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terça-feira, 13 de outubro de 2020

VAMOS DE SIRI PATOLA?

Rabeca do tio Dário (Arquivo JRS)

       Desde 2017 o meu filho Estevan é o guardião da rabeca do saudoso tio Dário Barreto.  Ela e ele andam por aí, nos fandangos da vida. Muita honra nos deram os primos Elias, Ditinho e Toninho nesse presente inigualável, que faz parte de mim desde criança. "Nossa! A rabeca do tio Dário!". A música segue seu caminho; a alegria está com eles: os festivos caiçaras. A poesia vem na onda da memória, quando a casa mais próxima da nossa era a do titio, onde eu passeava e ouvia os acordes na acolhedora sala daquele lar, naquele morro de paz.


Toninho bodocava por ali,

Vivia passarinhando sempre que podia.

Pegava a viola num instante.

Elias se abraçava com o cavaquinho

E tirava seus chorinhos.

Ditinho tinha um violão.

Tia Maria e tio Dário regiam tudo.

"Vamos de Siri patola?"

E daí logo emendava no Patieiro,

Na Flor do abacateiro 

E outras tantas músicas nascidas não sei de onde.


E por fim, depois de corrida tantas,

Tio Dário só.

O arco da rabeca ia e vinha,

Um som choroso se alastrava,

Tomava toda a casa,

Seguia porta afora.

Os filhos e eu fechávamos os olhos.

Enquanto isso,

Na voz da tia Maria,

As rezas ganhavam corpo,

Iam fechando tudo.


Lá fora... a noite chegando.


Um grito ao longe:

Mamãe me chamando.
 


 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

DONA RITA

 

O Sol (Arquivo JRS)

                Chico Cruz era irmão do Antônio Julião e da Chica, gente nativa da praia da Santa Rita. Rita Maria da Cruz, natural da praia das Toninhas, irmã do Argemiro, foi casada com Chico Cruz, funcionário do presídio da Ilha Anchieta, onde passaram os piores momentos em 1952, por ocasião do levante. Argemiro terminou seus dias casado com a Chica, no Perequê-mirim. Nilséa e Nilson amavam seus pais (Argemiro e Chica, que tanta estima tinham por mim).  Segundo os depoimentos deles e de tantos outros, junto com a Revolução de 32 e a Guerra dos Tamoios, foram os únicos momentos  sangrentos da nossa terra. “Ninguém dormia sossegado de tanto medo”. Dona Rita disse um dia que, “quando estourou a revolta dos presos, na parte da manhã, as minhas duas filhas mais velhas estavam na escola, ao lado do presídio”.

                Rita Maria da Cruz tinha 80 anos. Acho que era o ano de 2003 quando, bem próximo ao portão da casa dela, debaixo de uma pequena sombra de um pé de lichia, no centro da cidade, a viúva me concedeu um dedo de prosa. Não me demorei muito para não cansá-la demais. Mas valeu a pena! O comentário que faço questão de transcrever hoje é a respeito do turismo na nossa cidade.

                “No meu tempo de menina a gente vivia isolada. Só as canoas se teciam por esse mar de Deus. As  grandes canoas [de voga] faziam as viagens mais longas. Só depois começaram a vir os barcos de Santos. Levavam e traziam de tudo. Acho que era uma vez por mês que eles apareciam. Ainda não tinha estrada de carro por aqui. A gente, que morava nas Toninhas, saía logo depois da grande cantoria dos galos [por volta das três horas] na madrugada para vir estudar na cidade, na escola Doutor Esteves da Silva. Só quando era quase serão a gente chegava de volta lá em casa. Todo mundo andava pelos jundus e praias; sempre tinha alguém indo ou vindo pelo trajeto”.

                Pois é. É notório que a cidade de Ubatuba vivia praticamente isolada do resto do mundo. A estrada para Taubaté é do começo da década de 1930. A ligação rodoviária para Caraguatatuba se completou em 1957. Justo Arouca escreveu a respeito dela: 

                “A picareta que em 1948, rompeu o chão para robustecer aquele fio de sonho, abriu a marcha incessante em busca das lendárias praias de Iperoig, 54 quilômetros depois [...] Fatigado de desilusões  e de tanto esperar, o novo dia chegou, finalmente. Chegou ao Acaraú, sem pedra fundamental, sem foguetório, sem discurso, sem feriado escolar. Era o ano da graça de 1957, setembro [...] O sonho, agora, passa para a realidade. A nova estrada rompe o silêncio de mais de meio século, abrindo as portas da cidade para um novo tempo de reconstrução”.

             Vinte anos depois, em 1977, a última via de acesso (BR-101) nos liga, ao norte, à cidade de Paraty. O turismo é a principal atividade econômica. O Sol é para todos. O desafio maior hoje é saber amar toda essa natureza exuberante que temos, vencer a poluição que avança sobre tudo e derrubar as barreiras do ódio que tenta prevalecer sobre todos.

             Como eu gostaria de ter chances de outras tantas boas prosas!

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A LAVOURA

 

Bito Madalena (Arquivo JRS)

             Escrever sobre lavoura no chão caiçara é enxergar ainda os espaços cultivados. Era assim na minha infância, quando a especulação imobiliária engatinhava no litoral paulista. Em época desta, quando chegava a primavera, as roças novas recebiam as primeiras atenções, sobretudo no controle do mato que sempre vinha com muita força. As saúvas também exigiam vigilância constante. Na  várzea do Sapê, vovô Estevan plantava arroz e milho entremeados com as bananeiras. No morro da Fortaleza se cultivava muita mandioca nas posses do vovô Armiro.  Me lembro sempre de uma prosa em outro tempo com o estimado Bito Madalena, no alto do morro do Saco dos Morcegos, quando ele me explicava: 

         "Todo esse mato daí, por esses morros todos, na metade do ano era preparado para novos plantios. Tudo era descultivado nessa época. Só ficavam livres as capoeiras que descansavam anos até chegar outro tempo para mexer nelas. Era chão de pousio. 

