domingo, 27 de fevereiro de 2022

CONTRIBUIÇÕES DO SCHMIDT

Imagens de Borges Schmidt (Arquivo internet)

   No volume I (1947), da Revista do Museu Paulista, o pesquisador Carlos Borges Schmidt, cujas fotografias de pessoas, técnicas e lugares litorâneos da metade do século XX tanto nos fascinam, começa descrevendo técnicas indígenas, muitas das quais ainda garantiam a subsistência caiçara naquele período em que ele passou estudando o nosso povo. Cita Hans Staden e Jean de Lery como cronistas sérios: 


   "As flechas e as redes, além da linha e do timbó, eram os seus processos e os seus recursos, dos quais ainda hoje não nos afastamos muito, em especial do segundo, o mais útil e o mais precioso, empregado sob as mais diversas formas e com as técnicas as mais diferentes e sagazes. A vista aguda e a rapidez dos movimentos permitiam-lhes que, das praias ou das costeiras, ou ainda dos bordos das canoas, flechassem os peixes saídos fora d'água ou que nadassem à pequena profundidade. Ferido o peixe, mergulhavam no seu encalço e traziam-no de volta. Desta técnica teria sobrevivido até nossos dias o seu aspecto substancial, transmitido nas figas tridentes dos facheadores dos rios litorâneos e de suas embocaduras, quando, à noite, se postam, nas suas margens, ou em canoas, atraindo, com a luz de lampiões, o peixe que vão matar espetado".


  Meu saudoso pai tinha uma figa tridente, saía com ela depois do anoitecer, de vez em quando. Dizia que, no escuro, os peixes se achegavam no lagamar, tornando mais fácil de fisgá-los. Eu usei apenas uma vez aquele tridente: foi para fisgar uma tainha, na barra do rio Perequê-mirim. Onde hoje está assentada uma marina, uma garagem de barcos, no meu tempo de criança era uma linda lagoa. Dali levei a linda tainha para mamãe preparar no almoço daquele dia. O progresso (ou ganância?) acabou com aquele canto de praia, com aquele lindo pedaço de rio-mar que tantas alegrias deram à minha infância.

   Outro registro de uso de fisga eu tive a alegria de fazer com o finado Mané Hilário, quando ele contou que facheava no rio Indaiá (que desemboca na praia do Perequê-açu): 


    "Eu tava facheando mesmo, no rio. Eu co’Arfredo Mariano. Aí eu gritei pro Arfredo: 'Oh, Arfredo, uma enorme caranha!' Porque todo dia nóis achava pedaço de tainha cortada na preia, né? Era ela que comia. E no rio nóis também achava pedaço, mas nóis não sabia o que era. Quando chegô um dia eu tava com nove tainha na canoa, no Perequê-açu, no rio Indaiá, na boca da barra, no começo do rio. Aí eu gritei: 'Arfredo, que nobre caranha! É  a tar que anda comendo a tainha aqui!'. Eu tava co’a fisga na canoa e ele remando. E o lampião  na popa da canoa. Era noite; uma nove da noite ou deiz da noite. Aí ele: 'Não fisga,  Mané Hilário, que nóis vai alagá!'. 'Ah! Não vô dexá de fisga!'. Acompanhei e bati a fisga na caranha. E a caranha...brubrubru....tchaaaaaabau. Nóis dois de boca abaixo. Virô a canoa; apagô o lampião; apagô tudo! 'Aí? Eu não disse pra você? Eu não disse pra você? Você é teimoso! Agora perdemo a caranha; perdemo o pexe tudo'. De manhã eu fui e peguei as tainha que tava no poço. O siri tava pegando a roê a cauda da tainha. Aí eu embarquei a tainha e vim embora. Quando passô ali uns oito dia ou mais, o Candinho Manduca, que era o meu tio, foi buscá bambu seco pra fazê tinta pra botá na rede: 'Mané Hilário, você sabe de uma coisa?'. Até me assustei quando ele falô assim. 'O que foi, titio?'.  'A caranha que você fisgô tá encalhada lá em cima no rio. O corvo tá comendo'. Aí fomo lá. O pessoá foi  lá juntá, tirá as escama pra fazê enfeite no Natar, né? Aquelas escama grandona. Era uma baita de uma caranha! Pexe pra uns 50 ou 60 quilo. Aí fomo lá e chegamo lá. O bucho da caranha tava amarelado de ova de tainha, rapaz! E perdemo a caranha! Já tinha uns cinco dia ou mais".

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

PÉ DE MOLEQUE

Cadê o dono disso? (Arquivo JRS)

 
    Metade do dia...sol forte. Na esquina um par de tênis velho e um caderno abandonados. Cadê o dono disso? Cadê os pés que se protegiam nesses calçados e iam estudar na maior animação? Cadê?

   No ponto, onde estava a parada de ônibus mais próxima, dois casais de adolescentes se encontravam na maior empolgação, parecendo as tiribas no cacho de açaí do nosso terreiro. Coisa de molecada. Pelas conversas, deduzi que estavam cabulando aula para irem à praia. Pensei: "Quem resiste a um calor desse? Estar na água, numa praia bem tranquila agora, é as melhor pedida. Ainda mais se for em boa companhia!". Logo me veio à mente o meu tempo de criança, de adolescente que ainda não tinha um emprego fixo. Lá atrás a praia já era a melhor alternativa para nós caiçaras, onde víamos o sair e chegar das canoas e nos divertíamos (jogos de bola, correr onda, jogar taco, comer ostras na costeira, colher araçás, goiabas, manacarus, cajus e outros tantos frutos na restinga, cochilar em ranchos, dentro de canoas etc.). "Coisas de moleque" como se costuma dizer. A propósito, você já comeu pé de moleque caiçara? Pois bem, vou lhe explicar agora:


  Pé de moleque é doce típico feito de farinha de mandioca, melado de cana e gengibre. Mais recentemente eu saboreei uns caprichados pela dona Mocinha, do finado Dito Fernandes. Mas... na feira, aos sábados, na barraca do Fernando, do Ubatumirim, eu já comprei uns de igual capricho, feitos pela mãe dele. É duro e cortado em pedaços, tal como o similar feito com amendoim. Quem não aprecia? Quem não conhece, oras! A seguir, uma prosa de meados de 1970, lá no já referido sertão. Quem nos presenteou com esse diálogo foi o Olympio, quando trabalhava em sua tese de doutoramento.


