quinta-feira, 31 de março de 2011

Há cruzes! Há Santa Casa! Há Santa Cruz de Ubatuba!

        
         Dia horrível este. A companheira, a minha Gal está doente. Todos os sintomas levam a crer que, pela segunda vez, ela contraiu dengue. Daí o motivo que, em todas as oportunidades cobro das pessoas, principalmente das autoridades que se sustentam com nossos impostos, que não cessem de fazer a sua parte.
         Eu faço a minha parte! E continuo não aceitando o que para alguns é normal (carros abandonados na mata ciliar e em terrenos baldios, sucatas a céu aberto, lixos por todo lugar, áreas públicas parecendo “terra de ninguém” etc.).
         Na lista para perícia médica municipal são muitos os causos. O principal foco está no centro da cidade, onde, teoricamente, moram os mais próximos de recursos e de informações.
         Hoje, na Santa Casa, muitos apresentavam os mesmos sintomas da minha esposa. Outro tanto estava com conjuntivite. Ainda bem que, há muito tempo, a Irmandade do Senhor dos Passos pensou na Santa Casa, o nosso único hospital até hoje. “Aos pobres desvalidos”, diziam orgulhosamente os irmãos (católicos), “há Santa Casa”.
         A Santa Casa da Irmandade do Senhor dos Passos foi decisiva na elevação da vila à categoria de cidade, em 1º de abril de 1851, conforme atesta o documento da Assembleia Legislativa Provincial. Ou seja, faz parte dos requisitos para ser cidade: ter cemitério (isso é fácil!), cadeia pública (também não dá trabalho!) e hospital (o que é difícil!). Mais difícil ainda é mantê-lo funcionando satisfatoriamente nos padrões de atendimento, de higiene e de tecnologia. Bom seria se os gestores de todos os tempos, nunca se omitissem em zelar pela vida dos que nesta cidade vivem (ou tentam viver). Hoje eu vi enfermeiras se desdobrando para atender um mundaréu de gente. Uma delas assim expressou a sua angústia: “Eu não importo em atender tanta gente. O que me preocupa é se eles, sofrendo assim, conseguem esperar chegar a vez”.
         1º de abril de 1851: nasceu a cidade de Santa Cruz de Ubatuba. Hoje, século XXI, somente Ubatuba. Ainda bem que a Santa Cruz já não pesa em nossos ombros! Quando, sobre os meus ombros, uma das minhas “crianças” leu este parágrafo, completou:
         - É mesmo, pai! Mas será que desaparecer do nome significa sumir de nossas vidas?

quarta-feira, 30 de março de 2011

Carta em rosa e branco de tinticuia

                  As tinticuias estão floridas, marcando o final do verão (ou, se preferir, o tempo quaresmal). Elas também são chamadas de manacá da serra e de quaresmeira.
         Até bem pouco tempo, no cotidiano caiçara, quando a produção de farinha de mandioca, além da sobrevivência ainda garantia a subsistência, o pau da tinticuia, juntamente com caneveteiro, imbaúbas e outras árvores de crescimento rápido, características de áreas em regeneração, eram preferidas para alimentar os fornos ainda nas madrugadas. Deles saíam farinha, beijus, bolos, milho assado e quirera.
         Lenhar fazia parte do cotidiano. Até se viajava em canoas a outras praias em busca de boas lenhas. Vivi  muitas ocasiões de mutirão para tal tarefa. Qualquer árvore seca era pau de lenha. Em todo quintal, geralmente perto da porta da cozinha, onde ficava o fogão, localizava-se o rachador de lenha rodeado de cavacos de pau. Era uma tora resistente deitada que recebia a madeira a ser cortada. Quase sempre ostentava um machado cravado numa das extremidades como uma tentação, se convidando  para ser usado. Lembrava, recorrendo à literatura inglesa, a espada encantada enterrada na pedra à espera de Arthur, o futuro rei. Por isso que acontecia muitas vezes de passantes pelo terreiro (ou cisqueiro) se exercitarem gratuitamente, além de contribuírem com algumas achas de lenha. Nisto adiantava o lado de alguém, era solidariedade. Em troca, às vezes, até aceitava um “gorpe de café intirume”.
         As tinticuias estão floridas!
          Na serra, a partir de quem olha do campo do Horto, é possível notá-las delineando o antigo traçado da via de acesso aos lugares de Serra Acima. Só de longe ou de cima as divagações se manifestam. Então vemos tropas de cargas, estafetas, tráfego (e tráfico!) de cativos. Lembramos a lenda da Cruz de Ferro, onde Dorinho vingou-se pelo velho pai.
         Virando a serra, onde as matas se regeneram, ondas e mais ondas de tinticuias embalam os viajantes. Olhares devoram tamanha beleza!
         Porém, inveja mesmo eu tenho do Roberto e da Cristina que, sossegados à mesa, num sítio em Natividade da Serra, desfrutam de uma “colcha de tinticuias” maravilhosa no morro defronte. Ontem, 29 de março, foi o aniversário do Roberto. Parabéns! Muitos caiçaras agradecem pelos auxílios médicos deste casal.
         Da terra da maresia mandamos um grande abraço. Até Breve!

terça-feira, 29 de março de 2011

Matadeus e Carioca: seguidores de Jesus.