       Todos precisavam da lavoura. Quem vivia sem farinha? Quem passava sem banana, cará, batata,cana e outras coisas mais? Eu, meus parentes... todos tinham de fazer isso para garantir uma parte do sustento da família. A outra parte vinha da pesca e da caça. Todo mundo vivia dessa maneira. Sinto dó da gente de hoje porque quase tudo precisa ser comprado na cidade. De uns tempos para cá o nosso pessoal foi se acomodando em outras formas de viver, de ganhar dinheiro. Veja tudo isso! Naquele tempo quase não se avistava mata fechada assim; era plantação disso, plantação daquilo. E quantas casas desapareceram  engolidas pelo mato!? Os mais novos se foram e os velhos que ainda vivem não têm forças para enfrentar a lida da roça, dos bananais. Agora, repare bem, veja a quantidade de casas surgindo pelos morros e badejas. Tudo isso já foi chão descultivado, teve posseante zelando, cultivando de tudo um pouco. Logo ali em frente, do Teófilo para baixo, até alcançar a cachoeira, o Rio do Inhame, foi o pessoal de casa - meu finado pai e nós, os filhos - que descultivamos. Tudo virou um bananal só. Os barcos saíam carregados de cachos, levavam para Santos. É por isso que este lugar adiante, até a virada de lá, tem o nome de Saco das Bananas. Antes era só Prainha do Frade".

sábado, 3 de outubro de 2020

O MENINO DA ENSEADA

 

Logo cedo, na praia (Arquivo JRS)

        Não faz tanto tempo assim que mais um dos antigos faleceu. Belinho nos deixou quase alcançando um século de vida caiçara. Lá se foi mais um menino da Enseada de outros tempos. O que eu posso fazer? Escrever partes das suas prosas!

    Belinho, da família Rocha era bom de prosa. Seus causos sempre me davam com muita satisfação. Por isso era comum, mesmo se estivesse com certa pressa, eu parar ao seu lado, sentar defronte a sua casa, na Rua Gastão Madeira, e ficar escutando suas narrativas.

    "Me chamam de Belinho desde menino, quando vivia na praia da Enseada. Bons tempos! Peixe era em fartura; cada puxada de rede na praia era uma montoeira de todo tipo de peixe, arraia, tartaruga... E no tempo de tainha então!?! O Macié, que negociava de tudo, pagava muitas pessoas para consertá peixe. Era na barra, perto da subida do morro dele, que alguns passavam o dia naquele trabalho. Era um trabalhão! Depois de alanhado e salgado, era tudo estendido no jirau para apanhar sol. Depois de seco, o barco que fazia viagem pra Santos comprava tudo para revender por aí afora, em outras cidades. A gente, criança ainda, vivia se tecendo, fazendo um trabalhinho aqui, outro ali. Sempre tinha alguém que pedia uma ajuda da gente. Em volta das casas, subindo morro acima, ficavam as roças. Mandioca e banana não podia deixar de ter. Cafeeiro era pouco, só para o gasto mesmo. Cana todo mundo usava para adoçar o café de cada dia porque açúcar era custoso. Depois viemos de mudança para a cidade. Logo fui contratado pela prefeitura, fazendo serviços por aí tudo. A cidade foi crescendo, ganhou campo de aviação; obras foram surgindo por todo quanto é canto. O comércio também cresceu porque a freguesia aumentou. Nem todos os comerciantes progrediram, mas a maioria se ajeitou de alguma maneira. E por falar nisso, agorinha mesmo passou um carro anunciando que é só até sábado uma tal de promoção naquela loja nova da Praça Nóbrega, onde antes tinha um chafariz bem grande, depois um relógio de Sol. Querem vender, né? Me faz lembrar de um reclame assim que vim para morar na cidade: 'Acudam ao armazém do Lindo Lipe porque chegou mercadoria nova!'. Eu, menino da Enseada, agora na cidade, também ficava curioso e passava por lá só para ver as novidades, as mercadorias novas. Ainda gosto das novidades! Por isso que eu gosto de me sentar neste lugar, ver o movimento de tanta gente passando, de carros...".

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

ERA GARNÉ

 



Baguary de Fora (Arquivo JRS)

    O mar estava ali, bem na porta. Comida também tinha, era o que bastava para as forças necessárias de cada dia. A pinguinha sempre surgia de algum lugar, trazida por alguém para distrair a vida dos pescadores. Ali Garné vivia o seu tempo não sei por quanto tempo, pois desde sempre eu tenho a lembrança dele sendo pescador naquele lugar, no pedaço de costeira conhecido como Baguary de Fora. Outros parceiros vez ou outra lhe faziam companhia, dormiam por ali.

    Desde sempre os pescadores usaram o Baguary como referência de pesqueiro, com bons parcéis e tocas fantásticas. Lugar de garoupa, de sargo e de tantas outras espécies cobiçadas por quem vive do mar. Há muito tempo a pesca de cerco foi instalada ali. Hoje não tem mais. Na falta de praia, uma estrutura (estivado) feita em paus roliços sobre as pedras da costeira serve de rampa às canoas, onde sobem e descem para a água, em busca dos peixes. Dois caminhos garantiam o acesso ao Baguary: um do alto do morro do Cedro e outro da Ponta Grossa, quase chegando no Farol. Quer um lugar bonito? Deseja sentir melhor a natureza? Recomendo, dentre outros, o Baguary de Fora, uma formação de relevo diferente. Tio Genésio dizia que baguari é coisa que não está de acordo. Quero entender que significava algo que destoa daquilo que era normal. No caso, entre um amontoado de rochas resistentes à força do mar, um ambiente diferente se formou. Árvores grandes, plantas rasteiras e até coqueiros se fizeram aparecer a partir de condições que pareciam impossíveis à vida. É certo: a natureza insistiu muito para se fazer daquele jeito, naquela beleza sem igual.
    
    O percurso da Ponta Grossa, a partir do Canto do Acaraú,  sempre me agradou muito. Andei bem por aqueles morros e costeiras desde antes dos vinte anos de idade. Vi as modificações acontecendo (e continuam!). Por vezes, de repente, punha a mochila nas costas, me despedia da mãe e lá me ia na caminhada. Quase sempre levava café, açúcar e pão para um café durante a prosa com o Garné e possíveis companheiros do Baguary (Zeca, Bidico, Tico, Jango...). Neste ano, meses atrás, Garné se foi. A paz daquele lugar agora é outra, sem o amigo de tantas prosas, das boas risadas da Era Garné.