  Mané Barbosa anuncia: "O Quelementino troxe um pé de moleque pro Agriço". Notando o estudante logo ali, ofereceu: "Aí, seo Olimpio, um pedaço de pé de moleque". E, indicando um terceiro, continuou: "A mãe dele que feiz. Nele tem gengibra e cana. E farinha". Num tom de espanto, o paulistano que passou alguns anos convivendo com a caiçarada brinca: "Cana inteira?". De prontidão o jovem roceiro explica: "Não, é o cardo da cana, o cardo...". Mané Barbosa já emenda o assunto: "O pé de moleque é aquele, eu fazia tanto; agora eu não fiz mais, que nóis moramo cá pra baxo, mais quando eu morava assim no morro, nóis prantava cana...". Já acostumado com alguns detalhes da cultura caiçara, Olympio pergunta: "Se chegar gente, estraga o pé de moleque?". Mané responde: "Se tivé fazendo e chegá uma pessoa de fora, estraga".

   Cadê o pé de moleque? Cadê os pés? Cadê os "moleques"?

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

METEOROLOGIA POPULAR

Que venha sol!  (Arquivo JRS)

 
      Desde os primeiros anos, ainda no tempo das pequenas comunidades isoladas com suas subsistências, nós caiçaras ouvíamos frases do tipo: "Correção de formigas morro acima...chuva forte serra abaixo", "Galinheiro assanhado, capoeirão encharcado", "Noroeste não deixa a mãe morrer de sede", "Vermelhidão no céu é vento chegando com mais coisa", "Urubu em reunião nas nuvens é aviso para não sair em pescaria mar afora", "Araponga piando na costeira é sinal de tempo seco apertando a garganta", "Saparia em festa é chuva sendo esperada", "Grilo na barulheira a noite inteira é sinal de tempo bom" etc. E, disso tudo, brota a poesia do mano Mingo.



Meteorologia popular


Se de tarde perguntar ao vento
sobre as condições do tempo
e o vento se mostrar enigmático,
repita a questão para o mar
que, exceto em dias de calmarias,
tem sempre algo a informar.
Em último caso, insista com as nuvens,
as nuvens não escondem nada,
por exemplo, elas sempre avisaram mamãe
para recolher as roupas do varal
antes do susto da trovoada.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

IDENTIDADE


  

Besouro - Arquivo JRS


   Sábado cedo. Eu acabara de deixar a bicicleta na oficina para pequenos consertos por depender dela para deslocamentos rápidos durante a semana. Na esquina próxima me detive junto ao Mané Nunes, dono de um pequeno e antigo ponto comercial no bairro. O assunto era as invasões mata adentro: “Quem não vê as queimadas nos finais de semanas e as casas surgindo nas clareiras?”. Nem discuti a veracidade. Quem não vê?

  As autoridades responsáveis pela fiscalização ambiental parecem não enxergar nada de anormal nos diversos pontos da Mata Atlântica no nosso município. Então contei um fato de algumas horas antes, assim que amanheceu aquele dia: eu estava diante do portão da minha casa, olhando a paisagem do entorno. De repente, no meio da mata, longe de qualquer sinal de existência de alguma moradia, uma fumaça sobe discretamente. Parece sair em baforadas naquele ponto. "Sabe o que naquela hora eu pensei que poderia muito bem ser um fogo de lenha, talvez alguém começando o primeiro café do dia? Se eu pudesse, subiria por ali, naquela direção, para verificar”. O Mané concordou com a minha hipótese. Nisso se aproxima alguém que é amigo do Mané, mas desconhecido meu.

  O cidadão recém-chegado nos cumprimenta, olha para mim e exclama: “Esse é um documento importante!”. Achei que ele se referia ao meu chapéu de palha. Concordei. Reconheço o hábito como parte de uma identidade caiçara, usado para nos proteger das intempéries. Dou uma levantada no chapéu em sinal de agradecimento. Mas ele faz uma ressalva: “O chapéu também é! Só que estou me referindo ao uso da máscara. É muito importante usá-la, se identificar como alguém que leva a sério as medidas recomendadas pelos cientistas para controlar essa pandemia, esse vírus que já agonizou tanta gente no nosso país e pelo mundo afora. Você está de parabéns!”. Fiquei surpreso; não esperava um comentário desse tipo. Daquele momento em diante o assunto girou em torno de levar a sério os procedimentos se queremos nos livrar o quanto antes desse mal.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

VIAGENS E AMIZADES



Arte em casa - Arquivo JRS


    - José Simão. Prazer. Mas me conhecem como Simão.

    - Prazer. Zé Ronaldo. E, conforme a rima: Zé de cá e Zé de lá/ Ribeirão passa no meio/ Zé de lá dá um suspiro/ Zé de cá suspiro e meio. O senhor pode ir lá para o começo deste pessoal que está esperando, idoso tem preferência.

    Ele deu uma gostosa gargalhada.

