quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A ESQUINA QUE RESISTE AO TEMPO

 

Capitão Deolindo e Horácio Bruno no "Bar do Félix" - Arquivo Tia Helô


      Na metade do século XX (1947), uma caipira a convite do Coronel Ernesto de Oliveira chegou em Ubatuba e se instalou na Coletoria Estadual. Depois se tornou professora, sendo conhecida até seus últimos dias como Tia Helô. Pelo jeito, sua primeira viagem, sua descida de serra foi no verão, num começo de ano: "De Taubaté até aqui nunca tinha visto tanto verde, cada um de um tom diferente, claro, escuro, claríssimo, escuríssimo. Lindo! Lindo! Quanta beleza! Os pés de quaresmeiras e manacás ladeando a estrada, exibiam sem nenhum pudor suas flores brancas, lilases, rosas e roxas. Contrastavam com os vários tons de verde, extasiavam qualquer pessoa que por ali passasse".  

    Gosto de reler o livro da Tia Helô - A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta - para conhecer melhor outros momentos do nosso lugar, das pessoas daqui e de seus costumes. Imagine a riqueza nos registros de uma moça que saiu de uma cidade grande e veio morar numa cidade minúscula, praticamente isolada de tudo, com um mundão de mar à sua disposição. Imagine que barra ela enfrentou!

   "Os problemas 'comportamentais' persistiam: eu entrava no bar do seu Félix (onde hoje está o açougue do Supermercado Paulista), na verdade chamava-se Bar e Café do Povo, que era uma 'sala de bate-papo', onde a caiçarada (homens machistas, que não admitiam mulher em bar), se reunia  no fim da tarde, e tinha coragem de tomar cafezinho no balcão. Meu Deus, o mundo caía naquela hora! Mulher, solteira, encostada em balcão, sozinha, pedindo café! Que absurdo! Nunca tinham visto isso. Mulher ficava em casa, se quisesse tomar café que fosse ela mesma prepará-lo, para tomar junto com a família. O contrário, aqui nunca havia acontecido. Eu estava sendo 'a primeira a inventar moda', assim como fui a primeira a 'inventar outras modas', que vistas por qualquer pessoa vinda de uma cidade um pouco maior, seriam tratadas como 'costume corriqueiro'. Os homens que frequentavam o bar afastavam-se de mim como se eu fosse portadora de uma doença infecciosa, os olhares de reprovação fulminavam-me, mas eu nem dava importância. Queria impor-me como 'dona do meu nariz'. Além disso, eu achava que o cafezinho bom, forte e gostoso preparado pelo Zezinho, irmão do Félix e pai do Érico Torraque, (meu aluno e mais tarde meu colega como funcionário da Escola Capitão Deolindo), valia a pena".
  
    Na foto postada acima, vemos o Capitão Deolindo se apoiando no poste, aproveitando o calor do Sol. Horácio Bruno está acomodado no batente da porta. Gente charmosa! Ontem me detive ali, na esquina das ruas Jordão Homem da Costa e Dona Maria Alves, atrás da Igreja Matriz. Fiquei olhando bem. Nada foi mexido da antiga fachada, exceto o fechamento dos vãos e outras adaptações. Pensei: "Lá dentro os rapazes trabalham cortando e pesando carnes. Nunca imaginariam funcionando ali, num tempo distante, o Bar e Café do Povo. O que comentaria, encostado ali no poste, o Capitão Deolindo, caso pudesse prever as mudanças do futuro?". Creio que o meu estimado amigo Jorge Ivam é capaz de produzir uma linda história a partir dessa imagem, dessa esquina que resiste ao tempo.
  

2 comentários:

  1. Obrigado,Zé. por me atribuir essa capacidade, mas eu sou o primeiro a duvidar dela. Um abraço.

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  2. Eu sei que você consegue, tem talento e formação.

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