segunda-feira, 30 de setembro de 2013

MELODIA DIVINA


Cantoria para um bom dia  (Arquivo JRS)

Tem alguém que não tenha escutado, desde o começo de agosto, o canto do sabiá?
Eu, graças à mata do quintal, abrigo ao menos uma ninhada a cada ano. Por isso, a poucos metros da janela da cozinha, tenho o privilégio de ver e ouvir seus cantares. Normalmente é de sabiá-laranjeira (também conhecido por sabiá-galinha) ou sabiá-coleira.               Extasia qualquer um a cantoria deles!
Eles ficam à vontade; comem das frutas, das minhocas e de outras coisas que estão pelo chão. Neste ano, um ninho está no pé de carambola. É de sabiá-laranjeira. Cesso a digitação para apreciar uma cantoria que se inicia, mesmo com o amanhecer nublado.
Desde criança, ano após ano, nunca fui impedido de receber desses seres uma energia tão especial. Ainda me lembro de como ajudava o tio Lúcio a cuidar dos filhotes dando naquinhos de banana em seus delicados bicos, a agasalhar em panos e protegê-los de predadores. 
É isso! Cante  sabiá! 
Cante para despertar os trabalhadores e estudantes para dar novos rumos à vida!
Cante nos desejando bom dia neste novo dia!

domingo, 29 de setembro de 2013

QUE FOTOGÊNICA!



        Quem circula pela Rua Maranhão, quase esquina com a Dona Maria Alves, no centro da cidade de Ubatuba, tem uma surpresa maravilhosa  e gratuita. É que na calçada do senhor Cláudio, vive uma maravilha. Trata-se de um grande ipê amarelo.
     Durante as outras épocas do ano ele quase não é percebido. Pode até ser que algum “civilizado ao extremo ou asséptico radical” até já tenha reclamado da árvore por estar “atrapalhando o caminho” ou "sujando tudo com suas folhas". Agora, porém, não há quem não se extasie com a florada amarelo ouro. Até dói a vista quando o dia está ensolarado.
     No sábado passado, às sete horas da manhã, antes de ir para um curso em Caraguatatuba, eu fui fotografar e receber energia dessa exuberância da natureza. Vendo o  seo Cláudio chegando da padaria, puxei uma rápida prosa. Ele está feliz por ter tantos admiradores do ipê. É evidente que a todo instante tem gente parando para tirar fotos. Empolgado, entre outros fatos ele disse:

  - Você sabe que agorinha mesmo, coisa de meia hora, uma senhora veio, deixou a bicicleta encostada, abraçou a árvore e disse: “Você é linda!”.
      Como eu gostaria que os exemplos de plantio de árvores em nossas ruas se multiplicassem!
      Como é bom acompanhar a vida delas no meu quintal, na minha calçada e nas “portas” dos outros!
           Pense na energia das árvores para você e para todos, principalmente às futuras gerações.

sábado, 28 de setembro de 2013

QUESTÃO DE OCASIÃO (II)

     

     
Ubatuba em época de tainha (Arquivo Igawa)
       Olá, Chico! Está acompanhando essa narrativa? Ela é localizada, ou seja, a partir do lugar, das pessoas e da problemática da minha ascendência paterna (da região da Caçandoca). Porém, se aplica ao macrocosmo de Ubatuba. É por isso que, numa audiência pública das terras caiçaras, um representante da promotoria pública estadual afirmou que “não existe um pedaço de terra em Ubatuba que não tenha pelo menos três documentos brigando entre si”. 


      É bom saber: até o princípio do século XX, o caiçara era semi nômade: só parava num lugar para cultivar e pescar por um tempo. Isto significa que, cansando dali, cansada a terra, dando saudade de alguém em outro lugar, ia-se. Os pertences eram poucos; cabiam numa canoa. Logo, naquele lugar que ele ocupou,  se arruinava a casa de pau-a-pique coberta  de sapê. Tudo voltava a ser mato fechado. Era uma movimentação, a bem dizer, espontânea. O que eu comecei a lhe explicar na primeira parte da presente questão tem uma forte correlação com a história de um povo bem distante: os judeus, cuja diáspora, “esparramação”, conforme explicação do saudoso tio Maneco Mesquita, “se deu por volta do ano setenta depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”.


       Dentro do conceito de diáspora, eu fiz questão de visitar os parentes em Vicente de Carvalho, em São Vicente, nos morros (do Funhanhado, do Algodão, das Moças, do Querosene), na Estufa, no Porto Novo, nos Tourinhos etc. Ainda tenho gravações - em fitas cassete! - inéditas de muita gente, inclusive do patriarca Gabriel e da matriarca Benedita do Caliano. "Tudo gente que foi morar em lugares feios!".  Como diria a vovó Martinha ao escutar as minhas narrativas naquela época: “É tristeza de dá dó”.

      Mais triste foi a condição de quem se fez de capacho dos ricos.
     Se tornar capacho, lugar de se pisar, provoca a perda da identidade, a renúncia aos muitos valores seculares. Também impede a tomada de consciência de sua condição de exploração. Passam a valer os ditados: “Quem puder mais chora menos”, “Farinha pouca, meu pirão primeiro”...E por aí vai.  

          Copiar os exemplos de outros pobres que vão chegando de outras regiões empobrecidas, desde a década de 1970,  passa a ser uma alternativa. Por isso vale avançar nos espaços que ainda não estão com os ricaços. “Questão de sobrevivência” justifica a cobiça que vai danando ainda mais a vida dos irmãos, chegando ao ponto de se colocar a favor dos proprietários de mansões nos jundus.  Até que um dia, esgotadas as já minguadas tetas, passando por condições degradantes, o pensamento se volta às origens. “Que saudade das cebolas do Egito!”. De repente, as opiniões mudam: “Estava certo aquele que tentou se agarrar na sua posse, no seu modo de vida”; “O compadre é pobre, não tem carro, nem luz em casa, mas vive em paz, pode pescar e plantar”...