   - Não precisa não. Ainda mais que não tem quase ninguém na fila

    Assim começa mais uma prosa num belo dia começando. Simão estava no terminal de ônibus precisando de informações, querendo saber quais linhas passam pela praia da Enseada. Eu explico rapidamente e pergunto de onde ele é.

   - Sou de Cerquilho, interior do Estado. Estou numa excursão da terceira idade. Viemos em dois ônibus; chegamos ontem à noite no hotel Costa Azul, na praia da Enseada.

   - Ah! Eu conheço bem esse hotel. Deve existir há mais de quarenta anos. E ali, perto do morro.

   - Isso mesmo. é lá! Eu tenho de descer no primeiro ponto assim que passa um morro grande, depois de passar por duas praias. Vou prestando atenção, gravando o caminho. É meu costume, nesses passeios que faço, procurar conhecer o centro de cada cidade e localizar uma casa lotérica para fazer uma aposta. Em todo lugar eu repito isso. Acabei de fazer a minha aposta, agora estou voltando para o hotel.

   A minha linha, cujo destino era Tabatinga, também servia a ele, passava pela Enseada. Embarcamos juntos. E aí, desde o momento do embarque até a chegada ao destino desse nosso visitante, desse turista, eu senti a maior satisfação em ir lhe explicando coisas da nossa cidade. Primeiro lhe contei do hotel que é do tempo da minha adolescência. Zé Emboava foi mestre da obra; Caninha trabalhou de pedreiro ali. Depois dele acabado, Dona Celeste, Jango Graça e Zé da Nhanhã foram funcionários ali até se aposentarem. Esses falecidos fazem parte dos meus saudosos. De vez em quando me recordo de suas histórias e causos. É que eles paravam no bar e mercearia onde eu trabalhava, sempre precisavam de alguma mercadoria e nunca se recusavam a "um dedo de prosa". Adoro, desde criança, ficar ouvindo essa gente mais velha! Era o que eu estava fazendo naquele momento, ouvindo um viajante de outra terra.

   - Eu não conheço Cerquilho, mas já ouvi falar.

  - Eu também não conhecia Ubatuba. Esta está sendo a oportunidade, talvez primeira e única. Na verdade, a excursão estava prevista há dois anos, mas aí veio a pandemia e foi adiada. Eu participo do grupo da terceira idade da cidade, sempre estamos viajando, conhecendo outros lugares. A anterior foi no mês passado, ficamos em Itanhaém. O litoral de lá, mais ao sul, é bonito. Só que aqui é muito mais! Eu só estou sentindo falta de mais movimentação, de mais comércio perto de onde estamos hospedados. Ontem, assim que chegamos e nos acomodamos, alguns dos nossos queriam dar uma volta, visitar alguma feirinha para comprar artesanato e recordações, mas foram informados que não acontecia nada nos arredores.

  - É, não tem mesmo. É pouca coisa ali, na Enseada.  Caso queiram sair após o anoitecer, na avenida da praia, no centro da cidade, tem uns atrativos. Também aqui (indicando a via marginal da rodovia, na Praia Grande) tem uma boa movimentação, uma vida noturna. Creio que irão gostar.

   Nesse momento pensei na falta de uma Secretaria de Turismo que elabore isso de oferecer guias turísticos aos estabelecimentos de acolhimento em nossa cidade. O referido hotel poderia ter uma lista de nomes, indicar alguém, apresentar a alternativa para melhor aproveitamento da estadia do grupo. Imaginei pessoas capacitadas para acompanhar visitantes, sendo lhes útil ao máximo, dando a conhecer a história da cidade e seus principais atrativos. Tenho a certeza de que essa medida tão simples pode atrair mais gente, incrementar mais o turismo. Quando estávamos no Morro do Maciel, avisei:

   - O próximo é a sua parada, Simão. Foi um prazer lhe conhecer e ter esta prosa. Aproveite bem estes dias em Ubatuba.

   - Quem agradece sou eu! Agora, caso o pessoal queira, já posso servir de guia numa saída noturna depois de um dia de praia. Se aguentarem, né?

   Nos despedimos. Ainda pude avistar, na descida do morro, os dois ônibus fretados pelo pessoal da terceira idade de Cerquilho, estacionados no pátio do hotel. Eu estava feliz; sentia que havia colaborado com alguém e escutado outras histórias.


  

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

SIGAMOS OS BONS ESPÍRITOS

No lagamar, em Itaguá - Arquivo JRS

 

Bruce Albert, no livro (A queda do céu) em parceria com Davi Kopenawa, registra nas páginas 524/525:


   Voltei em setembro de 1978 para Brasília, onde me hospedou uma amiga, intrépida e rebelde jornalista do Jornal de Brasília (e depois da Folha de São Paulo), Memélia Moreira. Lá me encontrei um belo dia com Cláudia Andujar, extraordinária fotógrafa, apaixonada pelos povos indígenas, que tinha começado a trabalhar na região do rio Catrimani em 1974. Redigimos juntos o primeiro documento contrário ao projeto militar de desmembramento das terras yanomami. A convite dela, fui encontrá-la em São Paulo, onde, junto com Carlo Zacquini, irmão católico e missionário fora do comum da missão Catrimani, elaboramos o projeto de uma vasta reserva territorial yanomami contínua, antes de lançarmos, no Brasil e no exterior, uma campanha de opinião pública contra a iniciativa etnocida da ditadura militar.