Todos já sabem da importância da repetição e da tradição oral para aprendermos um monte de coisas. Se isso tem um grande valor hoje, no início do século XXI, imagine em outros tempos, quando até mesmo os livros eram mercadorias raras e poucos sabiam ler. Assim, escutar aquilo que os outros sabiam era de uma satisfação imensa, sobretudo quando éramos, na nossa infância, sedentos por saber e transbordantes de curiosidade em relação ao mundo e às demais culturas. Fiz tal introdução para contar de uma contadora de causo: tia Maria da Barra, irmã da vovó Eugênia.
                A tia Maria era a tia de todo mundo. A sua casa sempre apresentou uma grande movimentação. Quanta coisa linda tinha por ali! Na mesa da sala estava o que mais despertava a nossa atenção: um oratório. A partir dele ouvíamos as narrativas daquela humilde mulher. Lá, partindo de uma gravura onde era retratada a via sacra de Jesus Cristo, aprendi meus primeiros passos na catequese.
                 Aproveitando uma tarde escura, com relâmpagos se derramando na linha do horizonte, a tia Maria falou da construção do mundo em seis dias e do dia sagrado de descanso. Depois explicou que, “da ingratidão humana, veio o pecado e aquele enviado para ensinar os homens a vencerem o mal”. Continuou a titia: “porém os homens rejeitaram o filho de Deus, entregando-o para a crucificação”. Nessa parte, pegando um martelo e alguns pregos enferrujados, ela batia na mesa bamboleante. Era medonho o barulho e a caretas significando os pregos perfurando carne, nervos e ossos. De repente, pegando uma bacia e uma concha, o cômodo vibrava todo com uma grande barulheira. Dizia a narradora que “semelhante barulho se ouviu pelo mundo inteiro quando Nosso Senhor Jesus Cristo expirou” e “as coisas se partiram, no mundo inteiro, semelhante à cortina do templo”. Depois completava: “Vocês não viram ainda aquela pedra imensa lascada sobre a Lage Grande? Pois é! Também é daquele tempo, daquele momento de sofrimento do Santo”. De ato em ato, de fala em fala, recorrendo aos meios que tinha na casa aprendemos tudo (ou quase tudo). Até decoramos os seguidores de Jesus, inclusive os dois Judas: o Matadeus e o Carioca. Bem mais tarde pude fazer as devidas correções; afinal, um era o Judas Tadeu, enquanto o Judas Iscariotes foi aquele que traiu, recebendo por pagamento algumas moedas.

Sugestão de leitura: A obra em negro, de Marguerite Yourcenar.
                                Boa leitura!
                       José Ronaldo dos Santos

segunda-feira, 28 de março de 2011

Zé Bráz e o fim do mundo

                              No ano de 2005, recordando-me de algumas  histórias  contadas  por dona Francisca "Santa",  da  praia  do  Perequê-mirim,  senti  vontade  de   escutá-las   novamente. Telefonei para a sua filha Nilsea e marcamos um encontro. Foi   um   dia  maravilhoso! Saí encharcado pelo banho de cultura que as duas esbanjaram!
            Apresento, hoje, de forma resumida, a façanha do Zé Bráz. Desta família tradicional do lugar eu somente conheci o João Bráz. Os seus descendentes são poucos, e, por enquanto, não mostram interesse pela memória interessante de seus antepassados. Eis o causo:
            Há cem anos, mais ou menos, na praia do Perequê-mirim, morava um solteirão por nome de Zé Bráz. Muitos diziam que ele era meio tonto, desequilibrado, mas não é isso que se conclui depois de analisar os seus muitos feitos. É o contrário!  Ele era muito astucioso, capaz de elaborar os melhores planos com a intenção de pregar boas peças nas pessoas. Era um verdadeiro maroto!
            A história do fim do mundo é a sua mais famosa elaboração. Veja a engenhosidade dele: primeiramente divulgou uma história. Anunciava a todos que “no dia 25 de março o mundo vai acabar. Todos devem se preparar para perceber o principal sinal em cima do mar, pois ele vai pegar fogo e vai ser o fim de tudo”.
            Quando se aproximava a dita data, Zé Bráz preparou uma balsa com talos de bananeira e colheu muito capim seco. Depois, já no referido dia, com sua canoa rebocou pacientemente (e escondido de todos!) aquela jangada até a costeira da ponta da praia da Santa Rita. Bem para lá da Pedra do Sino, num ponto bem distante da praia, de onde os moradores dos vários pontos e praias tinham uma boa visão.
             Naquele tempo as pessoas cumpriam um ritual no serão, ou seja, na chegada da noite todos iam até o porto (chegada dos caminhos no jundu) mais próximo para dar uma última olhada no mar. Até proseavam um pouco antes de se retirarem para o repouso da noite. Sabendo disso desde que arquitetou a ideia (que as pessoas estavam no lagamar admirando o crepúsculo), o astucioso acendeu a tal balsa. Aí, as pessoas, muitas delas já apreensivas e angustiadas por causa da história que era de domínio de todos, reconheceram o tão profetizado sinal: o incêndio no mar.
            Foi um desespero só! Gritavam, choravam, chamavam os filhos para ficarem juntos até o momento da morte.         É preciso lembrar que as pessoas eram simples e respiravam numa atmosfera de temor religioso? Isso bastou para tornar a armação bem verídica!
            A sorte foi que alguém percebeu a canoa do Zé Bráz nas proximidades do mar em fogo e matou a charada. Logo tudo voltou ao normal. E assim uma brincadeira tão distante de nós passa um pouco do ser caiçara: engenhoso, religioso, irreverente, contemplativo e astucioso.

