei a latinha como prova, onde se lê Pastilhas Valda. É mentira minha?

                No mesmo instante, estando perto de nós e não se conformando pela intromissão no roteiro da aula, enquanto todo mundo ria alto, ela partiu para dar um tapa no abusado. Porém, o danado abaixou a cabeça, se desviou. Adivinha quem recebeu o tapa com muita força? Eu! Afinal, era eu quem formava dupla com ele. Só que, ao contrário do filho do Seo Dito e da Dona Preciosa, eu era bem quieto durante as aulas. Ela se desculpou comigo e em seguida, aí sim, se voltou para o Joãozinho sem ter como errar pela segunda vez.

                Em tempo em que a profissão de professor está tão desprezada pelo Estado (e por alguns pais e alunos!), quero homenagear os meus primeiros mestres: Olga Gil, Valda Virgílio, Pedro Eurico, Oberdan e Osmildo Meireles. Faz tempo isso, quando tínhamos aula até no sábado! Foi ali, nos poucos livros disponíveis na escola, que eu cultivei o gosto pela leitura, que fui me fazendo pelas palavras. É impressionante como elas nos ajudam a cada instante, sobretudo quando somos trabalhadores numa sala de aula! Só tenho a agradecer ao Jessé, Telma e toda moçada que me fortalece após esses reencontros e esses anos todos.

                Em tempo: aquela frase lida naquele tempo, quando tínhamos aula de leitura aos sábados, não me saiu da memória:

“No Japão todos creem firmemente que sem professor  não há imperador”.