   Naquele final de 1978, ocorria em São Paulo uma impressionante mobilização política e midiática contra o projeto, levado a cabo pelo governo Geisel, de espoliação das terras indígenas, projeto esse disfarçado de decreto de “emancipação” dos índios “aculturados”. Esse movimento de protesto sem precedentes marcou a conjunção entre o movimento indígena nascente e setores intelectuais (advogados, jornalistas, acadêmicos) engajados na resistência à ditadura militar, então em sua fase de declínio. Foi nesse contexto político que Cláudia Andujar, Carlo Zacquini e eu criamos a Comissão Pró-Yanomami (CCPY), com o apoio incansável de Beto Ricardo e vários amigos paulistanos, uma ONG que lutaria durante  quase três décadas para defender os direitos do Yanomami, até que estes fundassem sua própria associação, a Hutukara Associação Yanomami, presidida desde a sua criação, em 2004, por Davi Kopenawa.


   Estes três estrangeiros: Bruce Albert  (França), Claudia Andujar (Suíça) e Carlo Zacquini (Itália), cujas demonstrações de amor pela vida dos povos da floresta me calou fundo, devem nos despertar para um detalhe: eles fazem parte de uma minoria que veio para a nossa Pátria e fez tantas coisas pelos povos originários, pelo povo Yanomami e pela causa da natureza. Agora pergunto: Quantos brasileiros sequer ouviram falar desse povo? Quantos dos nossos apoiam a causa indígena? Por ocasião da minha passagem por Inhotim, o famoso museu de Brumadinho, admirei as imagens dos indígenas que atestam a paixão de Claudia Andujar. Um pavilhão inteiro dela!  Detalhe: ela foi a fotógrafa da menina Nini, no antigo Hotel Picaré, em Ubatuba. Ver texto....https://coisasdecaicara.blogspot.com/2016/10/a-menina-nini.html 


    Enfim, para continuar pensando como caiçara: 

  Não queremos que nossa mata, rios e mar desapareçam, nem que sejam exterminados os povos das florestas e as demais populações tradicionais que são faróis das  nossas raízes existenciais. Portanto, revelemos aos nossos filhos os dizeres, os saberes de nossos ancestrais. Os caminhos das novas gerações devem ser ilustrados por aqueles valores que estão dentro de nós, na profundidade de nosso ser. Não deixemos que eles desapareçam, mas sim que se renovem com o passar do tempo. Sigamos os bons espíritos!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

SE NÃO QUISEREM SE AMAR...

Dália da Suami - Arquivo JRS

 
    O irmão do Belinho, o João Rocha, estava numa prosa animada com o parceiro João Batista. Eu apenas escutava com muito interesse, empolgado com o tanto de sabedoria deles. Rochinha já passava dos noventa; João era pouca coisa mais novo. Gente nossa, caiçaras de muitas vivências! 
 
   Rochinha, gente dos Rocha do Perequê-mirim, sempre foi contestador de coisas erradas e/ou injustas. "Uma pedra no sapato" como se costuma dizer. E tinha orgulho disso! "Se não houvesse o contestador, nós estaríamos na Idade da Pedra. Cada um tem o direito de pensar o que quiser, mas deve considerar a felicidade no coletivo. Então...eu não posso querer que ideias absurdas, que atentam contra a felicidade da maioria que está no entorno, saiam da minha cabeça. Caso persistam, eu preciso entender a sua origem, buscar tratamento, pois é anomalia. A felicidade não pode ser egoísta, de uma minoria. Pior ainda se ela se der às custas do exploração do trabalho da  maioria e pela destruição desta maravilhosa natureza que nos circunda. Se as pessoas não quiserem se amar, que pelo menos não se odeiem". 

  Mas por que estou partindo dessa prosa que faz tempo que aconteceu? Porque ela envolve respeito e educação. E esta dupla nunca envelhece! É pena   que, num mundo altamente movimentado  em torno dos avanços tecnológicos, as atenções são desviadas de coisas tão essenciais. O filósofo Epicuro de Samos, por volta de 2.300 anos, na Grécia, escreveu: "Alguns dos desejos são naturais e necessários; outros, naturais e não necessários; outros, nem naturais nem necessários, mas nascidos da vã opinião. Os desejos que não nos trazem dor se não satisfeitos não são necessários, mas o seu impulso pode ser facilmente desfeito, quando é difícil obter sua satisfação ou parecem geradores de danos". E aqui mora o nó da questão, ou melhor, da reflexão: os desejos nascidos da vã opinião. Eles é que deveriam nos angustiar.

   A vã opinião pode gerar os piores desejos. Acabei de ouvir uma professora defendendo o direito de um idiota propor a existência de um partido nazista. "É o direito dele expressar a sua opinião".  Imagine crianças e jovens aos cuidados de docentes sem um posicionamento radical a favor da vida; crescendo, mas desconhecendo e/ou desprezando os malefícios impingidos à humanidade por aberrante ideologia! Logo logo eles poderão ser as novas ninhadas da abominável serpente deixando os ovos.  Pode isto?

   Concluo com a sabedoria dos já citados proseadores, onde aprendi a seguinte lição do Rochinha: "Toda opinião criminosa merece ser banida da humanidade, do nosso pensamento". 

   Ah! Aviso ao idiota: não vale dizer que estava bêbado quando proferiu execrável opinião! Quem é trouxa de acreditar ?

domingo, 13 de fevereiro de 2022

MESTRE JEQUIÉ

Roda de capoeira - Arquivo JRS

Puxada de rede - Arquivo JRS


    Ubatuba, década de 1970: migrantes chegam atraídos pelo trabalho na construção civil. Eles vêm de quase todos os recantos do Brasil, sobretudo da região Nordeste e do Estado de Minas Gerais. 