    

    

domingo, 20 de setembro de 2020

AQUELA CASA

Na beira da estrada (Arquivo JRS)


             Quem faz casa na beira da estrada tem sina de acolhedor, pois quem viaja recorre sempre por um copo de água, uma informação ou simplesmente larga pelo chão o fardo num instante para prosear

           O dia amanhecia. Bem na frente daquela casa eu parei para esperar o Chico Lopes que se dirigiria ao pé da serra, ao sítio. Eu iria para conhecer a cachoeira das Pedras Brancas. Sentei ali, na beira da estrada; poucos carros passavam naquela momento. Abri a mochila e puxei de caderno, máquina fotográfica e caneta para registrar aquele momento. Deduzi que há tempo ninguém morava ali, nem zelava pela área como seria merecido. Notei o estilo e os materiais usados na obra: tudo moderno em outros tempos. Foi feita bonita, acolhedora... Sem cerca alguma para dizer que confiava nos passantes e não recusava acolhida. Uma janela antiga requadrada com esmero. Em meio à natureza, ela parecia querer também ser notada. Assim a humanidade foi trabalhando, modificando a natureza: pedra foi cortada para alicerce, barro virou tijolo e telha, árvore virou porta, janela, caibros, vigas, ripas... A casa se tornou proteção ao homem, à mulher e às crianças que se multiplicaram sobre mais espaços da natureza, da mata ao redor. O tempo passou, as pessoas se foram e os sentimentos de zelo pelo belo foi se apagando. Teve pintura? Agora não tem mais. Flores abundavam o terreiro? Agora é só terra seca e folhas secas ajuntadas pela ventania. O que eu faria? Reformava seguindo conforme a originalidade e a tornaria aquela casa novamente agradável, capaz de despertar contemplações de todo mundo que estivesse passando por ali. Depois de tudo pronto, de um jardim colorido, um banco seria permanente para boas prosas. Um cachorro, um gato e galinhas dariam movimento ao espaço. Pensava tudo isto quando o Chico chegou batendo em minhas costas. "Vamos?". Embalado na imaginação, prossegui: "Senta aí, compadre. toma um cafezinho que acabei de passar. E aproveita que a minha amada ainda dorme, mas aprontou ontem umas broinhas de milho que não tem como não gostar". Ele, vendo a casa e notando o caderno com coisas escritas, sentou ao meu lado. Me escutou e acrescentou a sua luminosidade ao meu olhar, àquela casa da beira do caminho de antigamente, onde muitas tropas passaram com suas cargas valiosas a enfrentar a dura subida e descida da Serra do Mar.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

EM SERÃO

Cais de Ubatuba no serão (Arquivo JRS)

 


                  

Fim de tarde é serão;

Parei no Acari e Mariquinha.

Após prosa e café andei mais,

Fui me despedindo do dia.

Desde a Ubatubana tudo brilhava.

O Sol se pondo 

No cais muita gente se ajuntando.

Não há ninguém ao meu lado.


Depois do serão escurece logo.

Bebo água na bica; 

Piam curiabôs e grilos na grota.

Olho o balaio de peixes do Bié:

Sargo, garoupa e gudião.

À luz do Sol, todos dourados.

Contemplo aquilo tudo; 

Dali me vou no mar salgado.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O MONO CAPELÃO


1984 - Ponta do Farol (Arquivo JRS)



              Em 1980, num meio dia de Sol ardido, eu estava no recenseamento na área da Ponta Grossa. Era outubro. Naquele dia o meu roteiro tinha se iniciado no canto da Praia Vermelha, na entrevista com o Dito Olho Azul, mestre da dança da fita da capela do Itaguá. Depois passei pelo povo da Anatilde, minha colega de escola, pela bica do morro onde era a casa do Ditinho Batatão e Hione. Logo alcancei as poucas casas do Cedro, onde o saudoso Zeca do Paru me guiou para os lugares dos parentes, às moradias dali. Ainda faltava a Ponta do Farol. A comadre Galdina apareceu por acaso, estava visitando alguém. A sua moradia era no Acaraú, vizinha da família Damásio, bem no meio do pessoal numeroso do Janguinho e Santana: caiçaras que marcaram a minha juventude. Ao vê-la, o Zeca, sempre com alguma tarefa em mente, pediu: "Gardina, faz o favor de acompanhar o Zé Ronaldo até as casas da Ponta, para fazer a pesquisa que é preciso". E assim subimos e descemos morros naquele calor bravo. No percurso encontramos um caminhão pipa. Ela me explicou: "A água dali é pouca. Por isso sempre vem um caminhão cheio de água para serventia dos moradores, de quem está por ali. É tudo turista, mas tem duas famílias que servem de caseiros. Se fosse só pobre, eu duvido que a prefeitura fizesse isso. Quem conseguiu esse serviço foi a dona da casa maior, gente do Abreu Sodré, que foi governador do nosso Estado. Hoje tem tem mais obras novas por lá, você vai ver mais construções. O caminhão tem vindo mais vezes por isso".
       
             De fato, recenseei apenas quatro casas. Vislumbrei para os próximos anos mansões por debaixo daquele mato todo. Após a última casa, a comadre me convidou: "Já que estamos aqui, vamos até o farol. Dizem que está reformado, mais bonito. Ainda não fui lá depois disso". Lógico que eu ansiava em ver a famosa Ponta Grossa do Farol, o tal farol. E lá chegamos: uma obra simples, de onde se avistava um mar imenso. O finado Dário Barreto, caso estivesse conosco, na certa exageraria: "Quando o tempo está bem limpo, sem nenhuma cerração lá longe, daqui a gente é capaz de avistar o outro lado, a terra dos africanos". Sentamos ali para prosear desfrutando da linda visão. De repente um barulho veio vindo pelo mato, balançando galhos mais altos das árvores. Novamente aquela maravilhosa mulher me acalmou: "É mono. De vez em quando tem um bando deles que passa por aqui. O povo daqui está acostumado. Papai, que Deus o tenha, dizia que eles vem de longe, da serra, porque sentem saudade do mar, do cheiro da maresia e do barulho das ondas na costeira. É sempre neste tempo, quando tem mais caraguatás maduros. Vamos ficar quietos, só reparando no jeito deles. Macaco parece com gente, né?". O bando chegou, mais de quinze deles entre grandes e pequenos. Um deles se destacava. Ao nos perceber, deu uns pulos na nossa direção para nos examinar melhor, de perto. Permaneceu ali alguns minutos, na distância de cinco metros, sobre uma pedra. Depois  soltou um som como se acalmasse os demais e foi tranquilamente se juntar ao bando que atacava os cachos de caraguatás. Impressionante! "Aquele que veio até nós é o capelão, quem comanda os outros. Repare que tem a barba a mais grande e bem ruiva, parecida galhada de aroeira madura. E olha aquele tamanho de gogó!". Fiquei devendo mais uma lição para a comadre Galdina. Quanto privilégio meu em conviver com essa gente toda!