sábado, 26 de março de 2011

Pau cheiroso


                  Em certa ocasião,  na praia  da  Enseada, vindo de uma pescaria com o meu pai, vivi uma oportunidade única:  escutar o velho Henrique, o Fabiano e o Bráulio contarem causos de canoas.
                O velho Henrique, na ocasião, trabalhava na guarita da entrada da praia para impedir que os carros ficassem passeando pela areia, no lagamar; Bráulio Rocha era caseiro de um ricaço, no Canto da Bá; Fabiano fazia canoas. O comum a todos: eram caiçaras, adoravam conversar e sempre estavam combinando pescarias.
                 Meu pai, grande amigo deles, também tinha tais características. Foi ele que começou falando de canoa; disse que ficou impressionado por uma delas na praia do Puruba, cujo nome era Sacrifício, devido o trabalho que deu para trazer de onde foi cortada a timbuíba até chegar no rio da Escorregosa, no sertão do Cambucá, para depois navegar  por toda a baixada do Puruba até o rancho, na boca do rio. Quem quiser conferir tá lá: é a canoa preta repleta de redes. Ao lado dela, no mesmo rancho, tem duas azuis. O finado tio Durval dizia: “São as minhas queridas”.
                Em seguida, o Bráulio, da família Rocha (de muitos contadores de causos), explicou o nome da sua embarcação. Tinha o nome de Meu bem querer por escolha de sua companheira, representando o amor que os unia.
                 O Dito Henrique, já bastante idoso, devia ter inúmeros causos de canoa, mas contou de uma lá da praia da Fortaleza. Tratava-se de uma canoa rombuda, curta e grossa, de capurubu, com um mínimo de acabamento, “feito só no machado” conforme expressão usada nesses casos. Porém, era uma canoa própria para cargas. O nome dela: Cu grande, cujo dono a era o tio Genésio, filho do nhonhô Armiro, “um homem de coração tamanho do mundo”. Por isso que, sempre que alguém tinha uma boa carga, logo dizia: “Vou na Cu grande do Genésio; só ali cabe uma montoeira de coisas”. E ele emprestava prontamente a canoa que mais podia ser chamada de Feiosa, conforme conclui o velho Henrique.
                 Finalmente, o Fabiano, pai do nosso amigo José Carlos Góis, que terminava uma canoa feita de canela-bosta, lá no Morro do Funhanhado, disse:
                - Depois de ouvir vocês me inspirei para dar nome à minha canoa. No mês que vem, por ocasião da pegadeira de peixe-porco, ela romperá a arrebentação das ondas com o nome de Pau cheiroso.
                Todos riram e concordaram que era o nome mais apropriado nesse caso.

                Sugestão de leitura: O chalaça, de José Roberto Torero
                                                                                Boa leitura!
                                                                               José Ronaldo dos Santos

sexta-feira, 25 de março de 2011

Uma caapora é parte de mim

Devo a inspiração deste ao amigo Jorge Ivam, de um presente dele. Trata-se de uma poesia de Demóstenes Cristino que serve para rememorar, nas minhas raízes, o meu lado tupinambá.

                   
   
       




                        Eu tenho um bugre dentro de mim, tenho...
                        Sinto-o nesta paixão antiga por caçadas,
                        No prazer infantil de andar no mato,
                        Na profunda afeição pelas coisas agrestes.

            É muito gratificante aprender com o senso comum, com as ciências, com a filosofia... Mais prazeroso é aprender com as artes, com a poesia que diz aquilo que sentimos, mas que ainda não aprendemos a dizer.
            As palavras inspiradas, na referida poesia, são como oráculos rememorando a pureza dos primórdios étnicos, os compromissos decorrentes disso, as percepções do espírito caiçara.

                        Eu tenho um bugre dentro de mim,
                        Diluído no meu sangue, tenho...
                        Sinto que ele me arrasta
                        Para a fragrância balsâmica das matas,
                        Para a música das cachoeiras,
                        Para as noites leitosas de luar,
                        Para a majestade serena dos grandes rios,
                        Para o marulhar cantante dos regatos,
                        Para o verde dos mares,
                        Para o azul dos céus,
                       Para o silêncio repousante dos lagos adormecidos...

            O meu avô Estevan, da Caçandoca, filho de Francisco Félix (vitimado pela gripe espanhola no início do século XX), dizia que seu bisavô casou-se com uma caapora, ou seja, uma índia aprisionada nas matas da Serra da Ponta Aguda.
            Caapora era o bugre. É o nosso lado indígena que nos revelou o boitatá nas noites maravilhosas de nossas praias como se alertasse para a pesca predatória. É a nossa porção indígena que nos convida a ver a Mãe-do-ouro deslocando-se sobre a mata, servindo como baliza ambiental (para respeitar esta mata como um todo interdependente em todas as vidas e fenômenos que compõem a Serra do Mar). Já a Iara, a mãe-d’água, regia os lagos e os rios, inclusive as alterações de percursos. A sua justiça resultava em fartura de camarões, sururus, piabas, cágados, muçuns... Dava satisfação ver balaios, covos e cercos abarrotados. Encher puçás na arrebentação das ondas. É de se imaginar?!
           É, ainda, a herança caapora da cultura caiçara que recomenda: a cada noite deve se sonhar sonhos bons para dar novos passos no dia seguinte.
            Encerro este com a lembrança de uma fala do Silvio (Nenê) Fonseca: “Eu acho que nasci em tempo errado. O que eu gosto são as lembranças de outros tempos, diferentes das de hoje”.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O chifre que cura