    Osvaldo, mineiro de Ipatinga, é capoeirista. Outro grande e modesto praticante dessa arte-luta é Ditão Preto, da Baía de Todos os Santos. Eu, adolescente, me maravilhava em ver suas evoluções nas beiras de ruas do Perequê-mirim. Eram bons! Porém, nenhum deles ousou ensinar capoeira. Coube ao Jequié tal tarefa, pois os interessados foram despontando naturalmente. Havia farta clientela entre os que aqui moravam. Assim nasceu o grupo de capoeira Mandinga de Angola e a primeira leva de capoeiristas e de mestres formados pelo baiano Jequié. Estou pensando agora em quantos até deixaram o país para se fazerem professores no estrangeiro. E lá ficaram!


Olelê, olalá
Lua de prata, estrela no céu
Pra moça bonita eu tiro o chapéu

Águia dourada voando no céu
Abelha rainha, ela não faz mel
Doce que é doce é doce do mel


    Me recordo do começo dos anos 1990, na Caçandoca. Tive o prazer de apreciar o primeiro batismo de capoeira dos meus parentes. Lá estava o Jequié e sua ginga tranquila do seu estilo preferido. Foi lá, na antiga escola, onde outrora ficava a "Venda do Tio José Félix", segundo depoimento do meu pai, que a imensa roda se fez desde a metade da tarde até o escurecer daquele dia distante. O velho Dito Madalena e sua esposa Constantina davam suas bênçãos. Depois, rompi com eles a noite de tormenta até o Saco das Bananas, onde repousei. Estavam contentes por testemunharem o maravilhoso evento, por seus filhos adorarem o Mestre Jequié.


Meu ranchinho é de palha guarecanga e sapê
Meu chapéu que é de palha já vivia aqui no mato
No meio da plantação minha vida é a roça
No meio da plantação minha vida é o sertão.


   Logo vieram as puxadas de rede pelas escolas e a outros públicos. Mestre Alemão, grande parceiro, aceitou o desafio de mostrar à juventude essa herança dos africanos tornados escravos neste Brasil de todos nós. Quem nos apresentou a Puxada de rede e o Maculelê?  Mestre Jequié, lógico!


A minha rede vai sair pro mar
Vou trabalhar meu bem querer
Se Deus quiser quando voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer.


    Triste foi que Mestre Alemão se enveredou por outra trilha no percurso, abraçou uma religião que pregava todo o empenho de Mestre Jequié como práticas pecaminosas. Desse modo ficou abandonado o atabaque. Ou melhor, eu fiquei como herdeiro de tamanha preciosidade. Quanto mais o "Mestre Convertido" poderia ter feito pela juventude e por nós? Estude, minha gente, estude! Reflita para se livrar do pior dos males que é o fanatismo!

   Grande importância tiveram as aulas do Mestre Jequié! Os grupos de capoeira se multiplicaram a partir desse grande ser que, quis o destino, viesse parar em Ubatuba. 

     Mestre Jequié envelheceu na ginga até a doença chegar. 

     Mestre Jequié cumpriu uma missão maravilhosa!


Você é de lua
Eu sou de maré
Com a rede fora d'água
Eu vou dar no pé.


   Grande Mestre Jequié:  seus passos seguirão muito além de onde seus pés alcançaram.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A PESCARIA DO MANECO

Um senhor robalo (Arquivo JRS)

    Maneco, gente dos Carlota, não sabia o que era pescar com molinete até o ano passado. Foi seu primo e compadre que, vindo de Taubaté, lhe trouxe uma vara de pesca dessas chiques. Ele agradeceu, mas disse que preferia continuar se divertindo com a tradicional vara de bambu. "Eu não preciso dela, compadre. Os peixinhos que consigo puxar são pequenos, embetaras que nem chegam a um quilo, caçãozinho miúdo e outros que só lambiscam o anzol. Aqui, rente da areia, não aparece peixe grande. Foi-se o tempo...". Mas o outro insistiu para que ele ao menos testasse: "Hoje mesmo, no entardecer, nós vamos juntos tentar a sorte. Você vai fazer um teste com essa vara nova. Também trouxe umas iscas artificiais, dessas que agora estão na moda. Vai ver como é bom essas novidades, esses produtos dos japoneses". Tudo combinado, lá se foram os dois.

  Depois de uma explicação inicial e de uma demonstração, Maneco arriscou usar a tecnologia porque não queria parecer indelicado. Afinal, presente é presente. Eu, debaixo da sombra da amendoeira, acompanhava a evolução dos dois. Pesca de currico: lançavam e puxavam a linhada, lançavam e puxavam, lançavam e... "O que será que o Maneco ferrou?". Conhecendo  bem o Maneco, pensei até que fosse brincadeira. Mas não era. Ele andava na areia de um lado para outro; pelo jeito era grande mesmo o que estava fisgado. A vara nova arcava conforme a linha entrava e saía na carretilha. Eu passei a prestar toda a atenção, torcendo pelo pescador. O amigo o acompanhava, parecia dar mais orientações. Vai que vai, puxa que puxa... Aos poucos aquilo foi se aproximando da praia. Eu me desloquei para ver de perto o que logo estaria na espuma do lagamar. Pensei em robalo, pois logo ali era a desembocadura do rio. E era mesmo! Um senhor robalo! Vibrei mais que os dois ao ver o bonito peixe. "Que bitelo! Desde o tempo de mergulho com o Tio Dito eu não via um assim!". Elogiei os dois pela pescaria, tirei umas fotografias. Nisso chegou um rapaz, turista pelo jeito. Todo encantado pediu ao Maneco se ele podia posar com o bonito peixe: "É para mostrar ao meu pessoal. Eles precisam ver essa beleza pescada onde a gente se diverte com a nossa família, com os nossos amigos". E já foi se abraçando ao robalo para a sua companheira registrar o momento. Perguntei a ele se eu também poderia fazer uma imagem dele segurando o peixe. "Tudo bem, tudo bem. Manda brasa, amigo!". Assim obtive a imagem que mostrei a conhecidos que há muito tempo dizem: "Ali, naquele cagador, não tem peixe bom. É tempo perdido ficar pescando ali".  Enquanto isso Maneco voltou com maior empolgação a lançar a linhada e puxar, lançar e puxar, lançar e puxar... Ainda escutei o seguinte comentário do velho pescador: "Você estava certo, compadre! Essas novidades são boas mesmo! Agora vou aposentar a vara de bambu".