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O VELHO ASSUNTO DO ACARAÚ

 

                                            Canoa no Itaguá (Arquivo JRS)

           Cheguei cedo para um trabalho contratado pelo saudoso João de Souza. Ah, faz décadas isso! Na entrada do Camping do Velho Rita se encontrava proseando João Barriguinha, João de Souza e Acari. O assunto era política porque estava na época de eleições municipais. Os elogios, primeiramente eram para o Basílio Cavalheiro, o prefeito daquele tempo (e também morador do bairro!), pelas melhorias na orla do Itaguá (muro de pedra para conter as ondas das ressacas, evitando invadir a área da estrada de rodagem no jundu, construção do ginásio de esportes, o “Tubão”, etc. Mas uma coisa parecia ser angustiante aos três caiçaras naquela prosa política: o rio Acaraú. O motivo era que, por estar muito estreito, com construções quase fechando o seu leito, as grandes chuvas causavam sempre um estrago no bairro, invadiam terrenos e casas por ali tudo. “Não tem como remover as casas que já estão construídas”, “De nada adianta afundar o leito dele”, “Se fizer um corte, endireitar o rio, de nada vai adiantar”... Até parecia um gabinete de técnicos prontos a chegar na solução ideal do problema. Naquele momento chegou o Velho Rita. Logo se inteirou e deu a posição que eu julguei ser a melhor: “De um rio pode-se fazer dois. Basta anular uma rua dali de traz e transformar a reta, que vai até a praia, num rio. A maior parte do tempo ela vai correr com pouquinha água, mas nas grandes chuvas, vira um rio potente e deixa de fazer o estrago aqui do nosso lado. É difícil isso? Claro que não! Hoje tem máquina escavadeira na prefeitura. Se não tivesse, a gente podia fazer no braço. É para o bem nosso mesmo. Só é preciso fazer umas duas pontes para poder ter travessia aos dois lados. Isso não é difícil. De repente, o lugar onde hoje corre o Acaraú, deixe de existir, seja tudo aterrado. Então deixa de ter dois rios e fica só o segundo. Dali em diante o segundo será o primeiro e único. Está bom assim?”. Todos acharam a ideia um absurdo por um motivo apenas: “Nem pensar uma coisa dessa! Onde nós vamos pescar depois disso? Nem pensar! Todos nós crescemos comendo traíra desse rio. Desde criança nós pescamos traíra, acará, bagre e outros a cada dia ali. Nossos filhos, nossos netos vivem ali pescando sempre nos finais de tarde. Agora mesmo, olha ali a Celeste e o neto dela esperando com paciência a chegada de alguma coisa no anzol”. Resumindo: morreu o assunto. O problema continuou. Pior: se agravou! Agora é esgoto que transborda pelos espaços do bairro. Só não  se repete mais como antes porque as grandes chuvas já não são tão frequentes. É evidente que diminuiu a oferta de água no nosso lugar. Com certeza os descendentes desses antigos caiçaras não se arriscam a pescar há muito tempo no rio que corta o bairro com seus odores terríveis. Nem deve viver peixe com tanta sujeira ali! 

           Agora, novamente em véspera de eleição na cidade, o assunto bem que poderia voltar a ser falado, discutido pelos candidatos a alguma coisa na próxima fase administrativa do município. O velho assunto do Acaraú se mantém atualíssimo. Eu ainda acredito que não apareceu ideia melhor do que aquela do saudoso Sebastião, o Velho Rita.

Em tempo: hoje, feriado municipal "Dia da Paz de Yperoig" (1563). Nós sabemos que foi quando se concluiu a traição dos indígenas  que aqui viviam, resultando no extermínio do povo Tupinambá. O correto seria reconhecer como Dia da Traição de Yperoig)

sábado, 12 de setembro de 2020

CAPITÃO DE CANOA

 


 

Frente ao mar, no Masssaguaçu (Arquivo JRS)

          Aristeu, caiçara da Ilha do Tamanduá, tinha boa memória, gostava de prosas em rimas. Em qualquer ocasião puxava da oralidade e da tradição, quase sempre num ponteado de cavaquinho. Dele escutei a respeito de um velho capitão, vindo de outras terras.

 

Passou por aqui, meu amigo Zé,

Um velho capitão, desses do mar.

Como eu reconheci? Ele nos contou!

“Tenho mais dias de água salgada do que de vida”.

Logo debulhou todos os lugares,

E contou seus tantos amores.

Mas foi neste lugar que apoitou:

Ali no Morro da Tinticuia morreu.

Em lugar de quase água nenhuma,

O homem de tantas águas se findou;

Sem posse alguma além das histórias...

Ele saudades deixou.

 

Quando chegou trazia só um saco de lona,

Um pito no canto da boca

E o cachorro Tristão.

Achamos graça do jeito de falar:

Era estrangeiro de lugar estranho.

“Eu me criei em Granadinas, terra cercada de mar”.

Riscou no chão seu lugar: Canouan.

No sarro da nossa gente era:

O capitão que veio de Canoa.

Logo Capitão Canoeiro ficou.

Muita gente sabe das suas histórias

Desde cada serão que contou.



domingo, 6 de setembro de 2020

CANTO DO CAMBIÁ

Concha de cambiá (Arquivo JRS)

Canoa Cambiá (Xilogravura - Arquivo JRS)

             
          Eu sigo escrevendo e me alegrando com os amigos produzindo suas páginas a nos permitirem viajar, sonhar, alegrar e admirar pelas suas memórias e imaginações. Jorge Ivam ontem me avisou do lançamento de seu mais recente livro - Ser silvestre. Estou ansioso para ler mais uma joia pura desse talentoso professor que escolheu Ubatuba para criar a família. Viva a Bahia de Todos os Santos e  de tanta gente talentosa! Ao meu amigo sempre bem inspirado: parabéns!

                Interessante as forças da fantasia e da memória; parece que uma vive emprestando palavras à outra constantemente. Falando e registrando tudo vamos passando culturas, histórias e sentimentos. Agora, em tempo de reclusão devido à pandemia, nossas prosas vestem novas roupagens. Viva todo mundo que segue deixando suas marcas pelos textos e pelas imagens!

                O que escrevo agora está relacionado a um molusco: o cambiá. É um molusco muito apreciado na cultura caiçara, mas tem gerações mais novas que não sei dizer se conhecem esse ingrediente da nossa culinária. Mamãe nos preparava fartas porções de cambiás na quentura branda da lenha. Geralmente eles aparecem na praia em maré vazante ou após uma forte ressaca, quando não resistem às correntezas insistindo em rolá-los até o lagamar. O amigo Rogério Estevenel, caiçara da praia das Toninhas, escreveu que lá aparecia muito mesmo. Que bom! Os cambiás, para o meu povo, fazem parte das tantas dádivas do mar.