            Os mais antigos falam das dificuldades dos “tempos d’antes”. É comum ouvir algo sempre assim, ou parecido com isto: “Antigamente tudo era dificultoso; não tinha estrada. Pra ir por mar dependia do tempo”. Eu fico sempre imaginando a situação quando alguém ficava doente! Talvez fosse por isso que quase todo mundo sabia um monte de remédios caseiros; tinham na memória nomes de plantas, simpatias e outras coisas do gênero. Também havia elementos estranhos, bizarrices no dizer de hoje. Você já imaginou chá feito a partir do cupinzeiro? Ou do picumã e do colar de capiá? E o que dizer do fumo com urina para curar frieiras? Porém, o que mais me intrigava era ver em quase todas as casas, pendurado nas travessas, chifres. Eles eram muito usados: geralmente depois de torrado e raspado, o pó era usado para combater uma série de doenças, principalmente aquelas relacionadas a vermes. Na casa do meu avô Almiro tinha dois: um curtinho, queimado pela beirada; outro novinho, sem uso. Acho que servia como sobressalente, para substituir o primeiro que já estava próximo do fim.
             Então, lá vai o causo: Armindo, pescador do lado do Norte, num tempo de mar grosso, precisou vir às pressas na cidade. Além de ter de resolver algumas coisas, tinha um filho adoentado sem que nenhum chá fizesse efeito. Andava pelo centro apressado, cumprimentando os conhecidos e prestando atenção nas novidades. Nisso encontrou um compadre, justamente o padrinho do filho que não passava bem. Foi logo lhe informando:  “Ó compadre Zé Mesquita, foi bom encontrar o senhor! O seu afilhado está muito doente; ainda agora estou indo para a farmácia do Filhinho para comprar um remédio. Tomara que ele tenha um bom, porque lá em casa, desconfio eu, já se tentou de tudo. A mulher já começa a ficar desesperada!”. O outro, meio sem jeito, se desculpou dizendo, como se devesse alguma coisa:  “Eu devo cortar banana nesta quinzena, mas antes do tempo da tainha eu vou até a vossa casa ver o menino. Por enquanto não posso fazer nada; só rezarei para que Deus olhe por ele, por nós todos”. Despediram-se; cada qual tomando o seu rumo.
            Depois de muitos meses, quando o Zé Mesquita, um bom pedreiro, morador bem dizer do centro da cidade, até tinha se esquecido do afilhado doente, novamente os dois compadres se encontraram perto da Mercearia Paulista. Era tempo de Festa do Divino; a tainha já nem era tanta. O coração da cidade era só enfeite: tudo tinha a cor encarnada e fitas coloridas. Na porta da igreja –a matriz- ficava a guarda da bandeira, onde os devotos paravam para beijar a pombinha, se demorando na admiração dos enfeites do interior do templo. Ali se respirava o sagrado. O assunto dos dois sobre a festa do momento logo se esgotou. Então, meio sem jeito, o compadre da cidade perguntou do afilhado: “O menino está bom, melhorou bem?”. Todo entusiasmado o pescador respondeu:  “Está uma maravilha! Curadinho, com a graça de Deus!”.  “Ainda bem!” – Suspirou o padrinho desnaturado. E continuou:  “Quer dizer que o Filhinho acertou no remédio? Qual é o nome?”. De pronto o Armindo respondeu cheio de satisfação:  “Ah! Não foi o Filhinho não quem indicou o remédio”. Cheio de orgulho arrematou a conversa:  “Eu tirei da cabeça: peguei um chifre, torrei, raspei e dei na água morna para tomar. Foi tomar e curar; uma luz que se acendeu!”.
            Essa sabedoria caiçara até me assusta! Para encerrar, acho imprescindível a obra de Hans Staden -Duas viagens ao Brasil. Nela é possível reconhecer alguns conhecimentos que se perpetuam até hoje.
                                  
                                                              Boa leitura!
                                                              José Ronaldo dos Santos