         Começa o entendimento e a vontade de voltar no tempo. Só que agora o tempo é outro, as necessidades são outras. A cultura também já se modificou. 
     Diante das impossibilidades em face do consumismo ambicionado, o assistencialismo público se apresenta como a solução.
         O ruim disso é que a volta ao espaço original não significa retorno à cultura raiz. E o que se vê, mesmo causando melindres, é “comunidade” bem nos rumos globalizantes, onde o discurso “ideológico” não condiz com a prática. Quando aparece alguém apresentando questões em torno disso, as reações evidenciam a realidade de quem que não é capaz de identificar a sua condição de submetido. O pior: pode conseguir o apoio daqueles ignorantes da condição de exclusão e inferioridade de que foram vítimas. O que eu quero dizer se resume ao seguinte, parafraseando o vovô Estevan dando uma moral após uma certa história de castelo: 

       “Não se mata sapo, menino! Ele pode ter um aviso pra você!”.  Melhor dizendo (ou atualizando o dizer do vovô): podemos estar matando o sapo que somente está mostrando uma realidade muito maior que a nossa lagoa. E o que pode acontecer? Depois do sapo exterminado, os mosquitos e outras denominadas pragas podem se refestelar.

       É só. Tenho dito. Um abração.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

QUESTÃO DE OCASIÃO (I)

Enquanto tomo um café com abacate e farinha...(ArquivoJRS)
Eu e Dito Madalena


Ao amigo Chico Abelha:

Você tem razão ao perceber a situação melindrosa na área visitada (Caçandoca, em Ubatuba). Posso contribuir com mais elementos, talvez esclarecedores?

Conforme a nossa história de vida, está mais que evidente uma verdade: nós, caiçaras do litoral norte paulista, nos desgarramos (ou fomos arrancados) das nossas posses por uma lógica capitalista. Assim, posso elencar alguns aspectos pertinentes ao assunto:

1º) O isolamento nos apresentou uma vida simples, de dependência da natureza e da criatividade, a filha da necessidade. Porém, essa vida passou a ser encarada como penúria ao ter contato e saber da existência das comodidades das cidades,  dos ritmos comercial e industrial.
2º) As dificuldades em acompanhar ou desfrutar das modernidades instigou a procurar formas de abdicar da vida simples, mais ligada ao meio rural.
3º) Negociar a terra, a sua posse às vezes por muitas gerações, foi uma alternativa quase que instantânea com o advento turístico, a partir das rodovias (década de 1930 - Taubaté; década de 1950 - Caraguatatuba).

A confluência desses motivos principais fez com que irmãos enganassem irmãos e grileiros tivessem a preferência nas comunidades. Tudo isso, sem que a maioria percebesse, sob a batuta de grandes empreendedores. Prova disso foi o domínio de fulano na Praia do Pulso, de beltrano na Praia Vermelha do Sul, de sicrano na Praia Dura etc. Detalhe: todos doutores de muito dinheiro! E aí se deu a diáspora que, enxergando na sua amplidão, podemos dizer que foram poucos os casos de violência explícita. Desafiador é perceber a violência implícita que continua existindo. Por isso, causa-me orgulho saber ou ter acompanhado exemplos de caiçaras que se grudaram em suas posses, brigaram até mesmo em instâncias federais para não saírem como a maioria da parentada (que foram morar nos sertões distantes, sobre áreas impróprias, de brejo ou mangues de cidades maiores, sobretudo na Baixada Santista). Falem o que falar, mas um exemplo de resistência, dentre vários outros, é o Benedito Antunes de Sá, o "Dito Madalena", cuja amizade eu travei em 1981, numa casa de farinha, no Saco dos Morcegos. 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O QUILOMBO DA CAÇANDOCA (IV)

        
Ainda não encontrei uma situação tão ruim que não tivesse ao menos uma flor (Arquivo JRS).
                  Já começo respondendo à questão principal do Chico: o que predomina na Caçandoca são cafuzos e mamelucos, ou seja, a miscigenação entre índios e negros e brancos e negros. Portanto, os negros são uma minoria na área, mas estão na conta de parentes. Na verdade, o que aconteceu no decorrer do movimento pela retomada das terras das antigas fazendas Caçandoca e Saco dos Morcegos, foi uma manipulação, por parte de uma das lideranças, para se aproveitar da brecha constitucional (de reconhecimento de área quilombola). Infelizmente prevaleceu a mentalidade de assistencialismo, o que já causou dissidência e desfigurou o objetivo original de reviver a dignidade da cultura caiçara. Posso falar com muita propriedade porque estive, juntamente com meus irmãos, no movimento desde 1990. Afinal, ali nasceu meu pai, meus avós, bisavós etc. É de onde vem a base dos Félix, Cabral, Lopes e Amorim. Outros ramos de nossa família caiçara nesse local eu já escrevi através das memórias de Aristeu (Proseando com o Aristeu). Tudo gente que empobreceu junto com o fim do ciclo cafeeiro nesse litoral, na segunda metade do século XIX, inclusive os Antunes de Sá, os últimos proprietários da região em litígio.

             Quando cheguei em casa, fui ao google e encontrei farto material sobre o quilombo da Caçandoca. É material acadêmico e técnico, resultado de pesquisa antropológica e com a finalidade de fazer valer aos remanescentes, o direito à propriedade da terra em que vivem. À partir da constituição de 1988, que atualizou o conceito de quilombo, foi possível a diversas comunidades remanescentes espalhadas pelo Brasil, enquadrarem-se na nova lei e reivindicarem a propriedade da terra.

            A situação da Caçandoca não é simples. Segundo me contou uma pessoa que mora na praia da Maranduba, além dos remanescentes, reivindicam a propriedade da região, uma empresa imobiliária que teria comprado a terra quando da abertura da  BR 101, a Rio-Santos e também os descendentes de um antigo proprietário, que dizem ter um documento de posse de séculos atrás. Por isso a minha dificuldade de obter informações dos atuais moradores. Mas eu ainda não entendi muito bem porque não encontrei nenhum negro por lá, isso ainda é um mistério para mim. Se alguém que conhece mais de perto a situação quiser explicar, eu agradeço.

        Quem se interessar, pode conferir o material técnico aqui.http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/acoes/rtc/RTC_Cacandoca.pdf

        Enfim, o autor do texto termina lembrando que, além de mudar os nomes, nem mesmo fotos das pessoas ele quis publicar devido à situação melindrosa que estão vivendo.  Valeu, Chico!

domingo, 22 de setembro de 2013

O QUILOMBO DA CAÇANDOCA (III)

         
           
                O Chico também é o autor das fotografias deste texto. Nesta penúltima parte, ele nos transmite o seu estranhamento e questionamentos. Implicitamente nós podemos ter muitos outros. O seu interesse faz-me lembrar de uma outra pessoa, cujas pesquisas e registros fotográficos guardam uma relação com a comunidade do Sapê, sobretudo com o grupo de Reisado. Isso foi há dezoito anos; era também de São José dos Campos: dona Helena
         
          Alguns metros mais abaixo, em direção à praia, que ainda não se fazia ver, mais uma construção de pau a pique, também com ar de abandonada. Conforme dizia a placa na parede, tratava-se do Centro Comunitário da Associação dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo da Caçandoca. Mais abaixo, dos dois lados da estrada, algumas casas recém construídas, estas de blocos, sem acabamento e cobertas com telha de amianto. Das casas, sou observado por crianças e mulheres, nenhum deles é negro.