                Cambiá também é o canto direito da praia da Fortaleza, chão do meu lado materno, onde passei parte da minha infância. Lá, na Costeira do Cambiá, ficava o Buraco da Cobra. (Precisa recordar? Busca no índice do coisasdecaicara.blogspot.com O buraco da cobra, publicado em 08/03/2011). Também no Canto do Cambiá morava o Tio Onofre. Então, Canto do Tio Onofre era o jundu e Canto do Cambiá era o extremo da praia, na costeira. Foi na sua sala, segundo a sua filha Maria Mesquita, nossa querida titia, que funcionou a primeiro espaço de aula daquele lugar. “Papai cedeu parte da nossa pobre casa para as crianças aprenderem. A professora vinha da cidade e ficava morando com a gente, lá em casa mesmo. Era na nossa sala que ela ensinava”. Mais tarde a propriedade foi vendida para um turista, mudando o modo de chamar para Canto do Pierre. Eu me lembro bem de uns gansos bravos dele que sempre cismavam em correr atrás de nós na praia. Ai que raiva!

Acabou a escola, não teve mais aula? Não! A tia Martinha em seguida cedeu a sua casa no pé do morro, próximo da casa do vovô Armiro para a criançada continuar aprendendo. Foi ali a minha primeira experiência escolar. Bem cedo eu e minha irmã descíamos da nossa casa no morro molhando as canelas no orvalho do capim para aprender a escrever, ler e fazer contas, começo desta epopeia que eu seguirei até a morte, quando a gente deixa de aprender. Só em meados da década de 1970 a prefeitura construiu um prédio, para ser, de fato, a escola do bairro, no local onde ficava o Bananal do Sul, ponto do começo da subida do caminho em direção à a praia Grande do Bonete, nas posses da vovó Eugênia, herança do finado João Bento. Até hoje funciona lá a escola e o posto de saúde.





sábado, 5 de setembro de 2020

HORA DE CAÇOAR

Meus tios e uma caçoa pequena (Arquivo Tio Salvador)


                Eu conheci o Bito Mesquita, irmão do Porphírio, quando era bem velho, mas desconfio que há muito tempo ele era conhecido como Velho Mesquita. A  sua moradia era no canto da Lagoinha, no começo do morro, na beira do caminho que vai para as bandas do Bonete. Atualmente, tenho quase certeza de que só a costeira não se modificou naquele lugar. As casas pobres e os roçados dali já se foram há muito tempo. Agora, só casarões vigiam desconfiados os transeuntes, com seus muros empurrando o antigo caminho de servidão. Um pouco mais para frente, depois da prainha do Oeste, morava o Tio Zaca, o seu parceiro de prosa e pesca. Uma das prainhas agora lhe homenageia: Prainha do Zaca.

                O meu ofício não é escrever histórias, mas sempre dou um jeito de registrar alguma coisa. Agora mesmo estava me recordando de uma tarde ali na prainha. Para uma plateia só de caiçaras (Eu, Tobias, Júlio, João, Zé Roseno e Angelino), Tio Zaca contou:

              “O Mesquita, se pudesse, não deixava o mar. Nunca se viu alguém na vida gostar tanto de canoa. No tempo de caçoa então, ai ai ai... Nem a cantoria dos galos tinham parado ainda de chamar o dia, ele já chegava no rancho, que era neste lugar mesmo, onde tem a figueira. Dava só um grito: ‘Hora de caçoar, Zaca’. Eu que nunca gostei de deixar ninguém esperando, vinha logo de casa e embarcava com ele mar afora. Bom pescador e parceiro sem igual era aquele homem. Nunca vi igual! Parecia que ele enxergava os cardumes dentro d’água. Caçoa, então, ele farejava de longe. Eu brincava que na outra vida ele tinha sido cachorro.‘Tais sentindo, Zaca, o cheiro de melancia? Elas acabaram de arrotar aqui perto, vamos arriando as linhadas. É pena que só damos conta de duas!’. E não era que ele estava certo? Não demorava nada a gente já estava de volta, rolando a canoa no jundu e começando a consertar as bitelas ali no rio”.

                Pescaria de caçoa tinha disso. Dificilmente os antigos caiçaras puxavam mais do que duas devido ao tamanho e peso (quase sempre entre 80 e 100 kg). O tempo delas, depois de agosto, desesperava todo mundo. É que o óleo, extraído de seus fígados, era muito cobiçado. Os mestres dos barcos que faziam a navegação de cabotagem compravam tudo que houvesse e levavam para Santos para revender.

                Ao dizer a palavra caçoar hoje, faz lembrar de gozação, de rir de alguém. Em outros tempos, caçoar era se aventurar pelo mar com as narinas abertas a fim de sentir o cheiro dos arrotos das caçoas e lançar os anzóis para capturar as grandes, medonhas, mas mansas criaturas que possibilitavam uma renda a mais na economia dos pobres moradores desta Ubatuba, um pedaço de litoral brasileiro.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

OLHAR DE PESCADOR

Canoas de caiçaras em Ubatuba (Arquivo JRS)


O vento passou forrando o chão de folhas
As pegadas ficaram pela areia
No pedra do Canto Bravo Tio Lindo sentou.
Os olhos espreitaram
As narinas se abriram
Ele parou ali pouco tempo.

No cheiro da maresia
Continuava mais um dia.

Ao seu lado o cachorro  Satélite
Preá e Branquelo chegaram depois
Bichos brincam como nós
Tio Lindo pensa com ondas aos pés.

Enxergar além do mar é questão de olhar
Cardume é brilho que tremeluz
Pode ser pequeno ou valer a pena
É coisa grande pelo vulto
Só é miuçalha quando salta
O olhar se afina.

Na esperança da pescaria
Saiu ele em correria.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

ESTÁ TUDO DENTRO DA LEI

              
Boca-da-barra do rio Hubatyba  (Arquivo JRS)

                Isso de fragilizar ainda mais os povos indígenas, fartamente sabido por todos no Brasil atual, é cruel. O título deste seria mais justo se fosse Atualização do Genocídio Tupinambá, pois prevalece a lei de levar vantagem, de remover qualquer obstáculo ao lucro de alguns, mesmo que isso inclua o desaparecimento de povos inteiros, de culturas que vem dos primórdios, onde nem mesmo foram devidamente estudadas ou que seguem ainda sem contato com os descendentes dos invasores de cinco séculos atrás. O documento de hoje, apesar de ser antigo, vai nos mostrar que é atualíssimo, confere com a prática que aí está. Ou seja, conforme seguem exterminando as Nações Indígenas, os invasores legalizam as terras como suas, afirmando: “Agora eu posso fazer o que quiser, não tem ninguém para atrapalhar”. E assim, "está dentro da lei", sobretudo quando o domínio é fascista transvestido de moralismo cristão.