terça-feira, 22 de março de 2011

O Upa e o Cupa

                        Ainda hoje, conversando com as pessoas mais velhas da nossa cidade, é comum ouvir sobre o tempo em que, querendo um trabalho remunerado, tinham que se deslocar para a cidade de Santos, onde os bananais estavam em expansão no início do século XX. Isso perdurou até por volta de 1950. Muitos caiçaras de Ubatuba cumpriram um tempo na Baixada Santista; data desse tempo o crescimento do porto, onde ocorreram muitas contratações. Depois veio a industrialização, sobretudo em Cubatão. Assim, alguns dos “que foram para a batalha por necessidade” nunca mais voltaram. Por isso que, pesquisando por Santos, São Vicente e Vicente de Carvalho, no início de 1990, tive a felicidade de entrevistar vários desses migrantes caiçaras de Ubatuba. Muitos deles eram meus parentes desconhecidos até então. Mesmo o meu pai que tem somente 75 anos passou um tempo por lá. Essa movimentação é algo comparável aos mineiros e outros migrantes que buscam o nosso município desde a década de 1970 para ganhar dinheiro, pois seus lugares de origem têm uma economia estagnada.
            Depois, com a navegação de cabotagem, inúmeros barcos (Ubatubinha, São Paulo, Santense  etc.) faziam a linha regular entre a costa norte e a região santista. Era quando os caiçaras compravam mercadorias nos barcos, mas também vendiam seus produtos (ovos, farinha de mandioca, palha para fazer chapéu, pimenta, banana, óleo de fígado de caçoa etc.). Passeio maravilhoso era poder ir até a cidade de Santos, reencontrar com os parentes; “ver outra civilização” conforme dizia a finada tia Martinha.
            Por falar em tia Martinha, ainda tenho na lembrança, por ocasião de seu retorno, logo após o desembarque, a sua empolgação. Primeiramente ela espalmou uma mão e, com o indicador da outra, traçava umas linhas imaginárias, dizendo: “A cidade de Santos é assim, assim, assim...” Para nós era o máximo saber que a titia, demonstrando rua por rua, já conhecia a cidade inteira. Na sequência, ela se empenhava em detalhar os pontos turísticos, sobretudo as ruínas das fazendas dos primeiros empreendedores da capitania. Porém, alegria maior era falar das igrejas. Empolgada como uma adolescente descrevendo o primeiro show, onde viu de bem perto o seu ídolo, assim narrou a titia:
            “Coisa maravilhosa é ver aquelas grandes embarcações, as cargas de café, de banana e de tantas outras coisas. No porto vi uma rua, onde as mulheres eram chamadas de 'meninas de vida fácil'.  A minha prima me levou para conhecer um clube num dia de baile. Aquilo que é ‘arrasta pé’! E as igrejas? Tem uma montoeira! Fui na Aparecidinha, na de São José Camaroeiro; perto desta, numa gruta, conheci São Cricalho, padroeiro dos intransigentes. Mas coisa de louco mesmo é a Igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat! Para a gente chegar no alto do morro tem duas formas: ou a pé ou de trenzinho. Coisa bacana o tal trem! São dois e funciona deste jeito: o peso de um descendo faz com que o outro suba. O primo Domingos até explicou a engenharia, mas agora não sei contar direito. Só sei que o povo colocou-lhes o nome de Upa e Cupa. É assim: enquanto o Upa sobe, o Cupa desce”. Neste ponto,  todos “se riram” até chorar.

            Leitura recomendada: Baudolino, de Umberto Eco.

                                          Boa leitura!
                               José Ronaldo dos Santos

segunda-feira, 21 de março de 2011

O dente da tintureira

          
            Era uma tarde normal. O que fugia da normalidade era estar no Posto de Saúde à espera de uma consulta com o cardiologista. Enquanto transcorria o tempo, eu aproveitava para ler um livro. A concentração era tamanha que nem sequer percebi a chegada do amigo Zé Lucas. Coisa melhor não poderia acontecer! Ele é um bom contador de causos, principalmente do longo tempo que viveu embarcado, tal como muitos caiçaras da geração de 1950.  Em todas as ocasiões de encontros assim, faço questão de ouvir mais e mais causos. É do meu povo; são minhas raízes!
            - Conta, Zé! Fala de situações que muitos nem sonham ser possível!
            - Pois não, xará! De fato, elas são muitas! Uma delas impressionou demais a tripulação do barco no qual me aposentei como mestre. Foi assim: estávamos muito longe da costa, na pesca de atum. Era noite calma, somente o timoneiro estava atento, dois marujos a jogar dominó lhe faziam companhia no convés. De repente, o barco de quinze metros de comprimento por cinco de largura, tendo sido batizado há um semestre, deu uma chacoalhada brusca, parecendo se imobilizar momentaneamente. Quem estava desperto quis gritar na hora, quem dormia se sobressaltou. Logo todos estavam no convés querendo saber o que tinha acontecido. Alguém falou que poderia ser uma madeira ou algo parecido que bateu na hélice, porém o timoneiro, no mesmo momento, descartou tal possibilidade assegurando que o motor, nem por um segundo, perdeu a rotação costumeira. Ainda surgiram alguns palpites, mas, pelo fato de todos estarem cansados depois de um dia exaustivo sob a maresia, e, porque a calmaria não impedia a velocidade imposta à embarcação, a normalidade retornou rapidamente.  
             Nessa lonjura pescamos mais quinze dias. Depois voltamos ao porto de Santos, onde fizemos a entrega do pescado. Numa doca perto dali, em seguida, o barco foi puxado para a raspagem de cracas. Neste trabalho todos os embarcadistas, independentemente de ser cozinheiro, mestre ou timoneiro, são iguais. Afinal, o tempo de parada deve ser o mínimo possível. Isso é regular, ajuda a conservar a embarcação e contribui para a economia de combustível. Naquele momento a surpresa: na quilha de ipê, na zona intermediária, um dente de quase um palmo estava grudado. Era de tubarão, talvez de tintureira que costuma ter o hábito de abocanhar qualquer coisa flutuante. E era dos grandes! Todos se lembraram da fatídica noite, quando se chacoalharam com o barco. O que teria acontecido se o dono de um dente desse porte desse um safanão numa das bordas?
           