       Resolvi seguir adiante, procurar meus negros mais à frente. Chegando à praia, outro susto, ela estava tomada, de fora a fora, por barracas de venda de comida e uma linha contínua de guarda sóis coloridos, vermelhos e amarelos. Não havia quase gente, era cedo ainda, o pessoal das barracas estava se preparando para a chegada dos turistas. Procurei os negros entre o pessoal nas barracas, talvez eles estivessem fazendo um bico na temporada, talvez fossem os donos, mas nada, não havia um só deles. No máximo um mulato curtido do sol… Saltavam aos olhos, contrastando com o verde da mata, os anúncios de camping, de passeios de barcos, logotipos de cervejas, isso tinha por toda extensão dos 2 km de praia.

          Eu poderia ter perguntado para qualquer um, onde estavam os quilombolas, mas depois da lambada do seu Irineu e com receio de levar outra resposta atravessada, fiquei na minha. Tomei meu banho de mar, mastiguei meu sanduíche de pão integral e resolvi cair fora, que o céu estava ficando cinza-chumbo e eu não queria arriscar a volta debaixo de chuva.

         Entrei no carro, apanhei o celular para ver que horas eram e levei um susto quando vi a data, 25 de janeiro! Vinte cinco de janeiro era o dia do aniversário da minha esposa e eu ainda não tinha providenciado um presente para ela! Lembrei de ter visto umas lojinhas dessas que vendem artesanato, atrás das barracas na praia, quem sabe eu não achava algo diferente numa delas?

       Parei naquela que me pareceu a mais simpática. Quem me atende é dona Nilda, também branca. Ela me explica que o artesanato local é feito por eles mesmos, com “material que a natureza descarta“. São móbiles de conchas, esteiras de folha de bananeira e enfeites diversos, de madeira pintada, ela me mostra tudo com orgulho. Não sei se pelo efeito da alta umidade, mas tudo me pareceu já velho e sem o viço que eu queria para o meu presente. Lá do fundo da loja, umas bolsas coloridas me fisgaram o olhar.

       - E aquelas bolsas, dona Nilda, são feitas por vocês também?

       - Ah, essas são as bolsa que se transforma em canga, são de uma mulhé de Ubatuba que traz aqui pra nóis. 

A bolsa era interessante, acabei comprando uma delas, uma cor-de-laranja-cheguei. Minha esposa gosta de cores fortes, certamente iria gostar deste objeto de dupla serventia.

Depois de pagar dona Nilda, já na saída, não consegui segurar a língua, perguntei onde era o quilombo da Caçandoca. Ela fez uma cara de espanto e respondeu olhando torto:

         - Mas o senhor já está nele, moço! 

         - Ah, é aqui? E os quilombolas, onde estão?

         - Está falando com um deles. Todos que moram aqui são quilombolas.

A minha cabeça deu um nó nessa hora. Resolvi não perguntar diretamente o por que de não haver nenhum negro neste quilombo, ou, se os havia, onde se escondiam…

        - E a senhora nasceu aqui no quilombo, dona Nilda?

        - Nasci aqui, sim, mas quando eu nasci não era quilombo ainda, era tudo fazenda. Em 2003 foi que o Lula criou o quilombo e disse que a terra era nossa, de quem tivesse morando nela. A gente ainda não temos o papel, mas esse ano ele prometeu que vai sair em definitivo. Deu na Voz do Brasil, eu escutei ainda um dia desses, que a gente tem que escutar a Voz do Brasil pra se informar, não é mesmo? Ele é muito bão, o Lula.

        - Quer dizer que a senhora gosta do Lula?

        - Gosto! Eu só acho ruim que a gente não pode derrubá uma árvore que seja pá modi prantá que é murtado. Isso eu acho muito errado! Por isso que nóis agora tamo virando pro turista pra se garanti.

Sem que eu perguntasse, dona Nilda começou a falar de como era a vida nas fazendas, do tempo em que ela era criança, de como eles tinham de tudo ali na Caçandoca, só precisavam comprar querosene, sal e pólvora. Das festas de bate-pé, das catiras, dos reisados, que eram a unica diversão que eles tinham naqueles tempos. E que tudo isso acabou porque veio um pessoal da cidade, comprou a terra dos caiçaras por um dinheiro qualquer, o povo se foi para a cidade e só agora é que estava voltando, depois que o “Lula criou o quilombo“. Minha cabeça estava que era uma bagunça só. Eu nunca imaginei que um quilombo pudesse ser criado em pleno século XXI.

         - Mas espera aí, dona Nilda, quer dizer que esse quilombo não foi formado por escravos foragidos que se esconderam aqui na Caçandoca? 

         - Não, menino, este quilombo é por doação, não por fuga. 

       Achando que ela poderia ser uma boa informante, quis registrar o material e sugeri:

        - O, dona Nilda, vamos fazer um vídeo dessa nossa conversa, a senhora permite?

        - Ah, hoje não, menino, que eu perdi o meu pente e estou com a cara muito bagunçada. Volte aqui outro dia, hoje não.

         - Mas com essa estrada ruim, é muito difícil chegar aqui.

         - Então volte no tempo da seca, que aí a estrada fica uma “excelência”!

Entendi que dona Nilda não queria se comprometer com gravações e respeitei sua vontade. Nem perguntei mais nada. Despedi-me dela e disse que voltaria quando fosse possível.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O QUILOMBO DA CAÇANDOCA (II)



          A partir desta parte, o cronista, por motivos óbvios, recorre ao uso de nomes fictícios para as pessoas que se intitulam quilombolas. Não é estranho, sobretudo a nós caiçaras, alguém se negar a uma prosa, ter orgulho desse nosso lugar e mostrar-se acolhedor?

         A primeira construção que vejo é de pau-a-pique, o Centro de Artesanato, do Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Quilombo da Caçandoca, conforme indica um banner afixado à parede. O imóvel está fechado, com toda cara de abandonado e o mato invadindo o que um dia deve ter sido um lindo jardim. No meio do jardim, uma antena parabólica toda comida pela ferrugem. Enquanto tiro algumas fotos, um senhor branco, com cara de gente da cidade, passa devagar pela estrada, caminhando com a ajuda de seu guarda-chuvas. Disparo minha primeira pergunta, preciso fazer contato para saber mais sobre o quilombo:

       -  Bom dia, o senhor está passando férias por aqui?

    - Não senhor, sou nascido e moro aqui na Caçandoca. Vim telefonar no orelhão, pedir um botijão de gás, que o meu acabou ontem. Mas o orelhão está quebrado, uma pouca vergonha. Ontem ficamos sem luz e hoje sem telefone! E essa estrada ruim do jeito que está, uma vergonha… uma vergonha! 

      Achei estranho, não imaginei que um branco pudesse ter nascido num quilombo, mas se ele afirmava…

      - Ah, o senhor nasceu aqui? Este lugar sempre foi um quilombo? Quando foi que os escravos chegaram?

       -  O senhor é de onde, mal lhe pergunte?

    -  Desculpe, é verdade, eu nem me apresentei! Meu nome é Chico Abelha (preferi usar o apelido, dependendo do caso facilita a comunicação). Faço pesquisas para o Museu do Folclore de São José dos Campos. Então, o senhor já está aqui há quantos anos?…

      -  72 anos, meu filho, 72 anos…

      -  E o seu nome?

      -  Irineu Santos Neves.

      - Seu Irineu deve conhecer muitas histórias. Não quer me contar como foi que começou o quilombo?

    Seu Irineu moveu o rosto um nadica para o lado e levantou o nariz para dizer:

     - Ah, meu filho, eu conheço muitas histórias, todas elas, mas não vou contar nenhuma não! 

     Falou isso e baixou os olhos, evitando contato visual. É raro a pessoa se negar assim, terminantemente. O mais comum é as pessoas se abrirem, contarem sobre suas vidas, nem que seja para reclamar, mas o seu Irineu mostrou que não estava para conversar não. Nessas horas não tem remédio, é melhor agradecer e tocar em frente. Foi o que fiz.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O QUILOMBO DA CAÇANDOCA (I)


          Há coisa de um ano, o cronista Francisco Ruiz, passando uns dias de verão em Ubatuba, fez questão de conhecer um espaço que recebia muita badalação: o Quilombo da Caçandoca. É muito interessante o seu texto; deverá provocar boas reflexões aos mais sensatos. Afinal, são observações de uma área no espaço da cultura caiçara, com reflexos de uma mentalidade que se distancia do ser caiçara trabalhador, preservador da natureza e do espírito comunitário. É triste ver pobres degradando e querendo fazer o mesmo papel dos exploradores, muitas vezes por ganância, ingenuidade ou por ausência de uma reflexão em torno da identidade cultural. São poucos  que remam contra a maré. Pior ainda é saber que grande parte desses pobres se alimenta da cultura do assistencialismo, de esperar as cestas básicas do governo e por aí afora.


      Depois de mais de uma semana tomando sol na praia da Lagoinha, meu corpo já estava se sentindo como bacalhau de porta de venda e implorando por um banho de cachoeira na mata. Seguindo indicação de amigos, peguei o carro e parti para o Sertão do Quina, na encosta da Serra do Mar, bem atrás da Praia da Maranduba, Ubatuba SP.

        Saí da BR-101 e fui perguntando aqui e ali, para não errar o caminho, sonhando com a minha cachoeira gelada. Depois de uns 6 km rodados, qual não foi minha surpresa quando dou de cara com a BR novamente! Eu havia percorrido uma ferradura e cheguei quase no mesmo lugar! Que fazer agora? Já meio desanimado, resolvi voltar para casa, o tempo não estava mesmo lá essas coisas, achei melhor retornar.

         Ao pegar a pista, a primeira placa que vejo, indicava a Praia da Caçandoca, onde existe um quilombo que há dias eu estava programando visitar, mas vinha evitando por causa do difícil acesso. Num ato impensado, resolvi mudar os planos e tentar a sorte na Caçandoca. De quilombos, eu só conhecia o que havia lido nos livros escolares, que eram grupamentos formados por escravos fugitivos. Como seria um quilombo no séc XXI?

          A estrada era de desanimar qualquer cristão, um atoleiro só. Só segui em frente porque mais de um informante me garantiu que com meu celtinha 2006 eu conseguiria varar os 7 km de barro até a praia. Larguei mão do apego ao carro e meti o pé no acelerador. Em alguns trechos de subida, se o carro não estivesse embalado não ia passar não, o negócio era muito feio…

       Antes da praia, cartazes indicam que estou adentrando os limites do quilombo. Preparo-me para encontrar os primeiros negros, que eu imaginava instalados, pacata e bucolicamente, 
naquele recanto à beira-mar. 

(Continua! Oba!)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

FESTA CAIÇARA NO PORTO NOVO

            Ao ler o convite da festa caiçara no bairro do Porto Novo, em Caraguatatuba, pensei no querido tio Neco e filhos, no finado Garrido, o primeiro caiçara a escrever a respeito da Fazenda dos Ingleses. Só depois vislumbrei a estrutura que ali, tendo o Rio Juqueriquerê como base principal, entre 1927 e 1967, serviu a um grupo inglês para a produção de bananas e cítricos. Muitos caiçaras, inclusive meus parentes da Praia do Pulso, lá trabalharam. Afirmam até hoje que os salários eram bons. Melhor ainda era a estrutura da empresa (tinha médicos, atividades esportivas etc.).


Escola do Porto Novo promove 13ª Festa Caiçara

 
Logotipo do evento criado pela aluna Mariana Ambrósio.




No próximo sábado (21/9/2013), a Emef Prof.ª Maria Aparecida Ujio (Porto Novo) realiza a 13ª Festa Caiçara. O evento, já tradicional na comunidade escolar, tem o objetivo de valorizar a cultura caiçara. 

Este ano, o tema é “O cortês e gentil caiçara”, que homenageará os filhos ilustres de Caraguá. Os caiçaras mais antigos da comunidade do Porto Novo receberão no dia da festa uma placa comemorativa.
A programação começa às 9h, com a tradicional limpeza das areias da praia do Porto Novo, em parceria com a ONG Acaju e a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), em comemoração ao Dia Mundial de Limpeza de Rios e Praias.

Às 17h haverá a abertura da Feira de Exposições com os trabalhos produzidos pelos alunos. Às 18h iniciam as apresentações culturais. No local, os participantes poderão conferir barracas de brincadeiras, comidas e bebidas, com destaque para a moqueca e o caldinho.
Os estudantes ainda vão conhecer os campeões dos Concursos Princesa da 13ª Festa Caiçara e de Miss e Mister Caiçarinha. Durante o evento também será premiada a aluna Mariana Ambrósio, campeã do concurso do logotipo da festa.

Emef Maria Aparecida Ujio
 Avenida Ezequiel da Silva Barreto, 285 – Porto Novo
Telefone (12) 3887-020
FONTE: O GUARUÇÁ

O CAMBUCÁ

Jabuticabeira enfeitada. (Arquivo JRS)


O professor Rui Grilo descobriu a nossa cidade (Ubatuba), gostou e nunca mais quer deixá-la. Além do empenho nas causas sociais, também tem uma intensa atividade na causa ambiental, a partir do Instituto da Árvore, no bairro da Usina Velha. 
Desde que chegou, o Rui sempre procurou se entrosar ao máximo com as pessoas daqui, com a cultura caiçara. Por isso, ele é “uma pedra no sapato” dos politiqueiros e daqueles que querem somente explorar o nosso município. Vale a pena conferir alguns dos seus textos em O Guaruçá.
         O tema de hoje é sobre uma das nossas frutas nativas: o cambucá. Poderia ser a respeito da grumixama, da jabuticaba, do manacaru, etc. É um apelo para não deixarmos de contribuir para a recuperação da nossa biodiversidade.


      Fiquei um bom tempo sem mexer nas prateleiras com mudas. Aqui em Ubatuba o mato cresce rápido e ao tentar arrancar as ervas daninhas descobri que algumas sementes tinham germinado no potinho de sorvete. Lá estava escrito: cambucá.

      Fiquei muito feliz porque é uma árvore bonita, parecida com a jabuticabeira mas com folhas e frutos maiores. O fruto maduro é amarelado. É uma árvore quase em extinção. Já identifiquei uma em uma residência da Gastão Madeira, quase em frente à Secretaria de Educação; e outra, no início da Rodovia Oswaldo Cruz, ao lado do Motel.

       Havia ganhado as sementes de um vizinho. Eram as últimas e poucas.

       Hoje, ao chegar ao Instituto da Árvore, vi que na beira da BR-101 haviam jogado podas de árvores. Fui lá olhar e fiquei impactado: eram troncos de um cambucazeiro.

         Mais uma árvore condenada pelo crime de soltar folhas e sujar o quintal.

          Não sabia que isso iria acontecer, mas nesta semana apresentei a seguinte proposta para a Semana da Mata Atlântica: uma caminhada para observar e registrar em fotos as árvores da Mata Atlântica que ainda sobraram no centro de Ubatuba antes que desapareçam.

Fonte: O Guaruçá.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O PADRE JOÃO

Padre Johannes Beil entre caiçaras de Ubatuba - (Arquivo internet)

O Nenê Velloso, pessoa que muito contribui para o nosso conhecimento sobre a nossa história, num dia desse me perguntou a respeito de uma escola de pesca na Ilhabela, onde vários caiçaras de Ubatuba foram estudar e morar (era um regime de semi-internato). 
Na verdade, era uma escola surgida sob inspiração do padre João, na primeira metade do século XX. Alguns dos meus tios lá estudaram, aprenderam os primeiros ofícios. Me parece que, ao mesmo tempo que contribuía para o aprendizado das técnicas pesqueiras e agrícolas, o devotado sacerdote também esperava despertar vocações para a Igreja Católica. Decerto pensava: “Esse povo precisará sempre de pastores que o entenda, que permaneça entre ele, vivendo essa linda cultura”. É por isso que, podemos dizer: o padre João foi como uma inspiração para, algumas décadas depois, o frei Pio desenvolver o seu empreendedorismo missionário (ASEL, Plimec, Creche Francisquinho...).
          Os mais antigos de Ubatuba ainda se lembram do padre alemão que por aqui desenvolveu suas atividades. Até citam o trabalho missionário e as viagens no “barco do padre João”. A capela São João Batista, na Praia da Fortaleza, foi fundada por meu bisavô Almiro por ordem desse padre. O interessante era a visão mais ampla, querendo abranger ao máximo o Litoral Norte (desde Ubatuba até Ilhabela).
         O que levou o estimado sacerdote a deixar o litoral foi a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Quem me garantiu isso foi o Maneco de Jesus, irmão do Valentim. Os alemães passaram a ser inimigos. Portanto, era inconcebível ficarem próximos do mar, com chance de facilitar os soldados de Hitler. Pelo mesmo argumento, os japoneses do Perequê-mirim, de acordo com Pedro "Feio" Makiyama,  deixaram a área (Colônia Três Praias) que ocupavam.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

ESCOLA ISOLADA (II)

Praia Deserta (Ubatuba), depois da Ponta da Fortaleza (Arquivo JRS)

                Ao começar a segunda parte do relatório dos professores Pedro e Vera, meus compadres desde o começo da década de 1990, vem-me à mente a imagem da primeira vez em que nos encontramos: eles retornavam para a Ilha dos Búzios com uma bagagem bem diversificada (até codornas tinham) e as duas crianças pequenas (Sibila e Pedrinho). Na hora eu pensei: “Esses dois são corajosos!”. Foi quando eu confirmei um dizer dos dois: “Estamos vivendo lá, entre os caiçaras-ilhéus, mas para ensinar é necessário mais”.
                Eu creio que vale a pena retomar o texto para  ver a importância da inculturação, de ir na outra cultura para viver a partir de um novo lugar. Imagine, então, o desafio de ser professor nesse novo contexto!

                A criança buziana chega à escola com “grande conhecimento” das interrelações em sua comunidade nos aspectos sociais, econômicos e culturais que, devido à situação insular, são bastante específicos,  além de dar-lhes a total certeza da distância e diferença de outras regiões e culturas. Diante disso, o professor não tem a função de um decodificador sistemático do código escrito, como se fazia, ou fazem alguns devido às pressões, pois os valores da Educação variam tanto que também lá (na Ilha dos Búzios) a comunidade espera que o professor eduque seus filhos.
                Ora, se educar é formar o cidadão, não podemos treinar  crianças de forma que elas saibam ler e escrever, sem no entanto interiorizarem para que ler e escrever.
                Não podemos levar em frente esse  “status de alfabetizado” em que o indivíduo aprende “ba-be-bi-bo-bu” e depois isto não lhe é útil, sendo muitas vezes funcional, pois cobre certas “necessidades” como assinar documentos. Ele assina o documento, porém não consegue avaliar a necessidade disto ou daquilo. Ele é empurrado por uma sociedade que lhe administra necessidades e lhe empurra (sem tempo para o raciocínio e o sentimento legítimo), gerando consumidores e mão de obra barata.
                Para formar o cidadão temos antes de ter a coragem de trabalhar de uma forma diferente, mesmo que alguns não entendam e outros não queiram entender  (pais, diretores, supervisores, professores) como essas novas maneiras de ensinar abrangem melhor os conteúdos e permitem aos alunos a apreensão dos mesmos, além de uma nova valorização da leitura, da escola e da Educação como um todo.
                Por isso se faz necessário o trabalho abrangente com a cultura local em toda a sua complexidade, desde o início da escolarização, para que a alfabetização se consolide como compreensão, visão, leitura de mundo. E assim todo o Processo Educacional se faça pelo educando auxiliado pelo professor, mero facilitador da aprendizagem.
                Pode parecer comum diante da avançada pedagogia brasileira, mas não se vê e não se reflete nas comunidades todos os avanços  que saem publicados, pois sem entender as transformações de sua cultura e sem  valorizar as tradições (imposições da mídia, do consumismo), a escola tem servido de retrocesso, já que reproduz valores impostos sem o verdadeiro conhecimento das necessidades, causas e consequências. O que tem levado ao analfabetismo funcional.
                Aprender não é uma questão de dificuldade, mas de tempo, de ritmo, de se adequar à comunidade que tem tanta tanta coisa que não conhecemos. À vezes exemplificamos algo com tamanha clareza que causa perplexidade os alunos não alcançarem a compreensão necessária, não ampliarem o tema. E, verificando, vemos então que a compreensão enraizada na cultura é, para nós e para eles, passo a passo,  misturada até que ambos ensinem seus significados –seus mundos, seus sentimentos – suas  condições e visões de mundo e então decidam pela continuidade do processo.
                Foi assim que optamos pelo construtivismo sem querer reproduzir com ele o que se vem fazendo nas escolas brasileiras, onde mudam-se os métodos sem mudarem os valores. Tem sido difícil, pois nem todos compreendem a importância de  se começar de novo. Dizem que se deve prosseguir apesar dos erros passados. Porém, acreditamos que prosseguir não significa construir sobre alicerces podres. Temos que limpar a área e recomeçar (o que significa trabalho maior). Muitos prosseguem sem essa “limpeza”; por isso continuamos a assistir a “vergonha do Sistema de Ensino” e o insucesso do povo que, mesmo estudando passa fome e morre ao relento.
                Acreditamos e já vimos resultados em nosso trabalho (o que não é suficiente, pois a luta é pela continuidade do PROCESSO).

                Conclusão:

            Dessa vivência (seis anos) com os moradores da Ilha dos Búzios, foi notável a transformação em toda a família. Seguiu-se um trabalho semelhante em outra escola isolada, na Praia Mansa, depois dos Castelhanos. Seus filhos são caiçaras mesmo!

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

ESCOLA ISOLADA (I)



"Tá todo mundo louco por espada no Caisão!" (Arquivo JRS)


O presente texto é um relato de trabalho com os caiçaras da Ilha dos Búzios, no arquipélago de Ilhabela (Ilha de São Sebastião). Aconteceu da metade da década de 1980 até 1992, com os meus compadres Pedro e Vera: ele, natural de São Luiz do Paraitinga; ela, de Santos. Portanto, de experiências em outros lugares bem diferentes de uma comunidade de ilhéus, tendo que viajar algumas horas de barco até avistar os trapiches na costeira. O relatório, preservado entre os meus papéis, fez parte de um trabalho de educação ambiental a partir da vida, do conhecimento dos caiçaras. Ou melhor dizendo, uma maneira de abranger a etnobiodiversidade. Nessa época criamos oportunidades de  conhecer muita gente que nunca apareceu na mídia, nem foi devidamente valorizada pelo sistema de ensino oficial, mas que estava fazendo a diferença junto aos mais pobres deste litoral (norte paulista).

As decisões que levam professores a lecionar em Escolas Isoladas são bastante comuns - eles querem lecionar e pela pontuação que possuem não  têm outra escolha.
Chegando em uma comunidade, nada melhor do que ver, enxergar as pessoas,os lugares e as situações. É interessante e peculiar. Podemos conhecer através das posições que as pessoas assumem, suas lideranças e seus medos. Mas a VISÃO é traiçoeira e para lecionar temos de ir além do olhar.
Muitos se mostram e se prontificam a integrar-nos, mas as diferenças culturais podem nos levar a interpretações que conduzirão a práticas e conceitos educativos errôneos.
Ouvindo atentamente as pessoas, tentando participar das mais diversas atividades cotidianas de adultos e crianças, suas relações familiares, comunitárias, com terceiros e profissionais. Aos poucos - e com bastante atenção! - vai formando um mundo curioso de formas, palavras e sentidos singulares e enraizados. E o que é mais impressionante é a certeza que as pessoas têm do resultado de qualquer atitude. 
As justificativas, as concessões... tudo medido, dosado de acordo com a relevância do fato ou da pessoa atingida. Mas ainda assim não se tem a medida justa. Para ensinar é preciso mais.
Ao tentar se integrar nas relações da comunidade é que se vai apurando os sentidos; assim mesmo, SENTINDO. Na maioria das comunidades isoladas o professor não terá vida própria. Será a instituição, a ESCOLA, sem direito a vida própria,  deverá manter o seu papel com dignidade e humildade. Só que isso não é possível. Professores são seres humanos como aqueles a quem ensina (e demais familiares). De certa forma “desprotegido”, já que fica isolado de sua comunidade, em uma comunidade isolada. Quem imagina a situação?
Com todo “sentimento e sentidos” apurados: é neste ponto que se começa a aprender as razões de cada atitude e os motivos que desenvolveram esta cultura (caiçara-ilhéu).
As situações de vida diária numa comunidade  pequena “isolada” tem aspectos relevantes que necessitam de abordagem delicada e bem elaborada. Isto porque a visão do educando e seus sistemas são bem diferenciados, cabendo ao professor, se adequar à cultura valorizando-a.
As transformações da cultura, apesar de ser um processo natural, não são apreendidos com a mesma naturalidade. E, as mudanças ocorridas, não são “entendidas” nos seus valores totais, levando a comunidade a atitudes contraditórias com seus próprios hábitos. Assim, pesquisando, forma-se aos poucos o roteiro das atividades escolares com maior valor para aqueles que estarão sendo educados na rede de ensino.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

VIAJAR DE CANOA


                
           Em tempo de folclore (saber popular), nunca é demais insistir numa coisa tão bem desenvolvida pelos caiçaras, sobretudo de Ubatuba: a arte de fazer canoas. 

           Andei por diferentes regiões, conheci muitas formas originais de locomoção, mas nenhuma delas me comove tanto como a canoa caiçara! Ela é bonita, de uma harmonia inigualável, bem característica do nosso litoral. Deixando a modéstia de lado, posso afirmar que a canoa do litoral norte paulista é a mais bonita de todas.
                Os caiçaras herdaram dos tupinambás a tradição da canoa. Foi Hans Staden quem primeiro observou, em 1555, sobre a arte de tirar da mata as perfeitas embarcações. Eis o relato do alemão:
                “Na terra deles há um determinado tipo de árvore a que dão o nome de igaibira. Eles descascam a casca dessa árvore de cima para baixo, num único pedaço. Para consegui-la inteira, fazem uma armação extra em torno da árvore. Transportam essa casca das montanhas até a beira do mar, onde ela é aquecida sobre o fogo e então dobrada para cima, tanto na parte de trás quanto na da frente. Antes disso, amarram madeiras no meio para que não se distenda. É dessa maneira que fabricam barcos, nos quais até trinta homens podem ir em expedições de guerra. A casca é da grossura de um polegar, tendo mais ou menos quatro pés de largura e quarenta pés de comprimento, algumas ainda mais longas, outras mais curtas. Com tais barcos, eles viajam o quanto quiserem, remando depressa. Se o mar está agitado,  arrastam os barcos para a terra até que o tempo melhore novamente. Não ousam afastar-se mais de duas milhas no mar, mas navegam trechos muito grandes ao longo da costa”.
                Foi a miscigenação, aliada à técnica e aos instrumentos trazidos pelos portugueses (machado, enxó, cepilho, formão goiva etc.), que permitiu um aperfeiçoamento das embarcações e possibilitou as aventuras marítimas dos pobres. Ela (canoa) sempre providenciou o sustento aos caiçaras. “É preciso ter uma canoa e uma casa de telha”, dizia a tia Maria Mesquita (do tio Genésio) referindo-se às condições, por volta de 1930, para um casamento com um mínimo de segurança.
                A necessidade é a mãe da criatividade. Este foi o princípio que despertou tantos fazedores de canoas, dentre eles o meu pai, nas tantas praias de Ubatuba. Muitos deles já morreram, mas suas fabulosas canoas continuam nos encantando, são testemunhas da perfeição estética que se alcançou em séculos de história.
                É isso aí!
                E viva a Mata Atlântica que sempre forneceu as grossas árvores para serem escavadas, transformadas em invejáveis canoas para serem manejadas por gerações de caiçaras!

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

DANÇA DE MOÇAMBIQUE

 
Grupo de Congada do Sertão do Puruba (Arquivo Júlio)
Hoje me peguei pensando numa dança dos antigos, lá na Caçandoca, no tempo dos meu avós  Estevan e Martinha. O nome era MOÇAMBIQUE.
De acordo com a vovó, só os homens dançavam. “Era do tempo dos escravos. Acontecia para festejar N.S. do Rosário e São Benedito. Santaria de preto, meu filho!”. E, continuando: “Os homens manejavam bastões e chamavam bem a atenção com as batidas; tinham fitas nas roupas e, na altura dos joelhos, carregavam um guizo feito de lata. Era aquilo que ajudava na marcação do ritmo”.
Então, podemos concluir que era uma dança votiva, onde se agradecia por alguma graça alcançada. Os bastões representavam as espadas nos combates. Sempre tinha viola acompanhando tambor e pandeiro. A vovó ainda citava uma tal de birimba que eu não sei do que se trata. Será parente do birimbau? Mais tarde, já morando no bairro da Estufa, soube de um grupo de Moçambique, onde dançavam o Tobias, o tio Aristides, o Mané Mariano e outros. Deles, eu escutei: “Tinha mais grupos como o nosso. No centro da cidade (Ubatuba) tinha o pessoal do Modesto. No Taquaral quem animava outros moçambiqueiros era a Maria Xana. Era um tempo bom aquele!”.
Atualmente, no município inteiro, só tem o grupo de CONGADA do Sertão do Puruba, sob o comando do mestre Dito Fernandes. É muito semelhante às descrições da Dança de MOÇAMBIQUE descrita pelos meus antigos. Ah! Tem também o grupo do CORTIÇO, cujo incentivadores são Papão e sua esposa. 
O velho Antonio “Sapato Branco”, um negro que conheci nas obras, no Perequê-mirim na década de 1970,  se dizia congadeiro na sua terra (Jacareí - SP). Dele eu escutei o seguinte:

“A história do rei do Congo é assim: três reis se dirigiam para adorar o Deus-menino, lá na Gruta de Belém. Isso faz muito tempo! Um deles era negro. Por isso, os outros dois quiseram lhe passar a perna, chegar primeiro no lugar santo. Então mostraram a ele um caminho mais longo, que tinha de dar muitas voltas. Imagine um preto ver primeiro o Rei dos reis!?! Ele foi pelo caminho indicado. Os outros dois se mandaram pelo mais curto. Mas Deus é pai de todos! Viu que o preto tinha sido logrado! Então fez o milagre: quando os outros dois avistaram a gruta com a Sagrada Família, quem estava lá? Isso mesmo! O rei escurinho,da cor do pião aqui, já adorava Jesus depois de ter dado o seu presente. Acho que era mirra, uma erva milagrosa que ainda existe. Fazia tempo que ele tinha chegado. Os outros reis se admiraram da façanha. Se arrependeram. Ao se ajoelharem diante do Filho de Deus, escutaram de sua boquinha: ‘Este rei que vocês enganaram, será a cada ano coroado como Rei do Congo’. Assim teve início a Congada nesse mundo”.

sábado, 7 de setembro de 2013

PAU CHEIROSO


Canoas feitas por papai. (Arquivo JRS)
                 Em homenagem ao empenho do Peter pelas canoas caiçaras, resolvi republicar este texto, fruto de uma saudosa convivência nas praias da Enseada e Perequê-mirim, na década de 1970. Faz tempo? Pois parece que foi ontem!


       Em certa ocasião,  na praia  da  Enseada, vindo de uma pescaria com o meu pai, vivi uma oportunidade única:  escutar o velho Henrique, o Fabiano e o Bráulio contarem causos de canoas.
                O velho Henrique, na ocasião, trabalhava na guarita da entrada da praia para impedir que os carros ficassem passeando pela areia, no lagamar. Bráulio Rocha era caseiro de um ricaço, no Canto da Bá. Fabiano fazia canoas. O comum a todos: eram caiçaras, adoravam conversar e sempre estavam combinando pescarias.
                 Meu pai, grande amigo deles, também tinha tais características. Foi ele que começou falando de canoa.  Disse que ficou impressionado por uma delas na praia do Puruba, cujo nome era Sacrifício, devido o trabalho que deu para trazer de onde foi cortada a timbuíba até chegar no rio da Escorregosa, no sertão do Cambucá. Depois, foi preciso navegar  por toda a baixada do Quiririm até os ranchos, na boca do rio. Quem quiser conferir tá lá: é a canoa preta repleta de redes. Ao lado dela, no mesmo rancho, tem duas azuis. O finado tio Durval dizia: “São as minhas queridas”.
                Em seguida, o Bráulio, da família Rocha (de muitos contadores de causos!), explicou o nome da sua embarcação, resultado da técnica caiçara num ingazeiro na badeja do Argemiro. Tinha o nome de Meu bem querer por escolha de sua companheira, representando o amor que os unia.
                 O Dito Henrique, já bastante idoso, devia ter inúmeros causos de canoas, mas contou de uma lá da praia da Fortaleza. Tratava-se de uma canoa rombuda, curta e grossa, de capurubu, com um mínimo de acabamento, “feito só no machado” conforme expressão usada nesses casos. Porém, era uma canoa própria para cargas. O nome dela: Cu grandecujo dono a era o tio Genésio, filho do nhonhô Armiro, “um homem de coração tamanho do mundo”. Por isso, sempre que alguém tinha uma boa carga, logo dizia: “Vou na Cu grande do Genésio; só ali cabe uma montoeira de coisas”. E ele emprestava prontamente a canoa "que mais podia ser chamada de Feiosa", conforme conclui o velho Henrique.
                 Finalmente, o Fabiano, pai do nosso amigo José Carlos Góis, que terminava uma canoa feita de canela-bosta, lá no Morro do Funhanhado, arrematou a prosa:
                - Depois de ouvir vocês, me inspirei para dar nome à minha canoa. No mês que vem, por ocasião da pegadeira de peixe-porco, ela romperá a arrebentação das ondas com o nome de Pau cheiroso.
                Todos riram e concordaram que era o nome mais apropriado nesse caso.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

CAIÇARADA



 
Arte na escola (Arquivo Maria Alice - Marafunda)

        A amiga Fátima Souza, caiçara do Itaguá, a partir da festa (Caiçarada), tece importantes comentários dos rumos da cultura caiçara, sobretudo da situação pesqueira - e do pescador! - em Ubatuba. Volto a dizer: é uma pena que a "máquina municipal" não aproveite o talento de pessoas como essa amiga. Teríamos "uma mão na roda" no turismo cultural!

O legítimo caiçara era aquele que tinha vida própria. Diferente do caiçara de hoje que segue as normas da globalização. Que pressionado pelo caminho evolutivo, tenta manter suas tradições tanto quanto possível, mas bastante deturpado pelo progresso que Ubatuba atingiu. Um progresso que lhe apresenta melhores condições de vida, mas que na verdade é somente um foco ilusório. Muitos desses remanescentes de caiçaras de vida própria tiveram que se desfazer de suas propriedades, terras onde viviam tranquilos para irem viver na cidade contraindo uma vida de incertezas e preocupações.
De 1500 ao começo do século XX, os caiçaras usavam técnicas não predatórias, tanto na pesca como na lavoura. Então essa vida própria se dava pela organização social econômica chamada de “Quinhões”. Muito mais lucrativa naquilo que lhes cabia. Naquilo que lhes era possível de trabalhar. Na pesca, um pescador camarada ou proprietário de rede, por exemplo, tinham lucro certo e exato. Como não tinha mercado de peixe, o pescador vendia seu produto diretamente na cidade. Eles faziam o preço do peixe em fieiras ou balaios, e tinham o lucro certo.
Hoje o pescador vive quase e exclusivamente como um assalariado. Ele não tem rede, não tem barco, e se tem barco e rede depende do mercantilismo do peixe feito pelo intermediário que não sabe o que é passar um perrengue no mar. Nunca molhou o pé na água salgada, mas vive bem com os lucros obtidos pelos preços elevados. Usufrui assim do lucro que o pescador não tem.
Essa mudança se deu por volta dos anos de 1920-1940 quando novas técnicas de pesca foram incorporadas no litoral paulista. Uma dessas técnicas são os cercos flutuantes, introduzidos em Ubatuba pelo Dr. Wladimir de Toledo Piza. Ele trouxe um japonês com família em Ilhabela para ensinar este tipo de pesca aos pescadores de Ubatuba, mais precisamente aos pescadores do Itaguá e Ponta Grossa. Também a técnica de arrastão.
Criando uma nova concepção de captura e comercialização de pescado, conseqüentemente o início do processo de transformação das relações de trabalho.
Tudo isso vira um caldeirão borbulhante com o melhoramento da rede viária nos anos 50 e desenvolvimento urbano turístico do município. É quando o lavrador-pescador se transforma em pescador artesanal. Já nos anos 60 é criada a SUDEPE que incentiva a pesca empresarial, uma vez que sua política é a industrialização da pesca. O pescador artesanal se sente prejudicado. Nos anos 70 com a abertura da rodovia Rio-Santos (BR-101) integrando várias regiões, acontece a especulação imobiliária devido o fluxo sazonal de turista/veranista em busca das paisagens naturais do município, surge aí o profissional de pesca que vive exclusivamente da pesca esse defronta com a criação de parques definida pela expansão da política de áreas preservadas da região.
Atualmente a caiçarada pescadora ou não observa a expansão de estruturas que confrontam com a dinâmica de sua realidade. Principalmente quando se pontua os entraves das legislações trabalhistas e das políticas ambientais muito restritivas que são criadas e elaboradas sem levar em conta as reivindicações e necessidades dos caiçaras que de uma forma ou de outra vivem da lavoura, da pesca artesanal. Ou simplesmente viver e respirar este jeito caiçara ímpar de ser.
Nós caiçaras merecemos respeito!
Para tanto é necessário que comecemos por nós mesmos, abraçando o orgulho de ser Caiçara.


(Fonte: O Guaruçá)