                Em Ubatuba, os indivíduos do povo Tupinambá eram os moradores originais, tudo era parte de seu território onde caçavam, coletavam e tinham suas habitações. O seu desaparecimento, após a Guerra de Yperoig, era inevitável mediante a cobiça crescente pelas terras e riquezas deste território. Benedito Prezia, um pesquisador e palestrante de outro tempo, constatou que no século XVIII, no Vale do Paraíba, se fez o último registro de remanescentes dessa Nação Indígena, do grupo dos Tamoios, uma das nossas raízes caiçaras. Após os resultados com os tupinambás, o massacre pelo mar e terras tamoias, logo apareceu a burguesia portuguesa faminta pelos espólios. O Seo Filhinho, em Ubatuba Documentário nos informou:

                Sabe-se que nos primeiros anos do século XVII aqui já haviam inúmeros portugueses radicados, entre eles Inocêncio de Unhate, Miguel Gonçalves, o capitão Gonçalo Correa de Sá e seu irmão Martim de Sá, os filhos deste, Salvador Correa de Sá e Artur de Sá, além de Belchior Couqueiro e muito outros. [...] De Inocêncio de Unhate e Miguel Gonçalves, encontra-se registrado no Terceiro Livro de Registro de Sesmarias, existente no Arquivo da Tesouraria da antiga Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional em São Paulo, a petição e despacho do teor seguinte:

Inocêncio de Unhate e Miguel Gonçalves, que eles são moradores da Vila de Santos e haviam ajudado a defender a terra dos rebeldes franceses, holandeses e ingleses que a ela vieram e em todas estas guerras e rebates sem acudirem com suas pessoas, fazendas e armas e escravos, e nunca foram premiados por Sua Majestade, nem pelo Sr. Lopo de Sousa, os seus serviços e por não terem terras e por todas as terras do Brasil desde o Rio Juquiriquerê até a Ilha Grande estão devolutas, pediam-se-lhes desse três léguas, tanto de comprido como de largo na terra firme, na costa do mar, indo para o Rio de Janeiro e começarão a partir de um rio que se chama Marajahimirindiba [Maranduba] e irá correndo para a costa e correndo direto pelo rumo daquele até chegar a outro rio que se chama Hubatyba [Rio Grande ou da Barra, em Ubatuba] que está da dita costa para a banda do Rio de Janeiro, defronte da Ilha dos Porcos [Ilha Anchieta] sendo de três léguas de terra em quadra, com todas as suas entradas e saídas. – Despacho – Dou aos suplicantes as terras que pedem. Santos, 9 de Dezembro de 1610 (a) Gaspar Couqueiro – Capitão Mor da Vila de Santos.



domingo, 30 de agosto de 2020

VEM DO LADO DA BOCAINA


 
Vovô Armiro (Arquivo JRS)

Nuvens demais (Arquivo JRS)

                De vez em quando, na minha infância, assim como nos dias de hoje, o tempo virava de repente, ficava feio; uma escuridão parecia querer acabar com o dia. Em ocasião assim, vovô Armiro dizia: “Quem tá no mar, nessa hora vem desesperado para a praia.  Já escureceu tudo. É lá do lado da Bocaina [serra ao Norte] que a coisa vem. Hoje bem cedo já se armava  lá na Bocaina”. Nós, toda a netalhada, crianças ainda, silenciávamos. Alguém dos adultos acendia uma vela no oratório. Não tinha como não ficar com medo, apreensivo com algo ruim que se aproximava. Outro alerta que era feito por ele ocasionalmente era do vento de Sul: “O tempo virou, vem aí vento forte. Se cair forte mesmo, como é de costume, deita todo o nosso bananal que fica na divisa com o Dito Selidônio. Pouca coisa escapa de vento de Sul”.  

            Assim era a vida de quem dependia da roça e pesca: tinha de estar atento à natureza. Era costume sair de casa a cada amanhecer olhando para o céu, sentido o ar e botando reparo no comportamento dos passarinhos. Gerações e gerações precisaram desenvolver e  cultivar esse sentido (de percepção dos fenômenos da natureza). Por isso sabiam tanto das marés, dos ventos, das chuvas etc. Sabiam como  escolher a época melhor para derrubar árvores destinadas à construção de casas e canoas. Além disso tudo, os antigos caiçaras sentiam a necessidade de comentar seus sonhos, como se os outros pudessem ajudar a interpretá-los. Coisa comum era, na hora do café, bem cedo, cada um ter um sonho daquela noite para compartilhar em torno da mesa. Me lembro de um desses momentos, estando na cozinha com vovó Eugênia e vovô Armiro, escutei dela o seguinte: “Hoje ninguém deveria  ir pescar. Sabe por quê? É que eu sonhei com o Sol se escurecendo ao mesmo tempo que um vento forte chegou derrubando árvores no jundu. É uma tormenta medonha que vem chegando. É dia que não presta para sair no mar”. Prontamente o vovô deixou a mesa: “Vou agora mesmo dizer isso ao compadre Maneco Mesquita porque ele e a comadre Bertolina estão se preparando para ir na roça do Mar Virado, mas antes pensam curricar no Lage da Ponta”. E foi saindo todo afobado pelo caminho, entre os bananais. Não demorou muito para voltar e dizer que deu tempo e eles lhes deram ouvidos. E completou: “O seu sonho tá certo, Eugênia. Vem coisa feia por aí. Saia agora no terreiro e olhe lá para o lado da Bocaina e veja o cu preto que já  se forma. Hoje ninguém vai à roça e muito menos ao mar. Não tem precisão nenhuma disso”. E foi assim mesmo naquele dia! O mundo parecia querer se acabar naquele tempo distante. Duas grandes amendoeiras não aguentaram a força do vento, tombaram na praia. Tivemos muita madeira para gamelas e lenha para a próxima festa de São João, padroeiro da Fortaleza, a praia onde mamãe nasceu. É por isso que, ainda hoje, ao perceber o tempo se escurecendo, parece que vejo o vovô nos alertando acerca de tempo ruim do lado da Bocaina, chamando a atenção para o tal de “cu preto”.

sábado, 29 de agosto de 2020

É COISA ANTIGA, ESTAIS VENDO?