  Voltei para debaixo da gostosa sombra e ainda acompanhei mais um pouco a movimentação dos dois amigos se divertindo por um bom tempo. Imaginei a panelada de carne de robalo no almoço do dia seguinte. "Certamente o Maneco vai chamar a filharada para o almoço de amanhã. Que festa! De fato, é um senhor robalo. Valeu a tarde".

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A ESQUINA QUE RESISTE AO TEMPO

 

Capitão Deolindo e Horácio Bruno no "Bar do Félix" - Arquivo Tia Helô


      Na metade do século XX (1947), uma caipira a convite do Coronel Ernesto de Oliveira chegou em Ubatuba e se instalou na Coletoria Estadual. Depois se tornou professora, sendo conhecida até seus últimos dias como Tia Helô. Pelo jeito, sua primeira viagem, sua descida de serra foi no verão, num começo de ano: "De Taubaté até aqui nunca tinha visto tanto verde, cada um de um tom diferente, claro, escuro, claríssimo, escuríssimo. Lindo! Lindo! Quanta beleza! Os pés de quaresmeiras e manacás ladeando a estrada, exibiam sem nenhum pudor suas flores brancas, lilases, rosas e roxas. Contrastavam com os vários tons de verde, extasiavam qualquer pessoa que por ali passasse".  

    Gosto de reler o livro da Tia Helô - A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta - para conhecer melhor outros momentos do nosso lugar, das pessoas daqui e de seus costumes. Imagine a riqueza nos registros de uma moça que saiu de uma cidade grande e veio morar numa cidade minúscula, praticamente isolada de tudo, com um mundão de mar à sua disposição. Imagine que barra ela enfrentou!

   "Os problemas 'comportamentais' persistiam: eu entrava no bar do seu Félix (onde hoje está o açougue do Supermercado Paulista), na verdade chamava-se Bar e Café do Povo, que era uma 'sala de bate-papo', onde a caiçarada (homens machistas, que não admitiam mulher em bar), se reunia  no fim da tarde, e tinha coragem de tomar cafezinho no balcão. Meu Deus, o mundo caía naquela hora! Mulher, solteira, encostada em balcão, sozinha, pedindo café! Que absurdo! Nunca tinham visto isso. Mulher ficava em casa, se quisesse tomar café que fosse ela mesma prepará-lo, para tomar junto com a família. O contrário, aqui nunca havia acontecido. Eu estava sendo 'a primeira a inventar moda', assim como fui a primeira a 'inventar outras modas', que vistas por qualquer pessoa vinda de uma cidade um pouco maior, seriam tratadas como 'costume corriqueiro'. Os homens que frequentavam o bar afastavam-se de mim como se eu fosse portadora de uma doença infecciosa, os olhares de reprovação fulminavam-me, mas eu nem dava importância. Queria impor-me como 'dona do meu nariz'. Além disso, eu achava que o cafezinho bom, forte e gostoso preparado pelo Zezinho, irmão do Félix e pai do Érico Torraque, (meu aluno e mais tarde meu colega como funcionário da Escola Capitão Deolindo), valia a pena".
  
    Na foto postada acima, vemos o Capitão Deolindo se apoiando no poste, aproveitando o calor do Sol. Horácio Bruno está acomodado no batente da porta. Gente charmosa! Ontem me detive ali, na esquina das ruas Jordão Homem da Costa e Dona Maria Alves, atrás da Igreja Matriz. Fiquei olhando bem. Nada foi mexido da antiga fachada, exceto o fechamento dos vãos e outras adaptações. Pensei: "Lá dentro os rapazes trabalham cortando e pesando carnes. Nunca imaginariam funcionando ali, num tempo distante, o Bar e Café do Povo. O que comentaria, encostado ali no poste, o Capitão Deolindo, caso pudesse prever as mudanças do futuro?". Creio que o meu estimado amigo Jorge Ivam é capaz de produzir uma linda história a partir dessa imagem, dessa esquina que resiste ao tempo.
  

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A CIDADE AO REDOR

José Libório - Arquivo Ubatuba

 
    Eu era muito pequeno, mas me lembro bem do Seo Zé França. Era amigo de todos (como todo mundo daquele tempo), estava sempre em prosa com vovô Armiro, tio Francolino e outros, escutando, fazendo trocadilhos e rimando o que podia. O armazém da Praia Dura era o ponto de encontro desses antigos. Depois cresci, andei por outras paragens, deixei de encontrar muita gente. Um dia, já faz tempo, o Cícero me entregou um livreto de poesia. Na capa o José Libório, o Sr. França - Suas belas histórias. Que surpresa boa! Hoje, transcrevo aqui parte desse material, desse talento do Seo Zé França.


"Agora eu vou falar do povo da cidade ao redor"


Havia naquele tempo
Ali no Mato Dentro
Uma venda de mantimento
Era do Dito Bento.

Quem descia de São Luiz
Indo pro lado de centro
Logo também chegava
No armazém do Zé Vicente.

Chegando antes do trevo
Você sabe onde é
Tinha uma barraca
Que era do Tião Raé.

Indo para a cidade
Ali bem pertinho
Via um casarão
Que era do seu Adinho.

Ali no senhor Adinho
Que era um velho muito prosa
Ele tinha outro vizinho
Que era o senhor Barbosa.

Este senhor Barbosa
Era bom de serviço
Pois naquele tempo
Ele era oficial de justiça.

Seguindo mais à frente
Indo até ribeirão
Tinha uma chácara
Da família do Baião.

Tinha o Vicente Ramos
Também tinha o Anagro
E tinha um senhor
Que era o pai do Thiago.

Chegando mais à frente
Onde tem uma curva feia
Olhando o lado direito
É a chácara do Zé Coelho.

Você não está lembrando
Tem a mente esquecida
Este era um velho alto
Era pai da Margarida.

Até mesmo bem na curva
Muitos não se lembram mais
Era uma grande serraria
Que pertencia ao Orlando Maia.

Ainda tinha lá atrás
Uma família vermelha
Quase todos da família
Trabalhavam no Correio.

Agora sim eu me lembro
Isto é, se não me engano
Quase em frente à serraria
Era o seu Cipriano.

Você via o Cipriano
Que estava sempre sorrindo
Mais à frente à direita
Era a casa do Tarzino.

Este seu Tarzino
Era um baita dum negão
Ele tinha um vizinho
Que era um padre alemão.

Este padre, naquele tempo
Na cidade morava só
Quem era sua vizinha
Era a Maria Vitório.

Chegando na cidade
Seguindo o mesmo caminho
Na rua ao lado esquerdo
Estava o senhor Juquinha.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

TUDO É MUITO LINDO!

Florada das tinticuias  na rodovia - Arquivo JRS

"Eu já vi dançar essa imagem da riqueza da floresta no tempo do sonho" (Davi Kopenawa, no livro A queda do céu)


    Anna está chegando de viagem. Seja bem-vinda, querida! Depois de muitas horas desde Juiz de Fora, ela embarcou em Taubaté e vem pela Rodovia Oswaldo Cruz. "Já estou em São Luiz do Paraitinga. Alguém passou mal e vomitou dentro do ônibus". Assim que ouvi isso dei uma suspirada, pois é certeza que na parada o veículo passará por uma limpeza antes de continuar o trajeto. Ainda bem! Senão, sentindo o cheiro desagradável, mais gente pode passar por enjoos e vômitos. E a possibilidade, na serra, naquele tanto de curvas, é sentir-se enjoado quem tem tendência a isso.  As informações são repassadas por meu filho que acabou de completar vinte e dois anos. Anna é a sua querida namorada. Peço a ele que transmita uma animação à moça: "Diga-lhe para dar  toda atenção à bela paisagem que começa logo após o Rio do Chapéu, entrada de Catuçaba, pois agora é tempo de florada das tinticuias".
  
   Tinticuia é o nome indígena, transmitido aos caiçaras. A maioria das pessoas aprenderam a chamar de manacá-da-serra ou de quaresmeira a árvore que, nesta época de verão, enfeita o entorno da estrada de flores em rosa e branco.

   Não demora nada para nova mensagem da Anna: "Já estou avistando. Nossa! Que beleza! Tudo é muito lindo!". Sim, é mesmo muito bonito o espetáculo que se mostra aos viajantes. Você sabia que a presença de tinticuia, jacatirão, capororoca e outras árvores em profusão é sinal de mata em regeneração? Recebe o nome de mata secundária; é importante na assimilação de carbono, no abrigo aos animais e à infinidade de seres que polinizam e transformam tudo em nutrientes etc. Também estabilizam os solos, preservam as fontes de água... Enfim, garantem a biodiversidade. Desconfio que, naquilo que resta da gigante Mata Atlântica, a maioria é composta de matas secundárias. Fiz questão de reforçar esta informação para o meu filho. Antes era tudo mata fechada. Se teve nome indígena essa maravilha de floresta, ele não chegou até nós devido às perseguições aos povos originários. Depois virou plantações (cana-de-açúcar, café, pastagem de gado...). Nesta estrada, entre Taubaté e Ubatuba, boa parte está se regenerando, possibilitando espetáculos cheios de cores e cheiros, mas surge novos perigos. Por exemplo: eucaliptos e pinheiros (plantas exóticas) estão sendo plantados, se espalhando, dominando importantes espaços, matando nascentes de águas e exterminando espécies nativas. Outros perigos: queimadas e construção de condomínios.

  Compare, na próxima viagem, a beleza e o frescor de nossas matas nativas a essas plantas capitalistas. 


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

PODE TUDO!

Caminho na restinga da Mococa - Arquivo JRS


    Centro da cidade de Ubatuba. Final de tarde, uma fila para questão do passe escolar. Eu ali, de lado, na fila. Logo atrás um pai e seu filho; depois dele uma mãe e sua filha. À nossa frente ainda se encontrava bastante gente esperando pelo atendimento. A mãe está brava: "Precisei voltar na Vila da Picinguaba, lá em casa, para buscar um documento e resolver logo isso". O pai, jovem ainda, respondeu: "Eu moro no Taquaral, mas conheço a Picinguaba. No domingo passado estive lá visitando um amigo. Por muitos anos trabalhei como guarda-parque naquela região [Parque Estadual da Serra do Mar - Núcleo Picinguaba]. Ela tocou a prosa: "Ah! Então você conhece mesmo! Pois é, o Parque e a Vila não se dão direito, há sempre desavenças, mas fazer o quê? O meu marido, há seis meses pediu licença para mexer no telhado da nossa casa, fazer umas melhorias, mas até agora nada de autorização. Se a gente fosse endinheirada a história seria outra. Você foi lá, viu aquela casa apertando a estrada: é do Bechara. Rico pode, né? Parece que, rapidamente, essa gente que tem bastante dinheiro consegue tudo que quer, mesmo sendo uns absurdos aos nossos olhos e à comunidade que lá vive ou frequenta. A gente se revolta, mas fazer o quê?". (Nota: eu não conheço nenhum Bechara e nem sei se é assim que se escreve este nome).

