domingo, 6 de setembro de 2020

CANTO DO CAMBIÁ

Concha de cambiá (Arquivo JRS)

Canoa Cambiá (Xilogravura - Arquivo JRS)

             
          Eu sigo escrevendo e me alegrando com os amigos produzindo suas páginas a nos permitirem viajar, sonhar, alegrar e admirar pelas suas memórias e imaginações. Jorge Ivam ontem me avisou do lançamento de seu mais recente livro - Ser silvestre. Estou ansioso para ler mais uma joia pura desse talentoso professor que escolheu Ubatuba para criar a família. Viva a Bahia de Todos os Santos e  de tanta gente talentosa! Ao meu amigo sempre bem inspirado: parabéns!

                Interessante as forças da fantasia e da memória; parece que uma vive emprestando palavras à outra constantemente. Falando e registrando tudo vamos passando culturas, histórias e sentimentos. Agora, em tempo de reclusão devido à pandemia, nossas prosas vestem novas roupagens. