domingo, 27 de fevereiro de 2022

CONTRIBUIÇÕES DO SCHMIDT

Imagens de Borges Schmidt (Arquivo internet)

   No volume I (1947), da Revista do Museu Paulista, o pesquisador Carlos Borges Schmidt, cujas fotografias de pessoas, técnicas e lugares litorâneos da metade do século XX tanto nos fascinam, começa descrevendo técnicas indígenas, muitas das quais ainda garantiam a subsistência caiçara naquele período em que ele passou estudando o nosso povo. Cita Hans Staden e Jean de Lery como cronistas sérios: 


   "As flechas e as redes, além da linha e do timbó, eram os seus processos e os seus recursos, dos quais ainda hoje não nos afastamos muito, em especial do segundo, o mais útil e o mais precioso, empregado sob as mais diversas formas e com as técnicas as mais diferentes e sagazes. A vista aguda e a rapidez dos movimentos permitiam-lhes que, das praias ou das costeiras, ou ainda dos bordos das canoas, flechassem os peixes saídos fora d'água ou que nadassem à pequena profundidade. Ferido o peixe, mergulhavam no seu encalço e traziam-no de volta. Desta técnica teria sobrevivido até nossos dias o seu aspecto substancial, transmitido nas figas tridentes dos facheadores dos rios litorâneos e de suas embocaduras, quando, à noite, se postam, nas suas margens, ou em canoas, atraindo, com a luz de lampiões, o peixe que vão matar espetado".


  Meu saudoso pai tinha uma figa tridente, saía com ela depois do anoitecer, de vez em quando. Dizia que, no escuro, os peixes se achegavam no lagamar, tornando mais fácil de fisgá-los. Eu usei apenas uma vez aquele tridente: foi para fisgar uma tainha, na barra do rio Perequê-mirim. Onde hoje está assentada uma marina, uma garagem de barcos, no meu tempo de criança era uma linda lagoa. Dali levei a linda tainha para mamãe preparar no almoço daquele dia. O progresso (ou ganância?) acabou com aquele canto de praia, com aquele lindo pedaço de rio-mar que tantas alegrias deram à minha infância.

   Outro registro de uso de fisga eu tive a alegria de fazer com o finado Mané Hilário, quando ele contou que facheava no rio Indaiá (que desemboca na praia do Perequê-açu): 


    "Eu tava facheando mesmo, no rio. Eu co’Arfredo Mariano. Aí eu gritei pro Arfredo: 'Oh, Arfredo, uma enorme caranha!' Porque todo dia nóis achava pedaço de tainha cortada na preia, né? Era ela que comia. E no rio nóis também achava pedaço, mas nóis não sabia o que era. Quando chegô um dia eu tava com nove tainha na canoa, no Perequê-açu, no rio Indaiá, na boca da barra, no começo do rio. Aí eu gritei: 'Arfredo, que nobre caranha! É  a tar que anda comendo a tainha aqui!'. Eu tava co’a fisga na canoa e ele remando. E o lampião  na popa da canoa. Era noite; uma nove da noite ou deiz da noite. Aí ele: 'Não fisga,  Mané Hilário, que nóis vai alagá!'. 'Ah! Não vô dexá de fisga!'. Acompanhei e bati a fisga na caranha. E a caranha...brubrubru....tchaaaaaabau. Nóis dois de boca abaixo. Virô a canoa; apagô o lampião; apagô tudo! 'Aí? Eu não disse pra você? Eu não disse pra você? Você é teimoso! Agora perdemo a caranha; perdemo o pexe tudo'. De manhã eu fui e peguei as tainha que tava no poço. O siri tava pegando a roê a cauda da tainha. Aí eu embarquei a tainha e vim embora. Quando passô ali uns oito dia ou mais, o Candinho Manduca, que era o meu tio, foi buscá bambu seco pra fazê tinta pra botá na rede: 'Mané Hilário, você sabe de uma coisa?'. Até me assustei quando ele falô assim. 'O que foi, titio?'.  'A caranha que você fisgô tá encalhada lá em cima no rio. O corvo tá comendo'. Aí fomo lá. O pessoá foi  lá juntá, tirá as escama pra fazê enfeite no Natar, né? Aquelas escama grandona. Era uma baita de uma caranha! Pexe pra uns 50 ou 60 quilo. Aí fomo lá e chegamo lá. O bucho da caranha tava amarelado de ova de tainha, rapaz! E perdemo a caranha! Já tinha uns cinco dia ou mais".

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