  Eu ali, na fila, escutando e refletindo no assunto. Recordei que, do terreiro da minha casa, vejo desmatamentos, queimadas, construções subindo os morros etc. Conclui me intrometendo na conversa alheia: "Agora tudo pode. Anteontem, na no alto do Morro da Mina, no bairro da Estufa, avistei uma casa. Sozinha, naquele lugar que até pista de motocross já abrigou, ela é a rainha. Imaginem a vista panorâmica que se tem de lá. Até o mar se vê ao longe. De onde vem a água para se servirem ali eu não sei, mas de uma coisa tenho certeza: o esgoto, pela lei da gravidade, descerá  pelo morro, se infiltrará para o ponto mais baixo. Isto independe de ser barraco ou mansão. Não é de hoje que isso se verifica. Por exemplo, na Picinguaba: tudo vaza para o mar. No caso da Estufa, com o passar do tempo, lá no alto do morro se formará outro bairro, e, considerando que o mar fica meio longe dali, quem será afetado? ". Encerrei a minha fala assim: "Tudo vai sendo devastado. Se não defendermos a terra em que vivemos, morreremos com ela". Os dois não comentaram nada. A fila andou.


Em tempo:

1- A pista de motocross foi empolgação do finado Thomas de Carle e alguns de seus companheiros.

2- Em prosa com o Chico Lopes, há muito tempo, chegamos à solução para o Morro da Mina: reflorestar, fazer daquilo um Parque Ecológico Municipal. Pode ser que a mina d'agua, socorro de tanta gente no passado, ainda reapareça depois da recuperação da mata. Haverá alegria maior?

3- Os Três Poderes se omitem em muitas questões e devem ser responsabilizados pela maioria das catástrofes que ocorrem. No contexto atual brasileiro, vendo consumar a "liberação" máxima, a desproteção jurídica, a falta de fiscalização etc., o que fazer?

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

EMPODERAMENTO

Parte de uma xilogravura - Arquivo JRS


     Fui fazer uma visita ao amigo Daniel recém chegado de uma viagem ao Nordeste brasileiro. Sua casa fica meio que retirada do centro do bairro, longe da rodovia, com poucos vizinhos. O convite foi tentador: "Trouxe umas coisas da terrinha, Zé. Passa lá para uma prosa e aproveitar uns comes e bebes". De fato foi muito bom. Ele é muito animado; a conversa foi longe com o tempo passando voando. Quando estava na saideira, quase me despedindo, uma confusão na vizinhança: "Ah! Não se assuste, Zé! É o casal daquela casa mais perto: ele, já ouvi dizer, é militar aposentado e ela é diretora de escola, ainda não se aposentou. Briga é coisa comum entre eles; sai uns xingamentos e uns tabefes. Não passa uma semana sem esses arranca rabos. Depois vão dormir, e, no dia seguinte, parece que não aconteceu nada. São crentes, evangélicos, de uma igreja ali no centro da cidade. Certamente que quem trabalha com ela deve notar umas marcas na coitada e escutar as explicações dela. Mas isso não me interessa; fica tudo entre eles. Acho que é ciúmes dele por ser bem mais velho que a esposa. Desconfio que ele não dá dando conta do recado. Será que não é isso? É o que eu penso. Minha companheira concorda comigo. Não sei como podemos ajudar nesse caso".

   Fiquei curioso. Pensei: "Que diretora é essa que se submete a isso?". Na saída da casa do meu amigo, passei devagar pela casa vizinha e tentei ver as pessoas que continuavam em confusão. O homem estava visivelmente embriagado; a mulher tinha um olho roxo. "Ai que vontade de fazer uma denúncia anônima para a polícia, para a igreja deles, para a escola... Quem sabe isso não inibe o valentão e alivia a situação da coitada". Nesse momento reconheci a tal senhora, já havia participado de reuniões com a presença dela. Nas últimas, quando o assunto apresentado como possível projeto era Mulher, ela interferiu dizendo: "É um tema bom, mas não aguento mais ouvir coisa em torno de empoderamento delas. Acho maçante, já deu o que tinha de dar. Eu voto contra um direcionamento assim". Naquele momento refleti em torno do quanto falta para a maioria das mulheres se tornarem empoderadas, deixarem de ser somente exploradas, tolhidas em suas capacidades e serem amadas por seus companheiros, por seus filhos... Quanto de violência acontece país afora contra as mulheres? A mídia está sempre trazendo fatos horripilantes. E o tanto de casos que certamente nem é relatado, nem registrado, nem denunciado porque grande parte das pessoas considera "normal"?

  Por que aquela diretora e outras bem vestidas professoras se posicionam contra o empoderamento das mulheres? Por que defendem que a escola precisa deixar de falar, de provocar reflexões a respeito disso? Eu desconfio que tenho uma resposta: elas não conseguem dar um passo decisivo contra a submissão, contra o machismo. Mas isso não quer dizer que a EDUCAÇÃO tenha de se omitir diante de tantas crueldades e injustiças decorrentes disso! Quanta gente tem de ter, ao menos na escola, essa chance de reflexão, de ser protagonista, de ter autonomia, de ser amada e respeitada desde o próprio lar?