Prainha do Doca, entre as praias Dura e Vermelha (Arquivo JRS)



Herança dos antigos (Arquivo JRS)


                É costume meu, sobretudo quando estou nas minhas caminhadas, prestar mais atenção nas coisas. No meio do mato, então, reparo ainda mais em tudo! Tem detalhes interessantes nesses caminhos, nas trilhas deste chão caiçara, pelos lugares que ainda estão preservados dos invasores, das ocupações humanas. Tem ruínas de antigas fazendas, tem divisas de terras... É possível avistar árvores que imagino serem ainda do tempo dos tupinambás, grutas de pedras que podem ter vestígios da pré-história... Tenho certeza que essa nossa exuberante mata, com seus frutos, aves e animais, além de nos equilibrar, guardam remédios essenciais a serem descobertos.

                Quando eu me aventuro em caminhadas, sobretudo pelos caminhos de servidão, busco sinais de antigas ocupações, de cavas de casas e de árvores frutíferas. São os sinais mais evidentes de que outras gerações passaram por ali. E quase sempre me atenho ao chão, buscando restos de alguma coisa capaz de revelar algo mais.  Influências? Sim, quando crianças, ao ir com o meu pai cortar bambus na Prainha do Doca para a construção da nossa casa no morro da Fortaleza, me entusiasmei com o único morador dali. Ele nos levou mais para dentro da mata, de onde vinha um rio capaz de me encantar como todos os rios daquele tempo. Depois de um poço (onde o correr das águas, com o tempo formou um lugar fundo), ele nos conduziu a um espaço plano (uma cava no morro), com tijolos ainda inteiros e cacos de telhas. “É coisa antiga, estais vendo?”, esclareceu ele. “Algumas telhas lá de casa foram daqui. De vez em quando, quando preciso de tijolos, venho aqui buscar. Dentro do poço, ali embaixo, existe cacos interessantes, mostras do que possuía e fazia uso alguém que viveu aqui”. Meu pai também achou interessante tudo aquilo. Passamos aquele dia ali, cortando bambus, pois na semana seguinte o Getúlio, um caminhoneiro que buscava mensalmente as cargas de bananas nas praias (Brava e Fortaleza), distante uma légua dali, faria o favor de levar os bambus para o nosso trabalho, a nossa obra. No final, o pessoal terminaria a nossa nova moradia num animado pitirão.

                Daquela nossa casa não restou nada porque era pobre e outra lhe tomou o lugar. Somente uma mangueira plantada por papai deve estar ainda como sinal da nossa vivência naquele lugar, no morro da Fortaleza, onde começava a Badeja do Tio Custódio. Só posso dizer que, aquela fala do Doca, a sua empolgação para com os sinais na mata da sua prainha, me marcaram para sempre. Espaço de algumas das minhas heranças dos antigos. O que será agora de tudo aquilo?

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

CAIÇARAS PASSANDO

Eu e Nízio: frio de cobrir os braços (Arquivo JRS)


               “Não é esta a rua. É a outra que não tem uma coisa grande amarela como aquela ali. Nesta rua, tá vendo ali?, tem a casa da passarinhada ao lado de onde é o médico de vistas. O dono da casa põe  água com açúcar, banana, mamão e quirera; todo tipo de passarinho passa o dia inteiro num vai e vem. Vamos atravessar depressa para ver de perto”. “Nossa! As mariquitas parecem despencar no bebedouro e subir feito ondas! Olha no prato do lado, cheio de rolinhas, canários e outros que nem sei os nomes!”. “E ali,então! Sanhaços, tiés, bonitos e outros estão na festança!”. Eu tenho de concordar: é um banquete na beira da rua. As duas mulheres estão perfeitas na empolgação. Eu estou lendo perto delas, no portão ao lado, num banquinho improvisado. Seus olhos brilhavam, suas cabeças se moviam pra lá e pra cá, pra cima e pra baixo. Passaram tempo ali encantadas pelos passarinhos coloridos, na farra pela bebida e comida que gente bondosa oferece. Na verdade, parei no número 16 esperando Nísio, o purubano. Ele é o pedreiro da obra. "Serão salas para alugar", segundo ele. “O meu genro é o proprietário, está fazendo aos poucos, conforme o dinheiro deixa”.

                Nízio é do sertão do Puruba, mas vive na Estufa II há mais de quatro décadas. Conheço suas filhas desde que nasceram. É dançador de congada da mesma turma dos saudosos Dito Fernandes, Pedro Brandão, Anastácio, Decão e outros tantos empolgados da Congada de São Benedito do Sertão do Puruba, que desceu a serra por influência de Cunha, o município vizinho.

                De repente uma das mulheres diz: “Ai, vamos embora, Juraci. Temos que ir  para outro lugar. Logo escurece, mas lá só tem claridade”. Dei uma piscada e não vi mais as duas, mas reconheci  pelas costas o Élcio Salomão. Logo desapareceu também. Será que sonhei embalado pelos pios dos passarinhos? Me dei conta que as duas de antes eram Cida e Juraci, primas que nos deixaram. Agora, acabou passando o Élcio, outro caiçara do tempo do papai, de um falar contagiante, especulador de fatos e contador de histórias, sobretudo do nosso lugar, pois nasceu na prainha, logo depois da boca-da-barra da Maranduba, bem dizer aos pés do Morro do Cemitério. Na minha infância, ele era mascate, andava negociando por todos os lugares daqui. Andava muito e conhecia muita gente. Sempre foi muito bem acolhido lá em casa. Não sabia o que fazer a mais para nos acolher bem na sua moradia, ali, na rua detrás do “Tubão”. Terminou o seu tempo como corretor de imóveis. Devo muito ao Èlcio pelas boas prosas. A certeza é que todos vamos passando. Somente as memórias poderão permanecer.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

TEMPO DE CULTIVAR COM ALEGRIA









Mestres caiçaras na Barra Seca (ArquivoJRS)


Roda de alegria (Arquivo JRS)



Mestre Neco (Arquivo JRS)


           Certa vez, apreciando o Mestre Neco, numa conversa no Museu Caiçara, pensei sobre o tempo, o espaço e o nosso lugar. “Eu também trabalhei em bananais aqui. No Morro da Pipoca, no pé-da-serra, por um bom período, a japonês Kikuti teve essa ideia de cultivar bananas. Era eu e mais cinco ou seis camaradas naquele fundão de mato. Parece até que foi ontem”. Pensei sobre o tempo e rapidez de tudo olhando as peças dali, de outros tempos. A construção de pau-a-pique, de outros tempos. O piso de tijolo feito por mim em outro tempo também está lá, assim como fogão e o forno de fazer farinha. Tudo aprendido da geração anterior.