            Sugestão de leitura: Ser tão mar, de Jorge Ivam e Pedro Paulo
                                                           Boa leitura!
                                                           José Ronaldo dos Santos

domingo, 20 de março de 2011

A Pedra da Igreja

    
Muitas coisas esperam e esperarão respostas até o último dia da vida da gente. Pior ainda é quando as respostas dependem de pessoas que também são enigmáticas, ou melhor, que ninguém sabe dar qualquer informação sobre elas.
O causo de hoje gira em torno de uma dessas pessoas: Artelino Flor, morador do morro da Praia Brava, que eu conheci, mas nunca tive coragem de especular-lhe coisa alguma. No entanto, me admirava das coisas que ele contava. Ainda agora estava me lembrando de uma das suas falas: “Quanto mais longe, mais estranhas histórias”, cuja função era servir de introdução a um causo.
            Certa vez, no aceiro da roça do Horácio, para os “meninos de bodoques nas mãos”, o Artelino contou da Pedra da Igreja; foi mais ou menos assim:
            “Naquela pedra, bem debaixo dela, tem um espaço grande, parece um salão. Quem for lá hoje encontrará coisas estranhas: a parede e o teto – na pedra mesmo! – tem desenhado um monte de coisas: animais desde paca até tartaruga, objetos redondos como tampa de panela, árvores, rios e mar. Tem ainda embarcação, mas não é canoa comum. Tudo parecendo ter sido pintado com pasta de urucum. Pelos cantos existem pedaços de instrumentos que podem ter sido um dia ferramentas ou armas. Não sei. Uns dizem que é mal-assombrado aquele lugar, mas eu mesmo não vi nada demais. Só sei de uma coisa que escutei e não duvido: os antigos moradores do lugar, desde muito tempo, naquele salão buscavam proteção quando viam embarcação estranha vindo de fora, pelo mar”.
            Neste ponto do causo, o meu primo Gilmar perguntou: “Desde quando isso?”
“Ah! Faz muito tempo!” E continuava o Artelino naquela paz arrastada de gente velha:  “É do tempo onde a música do céu era limpa e azulada. Diziam os mais antigos que os primeiros moradores a conviver com os índios já faziam isso (de fugir quando algo de anormal surgia na linha do horizonte). Aquele lugar protegeu muita gente: primeiro os degredados que evitavam encontrar novamente os navegadores portugueses; depois, os primeiros colonizadores, escaparam dos piratas, dentre estes um muito medonho chamado de Bonete que, pelo dizer dos tempos, era de um reino por nome de Escócia. Lá tem até um dizer escrito em nossa língua; dizem ser do tempo da pirataria. É bem no fundo, onde as cobras têm suas ninhadas. Deste jeito está escrito: ‘Pés desceram... mãos grimparam’.
De tempo mais recente eu posso dizer, assim como outros velhos que por aí estão: foi para lá que todos acorreram na revolução do tempo de Getúlio Vargas; depois o mesmo aconteceu em mais duas ocasiões: na passagem do dirigível Zepellin, quando todos achavam ser o sinal do fim do mundo, e no levante da Ilha Anchieta. Tudo isso sem falar dos tempos d’antes; do povo que só desenhou. Embaixo da Pedra da Igreja era a nossa fortaleza, de onde vem o nome da praia”.
            Muitos outros causos eu tive a felicidade de ouvir daquele enigmático senhor. Digo assim porque ninguém sabia afirmar com certeza de onde veio tal personagem. Só uma fala do Rogé me intriga até hoje: “Sabe de uma coisa, Zezinho? O Artelino já foi cangaceiro. Aqui foi deixado por um navio, quando descobriram que viajava escondido na casa de máquina”. É, pode ser.
            Vem desse tempo a minha curiosidade pela Pedra da Igreja. Em certa ocasião, no findar de década de 1960, meu pai nos levou até lá, para espiarmos de fora. É grandiosa!

            Sugestão de leitura: Achegas à história de Ubatuba, de Guisard Filho.
           
                                                             Boa leitura!
       

sábado, 19 de março de 2011

Escola de caiçaras

Resolvi escrever este texto depois de uma matéria publicada pelo Emílio Campi sobre a escola da Maranduba, nos idos tempos do governo de Getúlio Vargas (ou entre as décadas de 1930 e 1950). Parabéns pelo registro do fato e pela publicação das fotos da época! Porém, com base nos causos que já ouvi, tenho algumas coisas a acrescentar. A contribuição vem de ex-alunos daquele tempo, quando o professor Lauristano, um homem enérgico, muito bravo, talvez até um pouco descontrolado, marcou presença na vida simples dos caiçaras. Foi numa roda de jundu que eu ouvi o tio Chico Félix, o Leovigildo (meu pai), o Otávio Conceição, o Décio, o Tonico, o seu pai Dioclécio e outros que já não posso afirmar com tanta certeza.
                O assunto fez parte de uma prosa no jundu; era nos “anos de chumbo”, quando os militares já tinham assumido o Brasil com toda a força. A conversa, depois do lance de gonguito na rede do João Zacarias, onde o pano da rede só ficou livre – e quase todo estragado depois de cinco horas de intenso trabalho!  ̶  era sobre escola. Eles lembravam muitas coisas. Uma delas, ocorrida antes da abertura da estrada para Caraguatatuba (1952), tratava-se da mudança da escola: da casa do tio Basílio do Prado, próximo do Chico Romão, no começo do morro do cemitério, foi transferida para a casa da tia Brandina, que ficava quase no meio da praia, no jundu da Maranduba, onde se encontrava com o rio.
                – Lá tinha uma mangueira. Recordava um deles.
̶  Ainda tem!  Os demais exclamaram.   
Bem ao meu lado explicou o papai:  
̶  O dia da mudança foi em dia de maré baixa; tudo teve que ser carregado por nós. Num dia assim, assim como ainda é hoje, a boca da barra ficava rasa, passava-se com água pela cintura.
                ̶ É mesmo! Emendou o Otávio – Aquelas carteiras de ferro eram pesadas, mas nós levamos todas! Até a talha de guardar água de beber foi.
                Nisso saiu um trocadilho de alguém da turma:
                ̶  É água potável, ouviu? Não confundir com água para o Otávio! (Risos).
                ̶  Agora tem duas escolas. Atalhou o tio Chico.
                ̶  Não. A da tia Brandina foi desativada – Quem informou isso foi o meu pai – Acho que era demais também. Funcionava a escola masculina perto da praia e a escola mista no quintal da tia Balbina, perto do Andrelino. Para que tudo isso?
                 Depois de eu me admirar disso (da existência de duas escolas ao mesmo tempo), papai acrescentou:
                 ̶ Em duas ocasiões os alunos das duas escolas se encontravam: no Dia da Pátria e no Dia da Bandeira. O professor comandava um desfile na praia. Tínhamos de marchar primeiro; depois podíamos brincar à vontade. Nesses dias especiais até coca-cola o professor dava.
                Foi a minha vez de perguntar:
                ̶  Já existia coca-cola?
                ̶ É claro que sim! Era uma garrafinha pequenininha! O barco trazia para vender no armazém do João Pimenta – Exclamou alguém.
                 Assim eu ia aprendendo:
                1) Houve um tempo em que as meninas não estudavam, depois vieram as escolas mistas;
                 2) A escola era a sala da casa cedida por um morador, ou seja, não existia um prédio público para tal fim;
                3) O civismo já fazia parte do ensino escolar até mesmo nas condições escolares mais precárias;
                4) As empresas multinacionais alcançavam lugares que até as próprias desconheciam;
                5) As plantas eram referências importantes aos caiçaras.
                É por este motivo que, todas as vezes que eu passo na estrada, outrora jundu da Maranduba, nunca deixo de olhar para a mangueira discreta que testemunhou tantas interessantes histórias. Ainda está lá! Parece dizer isto:  ̶  Muitos dos que brincaram em meus galhos e desfrutaram de minha sombra já se foram. Eu ainda me conservo em relativo vigor.
                Até acho que deveria existir uma placa naquele local. Em outros municípios, com outros moldes  administrativos, um fato histórico deste vira fonte de renda (turismo cultural).
               
