quinta-feira, 10 de março de 2011

Formiga vai... formiga vem

            Eu, por uma série de fatores, entendo um pouquinho das coisas da cultura caiçara. Consigo falar da História, dos costumes e até das armadilhas (esparrela, mundéu, covo etc.). Em tudo isso - que é tipicidade cultural - há uma marca evidente: a criatividade.
            A criatividade varia de povo para povo, de pessoa para pessoa. Porém, adoro aqueles que extrapolam os limites do compreensível. É o caso da engenhosidade do meu parente Mané Bento. Deixarei que ele se justifique por si mesmo. Vamos prestar atenção na sua fala. Ela se deu na minha escola primária, a casa da tia Martinha, no final da década de 1960. Na lousa, a data: dia 21 de setembro. Foi quando a professora reuniu todas as famílias do local para falar sobre o Dia da Árvore. Cerimônia simples, mas muito significativa. Alguns moradores mais antigos falaram depois da mestra. O gesto concreto foi o plantio de dez mudas de jacatirão, uma madeira muito usada na construção das casas de pau-a-pique. Assim foi o recado do Mané Bento:
            "Não se fala de mato sem dexá de falá de formiga. Houve tempo em que formiga tinha demais: era saúva no mandiocá; quém-quém sapecava o roserá e as laranjera; em quarquer moita de tiririca ou de pé-de-galinha a ruiva empesteava; a brasa, aquela cuí amardiçoada, se metia nos portá, nos batente, em toda brechinha de parede; taoca infestava tudo em correção; cabeçuda tinha casa na palha da cana, enquanto a sará-sará gostava de pau pijuca; mais a pió era a preta miúda que se tecia na cozinha preferindo o açúca.
            “O açúca tinha de tá bem protegido. A vasilha ficava pendurada em gancho no caibro, entre picumã, tendo a arça enrolada de argodão e ensebada em ólhio. A  mulherada padecia pra se vê livre das formiga que aparecia em tudo: na borda da gamela, no juréu, no socadô de feijão, em toda vasilha. Tinha arguma que chegava a bejá o caxote de sá.
            “Eu ficava assuntando em cima da formigada; varava a noite nisso; me tirava o sono; muitas veiz só madornava. Intão tive uma aluminação:  acho que já sei como cabá co'elas. Quem quisé aprendê que pres'tenção, bote bem reparo: vai percisá de uma pedrinha, um cascalhinho de nada; também tem que tê um palito de forfe, uma pedra de sá e um gorpe de cachaça. Apanha tudo isso e bota numa mesa, ou no chão mesmo.
            “O raçocino é este: a formiga vai no sá pensando que é açúca. Quando se precata do engano, busca locamente água. Mais a água que tá mais perto não é água; é cachaça. Ela só vai repará no gosto quando já tivé no maió porre, caino pra lá e pra cá. Nisso ela tropeça no palito de forfe, bate co'a cabeça na pedra e morre. Só ansim caba a jeriza da formigada e se vive em paiz. Até o mato tem mais sossego".
            Só não sei se o Mané Bento confirmou a sua teoria. Mas não valeu a lógica e a criatividade?

Sugestão de leitura: A oleira ciumenta, de Lévi-Strauss.
                                                                 Boa leitura!
                                                                             José Ronaldo dos Santos

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