O Neco e sua sabedoria de uma geração anterior à minha, que precisou também deixar o nosso lugar e ir trabalhar embarcado, na pescaria profissional. Neco que aprendeu a arte de fazer canoas, remos... de dar conta de roçado. Neco que tanto valoriza o ser festivo, cantador e tocador que o tempo de hoje parece querer sufocar. Neco que desnuda as engrenagens que mastigam o nosso lugar e o nosso ser pouco a pouco. Ele e tantas outras pessoas, essa caiçarada da mesma raiz que eu, a dizer que “os tempos são outros”. Neco que revela nas suas atividades, nas presenças em nossos eventos, que é preciso resistir às forças contrárias ao nosso ser caiçara. Neco, Jorge, Tia Baía, Dona Mocinha, Tio Dico, Altino e tanta gente mais são nossos faróis na cerração que deseja reduzir toda a nossa riqueza ao tempo mecânico, onde apenas o lucro de pouquíssimos importa. Ideologia cruel,  que destrói gente e natureza sem se importar com nada.  Acorda, caiçarada!

Olhando as ferramentas do nosso significativo museu, me recordo do ritmo do trabalho de outros tempos, marcado pelas forças da natureza, pelo calendário das festas, pelos pitirões, pelas chegadas dos cardumes... A nossa vida era ajustada conforme os ponteiros do Sol, da Lua, dos passarinhos se aninhando, dos animais em seus ciclos, das revoadas das içás, das correrias de gambás gordas e de tantas outras referências.  Bem citou o estudioso Peter, da praia da Enseada: “Os tempos sociais e da natureza interagem na construção do espaço geográfico, deixando para nós a difícil tarefa de interpretá-los”. Isso mesmo!

É preciso refletir prestando atenção a cada cantoria do nosso povo. Reparando bem. Nas letras estão partes importantes da nossa vida social (desde as relações com a natureza até os valores que reforçam a cultura caiçara). A grande lição deste conjunto (músicos, compositores, dançadores, fazedores de instrumentos etc.) é: um caminho prazeroso é um bom caminho a ser seguido, capaz de sustentar a nossa identidade surgida ao longo dos séculos. Ela (cantoria) é dinâmica e dá vida! Ela é ferramenta capaz de relegar outras a serem apenas peças de museu! A alegria é uma força incrível, que merece ser cultivada cada vez mais!
               

domingo, 16 de agosto de 2020

MÊS DE CACHORRO LOUCO


Dona Aládia e uma neta (Arquivo JRS)

                Dona Laurentina, caiçara da praia da Fortaleza, nos criou conforme foi criada. Ao chegar o mês de agosto, ele constantemente nos alertava para evitar os cachorros, sobretudo quando estivessem em ajuntamento, no cio. “Eles ficam com raiva, mordem e podem estar loucos. Passem longe da cachorrada”. A gente, de tanto escutar, ficava atento, sempre cismado com os cães do lugar, mas nunca soubemos de alguém, nas proximidades, que houvesse passado pela situação alarmada nessa época. Naquele tempo não tinha vacinação aos bichos. As poucas disponíveis ao longo do ano eram para as crianças.

                Mamãe dizia que eram os morcegos que deixavam os cachorros loucos, que transmitiam a doença. Onde morávamos, era comum os ataques de morcegos. Eles chupavam o sangue da criação (galinha, pato, porco...), mas também chupavam sangue humano. As casas não eram forradas; eles sempre descobriam brechas para adentrar na madrugada e atacar. Geralmente era no dedão do pé o ponto de sugamento do nosso precioso sangue. Ninguém sentia, pois eles têm uma espécie de anestésico local. Somente no dia seguinte, vendo o sangue seco, a pessoa sabia que tinha sido vítima de morcego. Papai, uma das vítima deles, nos contou como foi. Na nossa casa nunca apareceu desses morcegos. Acho que eles se contentavam com os bichos que criávamos. Dava dó ver o galo com crista ensanguentada. De vez em quando alguém tinha um bicho de estimação morto de tanto ser sugado. Apenas os morcegos que gostavam de frutas se esbaldavam na nossa moradia. O motivo? Era porque havia um canto reservado para os cachos de banana que iam amadurecendo para o nosso uso diário. Eles não eram nossa preocupação porque só iam nas frutas. Dormíamos sem que seus voos, chiados e silvos nos atrapalhassem.

                Muito tempo depois da minha infância, em mês assim, de agosto, me acomodei num banquinho na calçada, com a dona Aládia, do seo Nhô, na Estufa. A mãe dela, gente dos Amorim, era prima da vovó Martinha. Na prosa veio o mesmo cuidado da mamãe: “Você que é muito andejo, vai por aí tudo, não se descuide porque estamos no mês de cachorro louco”. Quando eu falei que não me preocupava mais com isso pelo motivo de nunca ver um caso sequer de alguém atacado pela loucura dos cachorros, ela deu esta informação: “Ah é?!? Peça para a vossa avó contar do tio Jango, do Ingá. Ele morreu no mato, depois de matar o próprio cachorro. Sentiu que a loucura também atacava ele, mas não queria arriscar a vida da família, causar sofrimento. Preferiu ir longe. Foi achado numa grota, com a boca cheia de espuma, já fedendo. Coitado dele”.


               Até hoje, tio Jango foi o único caso (que fiquei sabendo) de loucura transmitida por cachorro. Então, na tradição da saudosa mamãe, da dona Aládia e de tantas outras, recomendo: cuidado com o mês de cachorro louco!

terça-feira, 11 de agosto de 2020

MÃES DA PESCARIA

Mamãe em Santos (Arquivo JRS)


Luzita e Gertrudes (Arquivo JRS)

O poeta do alto do morro do Cambury, Santiago Bernardes, na poesia abaixo, consegue dizer umas particularidades especiais das mulheres caiçaras, principalmente daquelas que viviam e ainda vivem no regime da pesca. Nós teríamos que passar muito tempo buscando as melhores palavras que ele apresenta em instantes de inspiração. Salve a arte que nos permite enfrentar as verdades! Grande Santiago!



Nas madrugadas de vento grande e de grandes ventos, 

as mulheres é que sabiam mais do mar do que os homens, 
menos apenas do que os peixes.


Elas sabiam costurar os caminhos na água para os barcos voltarem. 

Com palavras e silêncios, 
elas sabiam convencer as ondas a parar. 

Sabiam que as águas têm sede de almas às vezes e pelas almas dos 
filhos ofereciam as delas no lugar”. 

(O Livro do Mar – Santiago Bernardes)