Termino com uma sugestão de leitura: “Ubatuba nos cantos das praias”, de Kilza Setti.

                                               Boa leitura!
                                               José Ronaldo dos Santos

quinta-feira, 17 de março de 2011

A VITÓRIA FOI DOS PEITOS

    Eu tive um avô de pouca instrução, mas com muita sabedoria. Era José Armiro, da praia da Fortaleza. Apesar de ter falecido há um bom tempo, de vez em quando é inevitável deixar de citá-lo. Suas frases sempre eram certeiras, diziam até coisas que ainda não entendíamos. Hoje eu digo que ele era um pensador, mas daqueles muito reservados, que somente entre os familiares dava os ares da graça. Porém, foi dele que nós (filhos, netos etc.) aprendemos muito “de profano e de sagrado”. Sempre gostei de pescar com ele; eram os melhores momentos, quando contava coisas incríveis. Certa vez, por exemplo, enquanto curricávamos depois da Laje Grande, no alinhamento de fora entre as ilhas do Mar Virado e Anchieta, de onde, num entardecer maravilhoso, enxergávamos perfeitamente a Ilha da Vitória, o vovô veio com algo muito interessante. Foi mais ou menos assim:

            “Aquela é a Ilha da Vitória, menino. Ainda mora bastante gente naquele lugar, mas muita gente já se baldeou para o continente. Foi lá que, recentemente, por volta de 1960, o meu primo Mané Marreta, depois de se tornar protestante, daquela igreja cinzenta do Lázaro, decidiu propagar os princípios da nova crença. Foi remando com mais um companheiro, o seu cunhado Bertolino. Uma linda Bíblia, devidamente embrulhada, seguiu junto num balaio de timbopeva ainda virgem. Chegando lá, depois de puxar a canoa no trapiche, subiu morro acima tirando o chapéu a todos. No alto do morro, onde até hoje ficam as casas dos ilhéus, ele arriou o balaio, desembrulhou o estranho objeto para aquele lugar, onde nunca alguém sequer tinha ouvido falar de livro. Demorou um pouco, mas explicou bem sobre o motivo que o levara ali. Logo estava na pregação propriamente dita: falou do dilúvio, do primeiro homem, da Eva e da tentação. Neste ensinamento acerca das tentações ele se demorou mais. Acho que era porque as mulheres, em todas as épocas, continuam sendo tentadoras, principalmente naquele lugar isolado, onde nem sutiã elas conheciam. Só sei dizer, menino, que o Mané não aguentou continuar pregando as boas-novas e olhando a tais volumes tentadores. Voltou rapidamente para o seu lugar, na Praia Brava”.

            “Depois de um período se martirizando pelas tentações peitudas enfrentadas com pouco sucesso, ele tomou uma decisão: foi até a cidade, comprou um monte de sutiãs, embarcou novamente para a Ilha da Vitória, mas desta vez sua mulher, a Bilia, foi levada junto. O trabalho dela era secundário na tarefa missionária, mas muito importante naquele momento. Logo estava entre as mulheres com as estranhas peças. Ela ensinou...ensinou...ensinou...porém, as ilhoas se embaraçavam, achavam complicado as manobras, além de incomodar muito e de tirar a liberdade. Desistiram da tal moda; a Bilia também entregou os pontos. Para encurtar esta prosa, menino, só sei que o meu primo desistiu de evangelizar a ilha. Foi vencido pela tentação (ou tetação?) mamária. Até hoje ele se lamenta pelo ocorrido. Eu desconfio que naquela época a fé dele ainda era muito fraca” 

            Eu completei:

            - Ou é ele que está menos macho hoje? O vovô riu, balançando a cabeça afirmativamente.


