sábado, 31 de outubro de 2020

DEIXA ESTAR

Uma das praias de Ubatuba (Arquivo JRS)

 


                Sigo pela rodovia em direção ao Vale do Paraíba. Logo depois da serra, nas cercanias da cidade de Paraibuna, assim que o sol já iluminava tudo, avistei uma edificação com uns dizeres relativos a crédito de carbono. Pelo que estava escrito, uma empresa francesa, montando aquilo ali, poderia continuar poluindo em outro lugar. Ou seja, ali, na Mata Atlântica, se adquiria crédito para justificar a morte de outros ambientes mundo afora. “É certo isso?”, me perguntou o tio Tonico.

                Agora deixo as estradas, os lugares mais longes... Me volto às proximidades, ao meu entorno. Entulhos em praças públicas, carros velhos abandonados pelas calçadas, sacolas plásticas enfiadas nos entremeios das plantas. Até roupas encontro no meu canteiro na beira do muro. Brincou o Ditão um dia desses: “Você viu que tem cueca, calcinha, camiseta, boné e até um vestido chique adornando as suas coroas-de-cristo?”.

                Que falta faz uma boa educação! A quem interessa uma escola assistencialista? Onde vai parar uma educação escolar destratada por governantes que vivem desmerecendo alunos e professores? O Brasil, segundo informação recente, há um ano não tem multa ambiental sendo cobrada, mas nós vemos por todo lado as irregularidades acontecendo cada vez mais.

                Por tudo isso e muito mais, vivemos uma crise civilizatória no Brasil, no nosso país. O ódio é honrado em discursos. Paulo Freire, uma referência na educação escolar mundial, é preterido  -  e perseguido! – por um doente chamado Olavo de Carvalho, o guru do presidente do momento. Impera a lei do menor esforço, de se aproveitar de quem trabalha para acumular mais e mais. Por isso prevalece essa mentalidade de jogar trastes por cima do muro alheio, abandonar carros velhos, sujar praias e rios, fazer de tudo para adquirir os tais créditos de carbono etc. Tempos atrás, chegando de uma viagem à França, assim se expressou o Jacques: “Os franceses são civilizados. As cidades são limpas e lindas. Você precisa ir ver a realidade deles um dia, Zé”. Não teve como eu não rebatê-lo: “Eu sei disso, mas na terra dos outros eles continuam sendo civilizados?”. E o que dizer desses nativos da nossa terra, da nossa vizinhança seguindo os péssimos exemplos dos exploradores? Mamãe, que escutou com atenção a leitura deste, só disse isto: “Deixa estar, Zezinho. Você verá onde vai chegar tudo isso”.



sexta-feira, 30 de outubro de 2020

MANÉ MANCEDO, VIOLEIRO CAIÇARA

O primo Elias (Arquivo JRS)

               Em 1980 eu conheci, morando na subida do Morro da Torre (Praia do Cedro, caminho da Ponta Grossa, no centro do município), Mané Mancedo, um violeiro do Ubatumirim. Estranhei estar tão longe do seu lugar querido, lá da região norte. Agora era caseiro, cuidava da terra de gente rica. Já estava em idade que não podia sr chamado mais de jovem, morando naquela lonjura, tendo de enfrentar uma subida brava e uma estrada de terra bem extensa quando precisava de alguma coisa (mantimentos, remédios...). O seu abrigo era muito pobre. Ficava bem longe o vizinho mais perto, a gente do Paru, no Cedro. Passamos umas horas em prosa. Apesar de estar num lugar lindo, de onde tinha uma visão privilegiada do mar, ele aparentava desanimado. Também pudera, né? Quem viveu sempre entre gente conhecida, brincando nas funções (bailes), agora estar tão isolado, não devia ser fácil mesmo! Quando avistei na parede a viola ensacada, perguntei se ele podia tocar algo para mim. Na hora ele brilhou os olhos e se levantou do banco. E foi puxando um calango, cujas letras estavam muito próximas da que transcrevo agora, escritas pelo Agenor, também morador do Ubatumirim:


Tô aqui porque cheguei,

mais não posso demorá,

que casa pra mim é festa

e festa se torna em casa,

na batida do calango

se livre de eu me enfezá,

visto carça pra cabeça

e paletó pro carcanhá.


Nunca vi porta sem régua,

nem gruta sem boquerão;

difunto depois que morre

não pode injeitá caxão;

olho no chão é buraco,

olho no buraco é chão

que eu sô ruim, sô bão, sô mau

e sô mau, sô ruim, sô bão.


Escorregá não é caí,

é o jeito que o corpo dá.

Nunca vi caí curisco 

antes de relampejá;

carne seca não me ingasga,

chuva fina não me molha,

sereno qué me molhá.


Saracura não tem dente

chupô meu canaviá.

Minha barba pegô fogo,

meu bigode qué queimá;

arranco pau com raiz,

no chão não dexo siná,

qu'eu sô mesmo desse jeito,

qu'eu tenho por quem puxá.



 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (VI)

Mata e água para  todos (Arquivo JRS)

 

LOBISOMEM

                Diziam os antigos que há muitos e muitos anos existia o lobisomem, que eram homens que viravam grandes cachorros nas noites de lua cheia.

                Segundo a minha avó, já falecida, no lugarejo onde ela morava existia um lobisomem que atacava os moradores de lá e à noite ninguém se arriscava a sair de casa.

                Certa noite, uma vizinha dela precisou sair para buscar remédio para o filho que estava muito doente. O marido dela não estava em casa. Mesmo com medo ela tinha que ir, pois seu filho estava muito mal. Então ela pegou um fifó, acendeu e foi até a casa da comadre que ficava bem distante dali. Na volta ela viu um animal saindo do mato. Já com medo ela apertou o passo, mas o bicho a viu e começou a ir na direção dela. Então ela correu, correu e conseguiu subir em uma árvore. O animal ficou tentando alcançá-la e acabou lhe rasgando a roupa. Ela percebeu que era um lobisomem pois era muito feio e cheio de pelos. Não conseguindo pegá-la, o bicho foi embora. Então ela desceu da árvore e foi correndo embora, já tinha demorado demais ali.

                Chegando em casa seu marido ainda não havia chegado. Então ela pegou o remédio e deu ao filho e foi se deitar.

                No outro dia todo mundo estava falando que o lobisomem tinha atacado de novo. Ela ficou preocupada pois seu marido não tinha dormido em casa. Foi aí que ela resolveu procurá-lo, pois tinha medo que o lobisomem o tivesse matado. Quando estava para sair, o marido chegou falando que tinha dormido na casa do compadre, pois  ficou com medo de andar à noite. Ela acreditou nele. Entraram e sentaram num banco que ficava na sala. Ele deitou no colo dela dizendo que não tinha dormido bem e começou a cochilar. Foi aí que ela notou que ele estava com os dentes cheios de fiapos de pano e reconheceu os fios pois eram de sua roupa que o lobisomem tinha rasgado. Com medo, ela pediu para ele ir deitar um pouco que ela ia falar com a comadre e já voltava. Saiu tremendo de medo e contou à comadre o que tinha acontecido. A comadre apenas disse para ela não falar nada para ninguém senão ele descobriria e a mataria.

                Voltando para casa ela viu que o marido ainda dormia, então ela pegou o filho e foi embora para a casa dos seus pais e deixou o lobisomem sozinho.


(Autora: J.C.O)


terça-feira, 27 de outubro de 2020

AÇUCENAS PELOS CAMINHOS

Orquídea da Mata Atlântica (Arquivo JRS)


          Tia Martinha parecia ser muito brava. E era mesmo! Porém, tinha um grande amor pela natureza.  Ela, irmã da tia Aninha e da tia Luíza, gente da Praia Brava, foi casada com o tio Cláudio, irmão do nhonhô Armiro e do tio Maneco. Já era viúva desde a minha primeira lembrança dela. Sozinha labutava na roça com perseverança. Nós sempre avistávamos ela, em momentos diferentes do dia, passando com alguma ferramenta (machado, foice...) em direção às plantações ou voltando delas.  Na sua  velha moradia, no pé do morro, tive as primeiras aulas, aprendi das letras e números. Era a nossa escola! Lugar cheio de árvores com orquídeas diversas. Uma enorme goiabeira, no início do ano, era onde se ajuntava mais crianças no momento do recreio. Chão prazeroso, onde foi bem alimentado o meu ser social. Todos eram parentes naquele espaço. Da minha casa, somente eu e a mana Ana estudamos ali. Boas lembranças.

          Ontem avistei uma açucena laranja, igual aqueles que a tia Martinha tanto adorava. Numa ocasião, estando por perto dela que mexia na terra, fui chamado: "Zezinho, venha cá. Você consegue carregar este balaio? São mudas de açucena. Vamos plantar comigo?". Eu, que era de pouca fala, somente balancei a cabeça e já fui erguendo o balaio, seguindo ela que andava vagarosamente. De pouco em pouco parava, carpia um espaço, cavava e deixava uma muda. Não demorou muito para o balaio ser esvaziado. "Pronto. Terminamos. Agora você pode trazer água da bica e regar elas. No ano que vem, você vai ver, teremos mais flores por aí tudo. Deus te abençoe, menino".

 
                       Hoje, na madrugada, me recordei desse momento distante, sendo convidado a plantar flores com a titia. Pensei nos caminhos de servidão dos caiçaras onde, no tempo certo, as açucenas laranjas despertam atenções. Me dou conta que provavelmente foram plantadas há muito tempo, por pessoas sensíveis como a tia Martinha e tantas outras que alimentaram o meu ser social desde a infância.  Precisamos plantar e semear se desejamos flores e caminhos arborizados sempre. Devemos prosseguir nos exemplos de tanta gente que já se foi, mas que permanecem na satisfação que sentimos em nossas andanças pelos caminhos caiçaras. Alguém duvida disso?

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (V)

Semente na areia (Arquivo JRS)

 

ASSOMBRAR QUEM ASSOMBRA

            Meu marido conta que, na fazenda onde morou, foi atormentado várias noites por uma assombração. Ele dizia que todas as noites, quando deitava, era só apagar  as luzes que vinha uma coisa arrastando os chinelos. E escutava o barulho da fechadura da porta mexendo e a porta se abrindo e encostando até o canto. Ele ficava apavorado, tirava as mãos para fora do cobertor, tentava tocar na coisa e não achava nada. Ele cobria a cabeça e sentia uma coisa puxando seu cobertor. Ele puxava e a coisa também puxava. Ele ficava apavorado e começava a rezar a oração do Credo para espantar a coisa.

                Era só começar essa oração que a coisa ia embora e ele pegava no sono.

                Um dia ele teve que viajar e o irmão dele dormiu na fazenda. À noite, o rapaz colocou o colchão no chão e foi dormir sem saber de nada. Foi só ele deitar... Apagou a luz, ficou quietinho, cobriu-se e, de repente escutou um barulho estranho de alguém arrastando chinelo. Ele nem aí para aquele barulho. A coisa mexeu na fechadura da porta, ele escutou a porta abrindo e a assombração já chegou puxando ele pelos pés. Ele ficou tão apavorado que só sabia xingar. Xingou a assombração de tudo que foi nome, só não chamou de santo. A assombração foi embora e ele ferrou no sono.

                No dia seguinte ele contou para o irmão o que tinha acontecido. O irmão que tinha voltado da viagem, respondeu: “essa coisa estava precisando ouvir poucas e boas de alguém corajoso como você. Parabéns, você espantou a coisa para sempre com seus palavrões”.

(Autora V.J.S.E)

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

RAÇA DE MANDIOCA

 

Vida de pescador (Arquivo JRS)


                Tempo de crise, dia nublado... Uma caminhada para ver gente e saciar a visão com as cores do meu lugar. Não demoro muito para reconhecer entre os pescadores o caçula do Maneco Jordão.

                 Maneco Jordão tinha casa depois da barra, no fim do caminho das Galhetas. Aquele morro todo era cheio de roças. De passagem por ali, nunca se podia rejeitar uma prosa e alguma coisa para comer. Era desfeita ao caiçara. O assunto naquele dia, quando eu era apenas um adolescente andejo, foi mandioca.

    "Este eito que vem desde as grimpas até o córrego é eito novo. Só plantei agora da raça dois irmãos. Está tudo em cepa brotando ainda. É raiz mansa, a vizinhança toda tem dela agora. Dizem que foi trazida de Iguape, longe daqui, mar de manjuba, lugar que eu não conheço ainda. Tem esse nome porque dá só duas pernas, como ova de tainha. Dois irmãos, né? Aquela dali, que estamos colhendo neste tempo, é catarinense. Repara na folha dela: não é bonita mesmo?"

    A tal mandioca catarinense eu já conhecia porque o vovô Estevan cultivava no Sapê, no areião da Queimada, defronte ao porto do Eixo. Era bem diferente no formato das folhas: miúda, cheia de recortes, delicada. Se dava muito bem naquele chão (quente e cheio de tocas de marimbondo caçador) que rodeava a casa. 

    Todas as variedades de mandioca serviam para fazer farinha, mas as bravas eram melhores, no dizer do meu povo. As conhecidas como mansas eram preferidas ao cultivo devido as criações (galinha, pato, porco...), mas sobretudo à nossa alimentação. Não havia perigo em alimentar os bichos com elas. Já as bravas viviam causando transtornos. O saudoso Maneco tinha delas também.

    "Na derradeira subida, no enforcamento do morro, virando para a posse do Henrique Mesquita, é só gongá. Raça de raiz mais brava do que aquela ainda não conheci, nem ouvi falar em lugar algum. Acho que não tem mesmo! Só que não tem melhor do que ela para fazer farinha! Desde do tempo do finado meu avô - que Deus o tenha! - nós preservamos dessa rama aqui. Ele contava que foi trazida do sertão do Ceará, do lugar chamado Poranga. 'Chegou junto com os escravos do Bernardino de Sá, numa carga dele', dizia de vez em quando. Creio que repetia sempre na intenção da gente não esquecer a história, de onde veio essa rama brava. Contava também um fato para nos manter atento ao perigo da gongá: 'A primeira vez que foi colhida aqui, sem ninguém conhecer direito, ao socarem no terreiro para a criação, sentiram o prejuízo. Os mais velhos contavam que morreu no mesmo dia toda a criação de porcos do fazendeiro, daqueles que viviam soltos, andando por aí tudo. Também se perdeu patos e galinhas. Dessa época em diante, a mandioca mais respeitada é a gongá. Farinha boa é farinha de gongá! Quando eu chego na cidade, com farinha para vender, logo tem alguém perguntando se é de mandioca gongá. É gente que prefere dela, né?".


Em tempo: confesso que eu não sabia da existência de tantas variedades de mandioca. Quem me explicou foi o estimado Marcílio, da Estação Experimental, do Horto Florestal, em Ubatuba. O ano era 1997, quando ainda havia pesquisadores ativos naquele local que foi um importante centro de pesquisas agronômicas do meu chão caiçara.  (Hoje, andando pelo Horto, dá vontade de chorar vendo o grande descaso dos governantes num tempo tão breve). Numa área, entre as palmeiras (pupunhas) e o bambuzal, cento e vinte cinco espécies de ramas de mandiocas estavam devidamente identificadas para estudos. Tinha gongá? Não sei. Até me esqueci de perguntar.

domingo, 18 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (IV)

 

Tinha uma pedra no meio do caminho (Arquivo JRS)

               

A MOÇA ENCANTADA

               Meu tio contava que na pedreira onde trabalhou, ele sempre ouvia vozes muito estranhas que parecia vir de muito longe. Mas era uma voz bonita, até parecia voz de alguém chamando.

                Um dia ele resolveu chamar meu pai para ir lá no meio das pedras para ver o que era aquele barulho ou aquela voz. Meu pai falava para ele que lá tinha uma moça encantada e que era uma loira muito bonita. Um dia, escondido do meu pai, ele resolveu ir sozinho. Quando ele se aproximou das pedras ele falou: “se for uma moça bonita, apareça para mim, que eu quero ter ver de perto, porque eu não acredito que você é encantada”. Se aproximou mais e foi até o oco das pedras, quando um raio de sol iluminou tudo tão forte que ele ficou atordoado e foi atacado por muitas abelhas. O estranho é que naquele lugar nunca existiu abelha. As abelhas eram  só um sinal para que ninguém invadisse aquele local.

Meu pai sempre falava que havia um encanto entre as pedras.

(Autora: V. J. S. E)

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

MÁQUINA DO TEMPO

 

Flores da Dilma (Arquivo JRS)


                Hoje comecei o dia lendo Rubem Alves. Tem uma passagem que é muito interessante, sobretudo quando nos identificamos como bons escutadores de histórias que também gostam de contar causos. É assim: “Já houve um tempo em que fui criança [...] O tempo é isto: o poder que faz com que coisas que existem deixem de existir para que outras que não existam, venham a existir [...] Eu posso passear no seu mundo, que existe. Mas eu gostaria que vocês passeassem no mundo da minha meninice, que não existe mais. Acho que vocês gostariam, porque era um mundo tão diferente...”. E, seguindo a narrativa, ele diz que “é preciso embarcar numa Máquina do Tempo”, que ela “está dentro da nossa cabeça”. “Ela se chama imaginação”.  Lindo, né?


                Eu gosto de ouvir coisas atuais, mas adoro quando contam situações vivenciadas em outros espaços e em outros tempos. Ah! Quantos causos! E quando eles vinham sob luz bruxuleante, de lamparinas que pareciam estar nos últimos suspiros, nos convidando para dormir!? Coisa boa demais! E quando eram histórias de assombração, que nos arrepiavam por toda a narrativa!? Pior era depois ter de sair para o terreiro, pois na minha meninice não havia banheiro dentro de casa. A solução era o cisqueiro (“usar o mato”) ou o penico. Olhar aquela escuridão, os salpicados pontos luminosos dos vaga-lumes... escutar os sapos, a nimbuias e toda a passarinhada da noite era alimentar a nossa imaginação medrosa. Mas era preciso se superar diante da pergunta-ordem da mamãe: “Todo mundo já mijou antes de ir pra cama?”.


                Num desses dias, comentando uma situação de medo de escuro, afirmei que as assombrações do meu tempo de criança desapareceram depois que chegou a luz elétrica. A nossa imaginação perdeu força com essa tecnologia, essa “facilidade da vida”. Coitadas delas (das assombrações)! Ah! Mas também apareceu a televisão substituindo os contadores de causos, de histórias que embalavam nossas vivências! E hoje, aparelhos mais modernos enfeitiçam nossas vidas, transferem os prazeres para outras esferas, nos tornam mais egoístas, indiferentes para esse mundo tão próximo, de pessoas tão concretas. A função deles? Criar outras necessidades (comprar computadores e outros equipamentos de última geração,  games etc.), gerar outras dependências que garantam os lucros de uma mínima parcela da população, deixar a autonomia mais longe no horizonte da utopia!

                Ontem encontrei o pai da Tainá, uma ex-aluna que não vejo há mais de dez anos. “Ela se casou, vive na Islândia. Eu tenho uma linda netinha”. E já foi puxando, do celular, uma série de imagens de uma terra muito distante de Ubatuba, onde Tainá nasceu e se criou. E, empolgado, me mostrou desenhos de animais e plantas tropicais: “São trabalhos, aquarelas da Tainá. Ela agora está aqui. Na semana que vem certamente você a verá, pois ela vem nos fazer uma visita”. E a minha Máquina do Tempo é ativada pela menina tranquila, estudante, num tempo que a internet ainda era, para poucos,  a grande novidade.



terça-feira, 13 de outubro de 2020

VAMOS DE SIRI PATOLA?

Rabeca do tio Dário (Arquivo JRS)

       Desde 2017 o meu filho Estevan é o guardião da rabeca do saudoso tio Dário Barreto.  Ela e ele andam por aí, nos fandangos da vida. Muita honra nos deram os primos Elias, Ditinho e Toninho nesse presente inigualável, que faz parte de mim desde criança. "Nossa! A rabeca do tio Dário!". A música segue seu caminho; a alegria está com eles: os festivos caiçaras. A poesia vem na onda da memória, quando a casa mais próxima da nossa era a do titio, onde eu passeava e ouvia os acordes na acolhedora sala daquele lar, naquele morro de paz.


Toninho bodocava por ali,

Vivia passarinhando sempre que podia.

Pegava a viola num instante.

Elias se abraçava com o cavaquinho

E tirava seus chorinhos.

Ditinho tinha um violão.

Tia Maria e tio Dário regiam tudo.

"Vamos de Siri patola?"

E daí logo emendava no Patieiro,

Na Flor do abacateiro 

E outras tantas músicas nascidas não sei de onde.


E por fim, depois de corrida tantas,

Tio Dário só.

O arco da rabeca ia e vinha,

Um som choroso se alastrava,

Tomava toda a casa,

Seguia porta afora.

Os filhos e eu fechávamos os olhos.

Enquanto isso,

Na voz da tia Maria,

As rezas ganhavam corpo,

Iam fechando tudo.


Lá fora... a noite chegando.


Um grito ao longe:

Mamãe me chamando.
 


 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (III)

 

Pintura na pedra (Arquivo JRS)

COMPADRE LOBISOMEM

                Durante muito tempo meu vizinho estava sentido falta de galinhas a cada manhã. No começo ele achava que era raposa e encheu sua espingarda de chumbo para  ficar espreitando a danada. Nesse dia ele avisou a comadre que iria ficar a noite no galinheiro e que ela não se assustasse se ouvisse algum tiro.

                Então ele ficou escondido no galinheiro. Era uma bonita noite de lua cheia. De repente as galinhas começaram a cacarejar e ele colocou a espingarda em punho, pronto para dar cabo da condenada da raposa. Daí apareceu na frente dele uma criatura estranha: meio lobo, meio homem. Ele ficou todo arrepiado e lembrou-se da história de lobisomem que o pai dele contava. O pior é que a fera lembrava alguém conhecido, por isso ele não atirou. Mas deu uma boa paulada nas costas do bicho que fez o tal sair correndo e uivando de dor.       Assustado, ele correu para sua casa e contou tudo para a sua mulher, só não falou que ele desconfiou do seu compadre Manezinho. Nessa noite não conseguiu pegar no sono.

                Na manhã seguinte ele foi até a casa do seu compadre. Chegando lá, para sua surpresa, ele encontrou o compadre Manezinho andando torto e se queixando de dor nas costas, bem onde tinha acertado a paulada. Então, mais uma vez ele se lembrou do seu pai e do avô e nada falou para a comadre, porque o lobisomem mata quem descobre a sua triste sina. Desde esse dia em diante ele organizou o galinheiro, falou para o compadre Manezinho que ele ia aprontar uma armadilha para raposa, pois teve um dia que ele ficou esperando a danada, dormiu e sonhou com uma coisa muito esquisita, que com certeza não existe de verdade.

                Ele guardou esse segredo e nunca mais deixou nenhum filho sem batizar com medo do lobisomem comer, porque o lobisomem come criança pagã.

                Esta história foi contada pelo meu bisavô (vô Arlindo, pai da mãe do meu pai).

(Autora: J.A.L)


domingo, 11 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (II)

Chuva de ouro florida no quintal (Arquivo JRS)

    

 BRINCANDO COM O DESCONHECIDO

    Naquela noite, após o jantar, Seo Antônio sentou-se à mesa e falou para sua esposa: "me traz um papel". Ela não entendeu qual seria sua brincadeira naquela noite, pois Seo Antônio gostava de brincar com o desconhecido.

    Ele pegou o papel e fez um círculo com sete cobras e, no meio desse círculo desenhou um rosto muito estranho e falou que esse rosto era o capeta. Ele desafiou o desconhecido e falou: "só acredito que o capeta tem poder se eu colocar fogo no papel e queimar todas as cobras e o rosto dele escapar sem fogo". Em seguida ele colocou fogo e se assustou quando viu todas as cobras serem queimadas e o rosto do homem que ele dizia ser o capeta ficar sem queimar. Ele ficou assustado.

    Na noite seguinte, ele deitava-se para dormir quando, de repente, olhou no telhado e viu sete cobras. Ele pegou um pedaço de pau e matou seis cobras. Uma fugiu. Então ele se lembrou do desafio que tinha feito na noite anterior. Ele pensou: "se eram sete cobras e eu consegui matar seis, então a sétima que escapou era o capeta".

    Ele jura que é verdade. Hoje ele não mora mais nesse sítio, que está abandonado.

(Autora: M F N L)

sábado, 10 de outubro de 2020

FARRA DE CAUSOS (I)

 

Noite de causos (Arquivo JRS)

    No ano de 2006, a minha esposa iniciou uma atividade com alunos adultos durante as aulas de História. A proposta era trabalhar a contação oral e escrita de causos, estimulando a convivência entre eles. Assim aconteceu: contaram histórias, falaram  de suas vidas, suas experiências, medos, crenças, valores, ou seja, cada um expôs um pouco de si mesmo perante os colegas, revivendo a tradicional contação de causos da tradição caiçara.  "A atividade de contar histórias faz as pessoas se identificarem com os outros não somente pelas experiências, valores e temores, mas sobretudo pela própria condição tão humana de narradores", diz a minha Gal.

    A partir de hoje, ainda que de forma lacunar, darei minha contribuição no objetivo de levar os textos deles a outras pessoas, a leitores reais, que todos tinham em mente quando escreveram suas histórias. Infelizmente, no momento, não temos como acessar os autores dos causos para agradecer, noticiar a minha iniciativa e deixá-los mais orgulhosos ainda da obra final deles. Ela se perpetua, continua se expandindo mundo afora. Parabéns e obrigado pela produção maravilhosa! Conforme forem acessando, tomando conhecimento, repassem aos demais, por favor. Espero que apreciem a  Farra de Causos.


ASSOMBRAÇÃO NO FUSCA

    Minha cunhada morava com um mecânico em um sobrado ao lado da casa da minha comadre. Na parte de baixo do sobrado, no fundo do quintal era uma oficina, cheia de carros velhos.

    Então, um belo dia, minha cunhada brigou com o marido e eles se separaram. Ela foi morar na parte de cima e ele ficou em baixo. Ele gostava muito de beber. Um dia, ele saiu para beber e encontrou com um amigo que havia acabado de sair do presídio e convidou esse amigo para morar e trabalhar com ele. O amigo ficou trabalhando e morando nesta oficina durante seis meses.

    Passando esse tempo, ninguém sabia nada a seu respeito. Ele passou a beber e acabou falecendo dentro dessa casa. As pessoas que moravam lá tentaram contato com os familiares dele sem sucesso, então o enterraram assim mesmo. Após o enterro do rapaz, sete dias certinho, minha comadre saiu no quintal e viu dentro de um fusca velho velas acesas. Ela foi olhar se eram mesmo velas e quando chegou perto viu que não havia nada dentro do carro, nem um pingo de vela.

    Passaram-se mais sete dias e aconteceu novamente. Então ela achou que seu cunhado havia bebido e estava com palhaçada. Ela foi olhar na casa dele e ele não estava lá. Aí ela ficou preocupada.

    A mesma coisa aconteceu três vezes seguidas. Na quarta vez, ela viu o rapaz que havia falecido dentro do carro e o carro estava pegando fogo. Só que quando ela se aproximou, tudo sumiu.

    Minha comadre então mandou rezar missa para ele durante quatro domingos em seguida e ele não voltou a aparecer mais. 

(Autora: LF)

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

DONA RITA

 

O Sol (Arquivo JRS)

                Chico Cruz era irmão do Antônio Julião e da Chica, gente nativa da praia da Santa Rita. Rita Maria da Cruz, natural da praia das Toninhas, irmã do Argemiro, foi casada com Chico Cruz, funcionário do presídio da Ilha Anchieta, onde passaram os piores momentos em 1952, por ocasião do levante. Argemiro terminou seus dias casado com a Chica, no Perequê-mirim. Nilséa e Nilson amavam seus pais (Argemiro e Chica, que tanta estima tinham por mim).  Segundo os depoimentos deles e de tantos outros, junto com a Revolução de 32 e a Guerra dos Tamoios, foram os únicos momentos  sangrentos da nossa terra. “Ninguém dormia sossegado de tanto medo”. Dona Rita disse um dia que, “quando estourou a revolta dos presos, na parte da manhã, as minhas duas filhas mais velhas estavam na escola, ao lado do presídio”.

                Rita Maria da Cruz tinha 80 anos. Acho que era o ano de 2003 quando, bem próximo ao portão da casa dela, debaixo de uma pequena sombra de um pé de lichia, no centro da cidade, a viúva me concedeu um dedo de prosa. Não me demorei muito para não cansá-la demais. Mas valeu a pena! O comentário que faço questão de transcrever hoje é a respeito do turismo na nossa cidade.

                “No meu tempo de menina a gente vivia isolada. Só as canoas se teciam por esse mar de Deus. As  grandes canoas [de voga] faziam as viagens mais longas. Só depois começaram a vir os barcos de Santos. Levavam e traziam de tudo. Acho que era uma vez por mês que eles apareciam. Ainda não tinha estrada de carro por aqui. A gente, que morava nas Toninhas, saía logo depois da grande cantoria dos galos [por volta das três horas] na madrugada para vir estudar na cidade, na escola Doutor Esteves da Silva. Só quando era quase serão a gente chegava de volta lá em casa. Todo mundo andava pelos jundus e praias; sempre tinha alguém indo ou vindo pelo trajeto”.

                Pois é. É notório que a cidade de Ubatuba vivia praticamente isolada do resto do mundo. A estrada para Taubaté é do começo da década de 1930. A ligação rodoviária para Caraguatatuba se completou em 1957. Justo Arouca escreveu a respeito dela: 

                “A picareta que em 1948, rompeu o chão para robustecer aquele fio de sonho, abriu a marcha incessante em busca das lendárias praias de Iperoig, 54 quilômetros depois [...] Fatigado de desilusões  e de tanto esperar, o novo dia chegou, finalmente. Chegou ao Acaraú, sem pedra fundamental, sem foguetório, sem discurso, sem feriado escolar. Era o ano da graça de 1957, setembro [...] O sonho, agora, passa para a realidade. A nova estrada rompe o silêncio de mais de meio século, abrindo as portas da cidade para um novo tempo de reconstrução”.

             Vinte anos depois, em 1977, a última via de acesso (BR-101) nos liga, ao norte, à cidade de Paraty. O turismo é a principal atividade econômica. O Sol é para todos. O desafio maior hoje é saber amar toda essa natureza exuberante que temos, vencer a poluição que avança sobre tudo e derrubar as barreiras do ódio que tenta prevalecer sobre todos.

             Como eu gostaria de ter chances de outras tantas boas prosas!

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

PALMITEIROS

 

Tiribas na palmeira, no quintal  de casa (Arquivo JRS)


                À mesa de todos deste chão caiçara, em outros tempos, o palmito estava sempre presente na alimentação. Mamãe refogava com uns temperos e estava pronto. Eu não sei dizer se havia quem não gostasse dessa delícia das nossas matas. Era palmito da jiçara, a mesma palmeira que fornecia ripas para a construção de casas.

                A jiçara chama atenção de longe. Passando pelas rodovias que servem ao município, a minha atenção por elas é constante. Os seus frutos, além de servirem aos passarinhos, também são, desde muito recentemente, coletados para extração de uma bebida comparável ao açaí, outra palmeira, abundante da região Norte do Brasil.

Se deve, sobretudo aos pássaros, a semeadura da jiçara. No meu quintal mesmo muitas mudas já apareceram. Algumas delas estão crescendo ali, entre outras frutíferas; outras eu doei para pessoas amigas com áreas maiores de plantio. É isto: as aves e animais fazem a parte deles desde que o mundo é mundo. Nos dias atuais é urgente fazermos a parte que a nós cabe.

                Houve um tempo, na década de 1970, que apareceram por aqui as empresas enlatadoras de palmito. No bairro Mato Dentro, no terreno onde hoje funciona um grande depósito de materiais de construção, se instalou a fábrica de conservas Auricchio. Permaneceu ali por mais de década. Desse tempo nos vem a figura do palmiteiro, ou seja, o trabalhador do palmito, aquele que rompia a mata pelas antigas picadas ou fazia novos traçados no relevo para localizar, derrubar as jiçaras e trazer seus palmitos. A chegada das estradas, o melhoramento dos acessos permitiu que equipes entrassem mata adentro para movimentar um setor específico do ramo alimentício.  De Ubatuba, de toda a área do município, milhares de jiçaras foram abatidas. Ainda bem que, na década de 1980, uma onda ambiental colocou foco na Mata Atlântica! As empresas contratantes de palmiteiros passaram a ser multadas pela devassa da espécie  jiçara. O policiamento ambiental foi intensificado. Ainda bem!

                Muitos caiçaras eram intimidados quando procuravam conversar com os palmiteiros para impedir os cortes em suas áreas. Esses trabalhadores tinham a concepção que, independente de onde estivesse a palmeira, eles podiam adentar e tirar o palmito, pois eram remunerados para isso. Houve conflitos sim. De vez em quando se ouvia notícias de brigas, de um querer cortar o outro com facão. Mas os nativos sempre se manifestaram porque se alimentavam do palmito e sabiam da importância de seus frutos aos pássaros e animais roedores.

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A LAVOURA

 

Bito Madalena (Arquivo JRS)

             Escrever sobre lavoura no chão caiçara é enxergar ainda os espaços cultivados. Era assim na minha infância, quando a especulação imobiliária engatinhava no litoral paulista. Em época desta, quando chegava a primavera, as roças novas recebiam as primeiras atenções, sobretudo no controle do mato que sempre vinha com muita força. As saúvas também exigiam vigilância constante. Na  várzea do Sapê, vovô Estevan plantava arroz e milho entremeados com as bananeiras. No morro da Fortaleza se cultivava muita mandioca nas posses do vovô Armiro.  Me lembro sempre de uma prosa em outro tempo com o estimado Bito Madalena, no alto do morro do Saco dos Morcegos, quando ele me explicava: 

         "Todo esse mato daí, por esses morros todos, na metade do ano era preparado para novos plantios. Tudo era descultivado nessa época. Só ficavam livres as capoeiras que descansavam anos até chegar outro tempo para mexer nelas. Era chão de pousio. 

       Todos precisavam da lavoura. Quem vivia sem farinha? Quem passava sem banana, cará, batata,cana e outras coisas mais? Eu, meus parentes... todos tinham de fazer isso para garantir uma parte do sustento da família. A outra parte vinha da pesca e da caça. Todo mundo vivia dessa maneira. Sinto dó da gente de hoje porque quase tudo precisa ser comprado na cidade. De uns tempos para cá o nosso pessoal foi se acomodando em outras formas de viver, de ganhar dinheiro. Veja tudo isso! Naquele tempo quase não se avistava mata fechada assim; era plantação disso, plantação daquilo. E quantas casas desapareceram  engolidas pelo mato!? Os mais novos se foram e os velhos que ainda vivem não têm forças para enfrentar a lida da roça, dos bananais. Agora, repare bem, veja a quantidade de casas surgindo pelos morros e badejas. Tudo isso já foi chão descultivado, teve posseante zelando, cultivando de tudo um pouco. Logo ali em frente, do Teófilo para baixo, até alcançar a cachoeira, o Rio do Inhame, foi o pessoal de casa - meu finado pai e nós, os filhos - que descultivamos. Tudo virou um bananal só. Os barcos saíam carregados de cachos, levavam para Santos. É por isso que este lugar adiante, até a virada de lá, tem o nome de Saco das Bananas. Antes era só Prainha do Frade".

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O AMÁVEL


 

Dobraduras da Maria Eugênia (Arquivo JRS)

                Bidico, que tinha casa no caminho para o sertão, na direção da sede da Fazenda da Caixa, estava por ali. Era dia quente, de sol ardido, ideal para pescar traíra na várzea de tanta taboa e caxeta. Eu estava sem pressa; por ali fiquei na prosa, assistindo a pescaria dele. Logo havia enchido um balaio com traíras e acarás. O meu intento naquela tarde era chegar até onde morava o saudoso Leopoldo, o patriarca daquele  pessoal todo, o Cacique da Fazenda; pretendia umas informações a respeito do Caminho do Corisco que liga aquele sertão ao município de Paraty. Dei sorte. Na ocasião, soube do Amave (Amável) pelas palavras do estimado líder caiçara que há tempo nos deixou.

                Amave era daqui mesmo, ainda parente nosso. Na verdade, primo por parte de mãe. Assim que ele nasceu, logo ali, pelas mãos da parteira Tiana, foi preciso ir até a cidade para fazer o registro. Quase sempre todo mundo, quando tinha precisão, ia a pé essa distância. Hoje tem o barco do padre que ajuda muito. Toda semana ele dá pelo menos uma viagem. Isto facilita a vida de muita gente. Mas, voltando à história, quando Cundino, o pai do Amave disse no cartório o nome da criança, o homem de lá disse que esse não era nome de gente, que precisava pensar em outro para ter a certidão de nascimento. Então ele botou João. Chegando em casa, Cundino explicou para a mulher o ocorrido. Ela não se conformou, disse que antes tivesse ela ido lá resolver isso. “Lógico que Amave é nome de gente! O padre disse na pregação que Deus, além de tudo, é também Amave. Se Deus todo poderoso é Amave, o nosso filho  pode ter essa obrigação ao carregar esse nome”. Por isso que, mesmo sendo João, entre nós o menino cresceu e sempre foi chamado só de Amave. Ele era craque em fazer esteiras e cestas. Infelizmente teve vida curta o coitado. Um sarampo recolhido lhe tirou a vida quando nem tinha idade de vinte anos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

EXISTÊNCIA NA FOTOGRAFIA

A casinha (Arquivo JRS)


Na beira do caminho,

Sempre a nos olhar,

Estava aquela casinha.


Era da Rosa?

Era da Maria?

Era da Cidinha.


Um dia, 

Pela pobreza dela,

Alguém por  pouco dinheiro a tinha.


De uma posse enorme,

Da sua pobre moradia,

Foi-se a amiga minha.


Hoje, nos morros de lá,

Há apenas pasto

E só o gado caminha. 


Aos poucos a casa morre;

Ninguém lhe dá vida.

Só resta a fotografia - Que sina!


domingo, 4 de outubro de 2020

AS ANDANÇAS DA TETEIA

 

Antônio Gomide - Cenário na praia (Arquivo Arte)

    Tudo o que eu registro a respeito da Teteia faz parte do talento, da sina de fuxiqueiro do amigo João Brilhante. Sei que teria muito mais novidades no gênero caso fosse mais vezes visitá-lo, mas o tempo anda corrido. Até ele percebeu isso ao me perguntar anteontem: “Quando você vai se aposentar para poder vir mais vezes aqui para podermos prosear mais, Zé?”

                Depois da penúltima conversa, quando me informou da volta à velha "compensação pecaminosa" por parte da Teteia, a nossa conhecida de anos ("Eu não vejo então, por acaso, ela passar uma vez por semana, no rumo da roça do Chico Mergulhão?”), o amigo apresentou a novidade de uma estratégia mais salutar para sublimar os anseios dos assim nomeados por ele de "desejos pecaminosos da nossa amiga". Segundo o nosso "reparador de tudo", ela continua saindo bem cedo, mas agora para uma caminhada por mais de hora beirando a rodovia: "Creio que ela vá sempre até a Figueira e volta naquele passo de Teteia que você bem sabe como é. Mas vai!". 

     "É uma boa, mesmo, João! Você sabia que até o padre Anchieta recorreu a isso para escapar das tentações sofridas em Yperoig, em 1563, quando ficou como refém aqui, onde hoje é Ubatuba? É que durante a caminhada, suando muito, vendo outras coisas e se cansando, o corpo acalma, doma temporariamente seus desejos. Você imagina o coitado, recém chegado ao Brasil, coberto com seu hábito sacerdotal, parecendo um urubu encardido, mostrando apenas cabeça, mãos e pés, totalmente rodeado por indígenas pelados, notando nas mulheres e homens todos os seus atributos? O primeiro cronista do Brasil, Pero Vaz de Caminha, fez questão de dizer que as mulheres desta terra eram dotadas de uma formosura inigualável. O dó do Anchieta! Pobre do padre!Para livrar-se das tentações, a fim de que seus votos de castidade não viessem a ser quebrados, ele cansava seu corpo em longas caminhadas, segundo as palavras da saudosa Idalina Graça. Em relação ao espírito, tal condição resultou na composição, nas areias de Yperoig, em latim perfeito, lindos e fervorosos versos em louvor à Virgem Santa. E, assim, pôde sair ileso do pecado, passar os longos dias aguardando o retorno do companheiro jesuíta, o padre Nóbrega".

     "Se é assim, A Teteia está certa!", exclamou o João. Eu completei: "Também penso isso como sendo a melhor alternativa. O nosso amigo Zico Tranquilo, solteirão aposentado, faz isso também a cada manhã. Depois da volta, cumpridas as tarefas domésticas, ele se ocupa tocando violão sozinho, na pequena casa onde mora desde quando eu o conheci. De vez em quando avisto ele dedilhando as cordas no grupo que anima os cantos na igreja mais próxima". 

    Assim, com gente nas caminhadas, animando ambientes com seus instrumentos, se exercitando nas academias ao ar livre, proseando em bancos nas praças etc., o espaço caiçara vai adquirindo outras feições. 


Em tempo: para saber um pouco do pintor modernista Antônio Gomide, que viveu seu último tempo de vida em Ubatuba, recomendo: 

http://arnaldochieus.blogspot.com/2016/03/gomide-artista-primordial.html


 

sábado, 3 de outubro de 2020

O MENINO DA ENSEADA

 

Logo cedo, na praia (Arquivo JRS)

        Não faz tanto tempo assim que mais um dos antigos faleceu. Belinho nos deixou quase alcançando um século de vida caiçara. Lá se foi mais um menino da Enseada de outros tempos. O que eu posso fazer? Escrever partes das suas prosas!

    Belinho, da família Rocha era bom de prosa. Seus causos sempre me davam com muita satisfação. Por isso era comum, mesmo se estivesse com certa pressa, eu parar ao seu lado, sentar defronte a sua casa, na Rua Gastão Madeira, e ficar escutando suas narrativas.

    "Me chamam de Belinho desde menino, quando vivia na praia da Enseada. Bons tempos! Peixe era em fartura; cada puxada de rede na praia era uma montoeira de todo tipo de peixe, arraia, tartaruga... E no tempo de tainha então!?! O Macié, que negociava de tudo, pagava muitas pessoas para consertá peixe. Era na barra, perto da subida do morro dele, que alguns passavam o dia naquele trabalho. Era um trabalhão! Depois de alanhado e salgado, era tudo estendido no jirau para apanhar sol. Depois de seco, o barco que fazia viagem pra Santos comprava tudo para revender por aí afora, em outras cidades. A gente, criança ainda, vivia se tecendo, fazendo um trabalhinho aqui, outro ali. Sempre tinha alguém que pedia uma ajuda da gente. Em volta das casas, subindo morro acima, ficavam as roças. Mandioca e banana não podia deixar de ter. Cafeeiro era pouco, só para o gasto mesmo. Cana todo mundo usava para adoçar o café de cada dia porque açúcar era custoso. Depois viemos de mudança para a cidade. Logo fui contratado pela prefeitura, fazendo serviços por aí tudo. A cidade foi crescendo, ganhou campo de aviação; obras foram surgindo por todo quanto é canto. O comércio também cresceu porque a freguesia aumentou. Nem todos os comerciantes progrediram, mas a maioria se ajeitou de alguma maneira. E por falar nisso, agorinha mesmo passou um carro anunciando que é só até sábado uma tal de promoção naquela loja nova da Praça Nóbrega, onde antes tinha um chafariz bem grande, depois um relógio de Sol. Querem vender, né? Me faz lembrar de um reclame assim que vim para morar na cidade: 'Acudam ao armazém do Lindo Lipe porque chegou mercadoria nova!'. Eu, menino da Enseada, agora na cidade, também ficava curioso e passava por lá só para ver as novidades, as mercadorias novas. Ainda gosto das novidades! Por isso que eu gosto de me sentar neste lugar, ver o movimento de tanta gente passando, de carros...".

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

UBATUBA E O TURISMO VALEPARAIBANO

 

O turismo chegou (Arquivo Ubatuba de outros tempos)


    Paulo Florençano, no livro da Idalina Graça, há quase meio século, escreveu:

    Foi somente a partir de 1933, após a adaptação da antiga estrada tropeira precária, porém útil e oportuníssima estrada de rodagem [Rodovia Oswaldo Cruz], que permitiu ainda que difícil e incertamente, o movimento de veículos motorizados entre Taubaté e Ubatuba, assim interligando esta última com as demais cidades brasileiras, é que um promissor surto de progresso começou, embora timidamente  a princípio, a impulsionar o velho burgo que modorrava, semi-esquecido. 

    Processava-se a redescoberta de Ubatuba! Nova gente, novas iniciativas começaram a surgir. Os visitantes eram pessoas que, entusiasmadas pelas espetaculares belezas naturais do lugar, previam-lhe promissor futuro como estância balneária importante, centro de turismo afamado...

    Reformaram-se alguns sobrados que, assim, puderam ser salvos do desaparecimento; construíram-se as primeiras casas para temporadas de férias; reabriram-se alguns estabelecimentos comerciais, e, dois de seus acolhedores hotéis - o "Felippe" e o "Ubatuba" - os principais então existentes, ambos instalados em bonitos sobrados que datavam dos tempos áureos do apogeu econômico da cidade, em junho, dezembro e janeiro ficavam lotados de turistas que acorriam de Taubaté, Pindamonhangaba, Caçapava e outras cidades valeparaibanas, ávidos de sol, praia, ar puro e suave, temperatura amena, paz e belezas naturais em profusão.

    Aí, pois, Ubatuba, exercendo todo o seu fascínio mágico, irresistível, se impôs de vez a todos aqueles que nela aportavam. E, o progresso aos poucos, porém sempre em ritmo de constante animação, finalmente retornou, motivado então  - já não mais pelo interesse financeiro, pela importância comercial do lugar, mas sim em razão de suas excepcionais atrações que a mãe natureza aqui, dadivamente apresentava: as alvinitentes praias de areias finas, a riqueza de suas florestas intactas, o encanto particular das suas ruas e praças ainda ostentando casario do passado, e, também, de modo muito especial, a tão cordial acolhida que os seus moradores, desde o simples praiano da zona rural, até a gente letrada da cidade, espontaneamente ofereciam aos visitantes.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

APETITE DE CAVALO

Praia do Camaroeiro-Caraguatatuba (Arquivo JRS)


    Há mais de vinte anos eu tive a honra de conhecer o caiçara Marino Garrido, de Caraguatatuba. Passei uma tarde proseando na casa dele, bem no centro da cidade. Agradeço por Priscila, sua neta, me proporcionar a oportunidade ímpar.

    Marino escreveu um livro sobre a Fazenda dos Ingleses. Foi vereador e era muito querido por todos. Uma das histórias dele foi em torno de uns cavalos que comeram uma canoa. Na prosa dele aparece um pescador (Zé Lopes) que tinha um rancho de canoa na praia do centro, quase chegando no Camaroeiro, onde a atração principal é a beleza da paisagem formada nas marés baixas. 

    Era um rancho muito velho, querendo cair a qualquer momento, mas servia de proteção à velha canoa de capurubu. "Era melhor do que ficar no tempo, pegando sol e chuva". Um primo desse, o Bernardo Amaral, morador ali perto, onde é a praça hoje, bem defronte ao mar, tinha um costume que sempre foi comum no pessoal daqui: se encostar em alguma parede ou árvore para coçar as costas. É  natural naqueles que sempre vivem expostos ao sol: a pele se renova  com mais rapidez; por isso a coceira se manifesta tanto. E aqui é que vem o miolo do causo: num entardecer, depois de ajudar a puxar a canoa no rancho, os dois primos ficaram por ali em prosa. E, conforme o hábito, Bernardo se ajeitou no esteio de taquiúva do velho rancho para se coçar, sem considerar a lastimável condição notória para todos. Tudo desabou como era esperado há muito tempo. O coitado pediu desculpas, se ofereceu para construir outro ali mesmo, mas nunca que o rancho foi refeito. A canoa, velha demais, com remendos até se remontando, ficou exposta ao tempo. Naquela época uns cavalos viviam pastando por ali. O Zé Lopes deu azar, pois os animais acharam bom lamber e roer as bordas da canoa que guardavam sal. Só sei dizer que não demorou nada para se acabar desse jeito a embarcação que a tantas e tantas pescarias tinha conduzido o Zé Lopes. Ou seja, virou comida dos cavalos a velha canoa tirada de um majestoso capurubu.