            Depois do causo, concluí sobre o nosso lugar:

A- No início tudo era permitido;  
B- Depois veio a religião católica; 
C- Mais tarde vieram outras religiões; 
D- As tentações principais – aos homens! – continuam vindo das mulheres. Isto prova que o nosso lado instintivo, original, ainda não foi domado totalmente pelas instituições que buscam enquadrar-nos em moldes, em padrões morais castradores.
           
            Sugestão de leitura: A religião dos Tupinambás, de Alfred Métraux.

                                                               Boa leitura!
                             José Ronaldo dos Santos

quarta-feira, 16 de março de 2011

“Ande logo”

Em dezembro arrumei um tempinho para visitar o Mané Hilário. Creio que é o mínimo que devo fazer para agradecer pelas tantas oportunidades que este ubatubano me deu para crescer e entender melhor a nossa própria cultura. Neste mês (1º de dezembro) é aniversário dele: completou 102 anos. Ele e o Fidêncio (do Sertão da Quina) são os caiçaras ubatubanos  mais antigos.
                Apesar da saúde bem fragilizada, encontrei-o bem disposto. Afinal, era o momento do café; sua neta e a nora cumpriram um ritual com muita dedicação. Depois, numa cadeira de rodas, aqueles olhinhos brilharam conforme íamos lhe puxando pela memória. Quis saber de alguns parentes da Maranduba, sobretudo do tio Hilário do Prado; misturou alguns nomes; se lembrou de antigas namoradas. O que mais me emocionou: fui contemplado por alguns versos de Reisado e da Cana-verde.
                Há alguns anos, sempre que eu o encontrava sentado no jundu, olhando a praia, também fazia o mesmo e começava a especular sobre um monte de coisas da vivência dele. Quero dizer que ainda não perdi esse costume. Não me esqueci de uma frase dita há muito tempo por Mané Hilário: “Sei que o meu corpo é muito limitado. Pode ser que não terei tempo de ir muito longe. Também, se tiver tempo, é a força que me faltará. É assim a vida, né?”.  Desta ocasião ainda trago uma adivinhação para desvendar: “Me diga o que é, Zé: seis mortos espichados, cinco vivos passeando; os vivos não dizem nada. Os mortos estão falando”.
                Por fim, já percebendo o cansaço do nosso querido personagem, quando me preparava para deixá-los, a neta dele, Magali, fez a seguinte pergunta para demonstrar como o velho caiçara é apaixonado por peixe (a preferência sempre foi por peixe seco assado com café amargo):
                 - Vô, quer comer peixe hoje?
                Depois de um breve silêncio, recebeu a seguinte ordem do antigo caiçara ubatubano:
                - Ande logo!
                É isso. Viva os 102 anos do Mané Hilário! Parabéns! Parabenizo também os familiares que continuam se preocupando com “o nosso caiçara do coração”.

                Sugestão de leitura: Os pobres na Idade Média, de Michel Mollat.
                                                                                              Boa leitura!

terça-feira, 15 de março de 2011

Primeira lição: saber a razão da denominação dada pelos antigos

O meu padrinho Tobias (Patobi) foi por muito tempo pescador de baleias neste trecho de litoral sul (desde Cabo Frio até o Rio Grande do Sul). Dele escutei histórias fantásticas! Como eu sonhei com a vida de embarcado em um grande barco pesqueiro, tal com o “Taurus” na minha infância!
                Ele era detalhista, sabia descrever lugares como ninguém. Pensei nele e nas suas narrativas nestes dias de apreensão em torno de vazamentos em usinas atômicas japonesas.    Certa vez, embaixo de um abricoeiro na praia do Sapê, ele recordava de uma convivência na praia de Itaorna. Para quem não sabe ainda, esta praia está no município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.  Nela foram construídas as usinas nucleares Angra I e II, com previsão de outras duas saírem do papel.
                Patobi, pernoitando naquela praia em 1974, estabeleceu alguns laços de amizade. Uma foi-lhe especial até o fim da vida: Tonico “Tié”, um caiçara pescador-roceiro local.
                O “Tié” e o Patobi se visitavam sempre; tinham saudades um do outro. Foi quem explicou um absurdo que estava para acontecer: a construção de uma usina atômica. Quando questionei sobre isto, ele explicou do modo dele: “É um lugar que vai gerar energia, mas de forma muito perigosa. Alguns entendidos dizem que se houver um vazamento, a gente morre sem perceber. É como se o ar ficasse contaminado”.
                E continuou: “Mas o pior, segundo o ‘Tié’, é o trabalho de engenharia que não considerou a sabedoria indígena. Itaorna quer dizer ‘pedra podre’, coisa que não serve de base para uma obra que tem de ser inabalável”.
                Esta lição eu aprendi do Patobi: os antigos tinham uma razão para denominar os lugares, os seres e até mesmo os nomes pessoais. Prova disso que, depois de tanto dinheiro investido naquelas usinas, elas são chamadas de “usinas vaga-lumes”. Afinal, o que esperar de uma coisa que começou capengando já no alicerce.
                Em tempo:
                A Praia Brava de Itaorna era um lugar maravilhoso, piscoso, com um jundu lindo e uma população de caiçaras bem acolhedora.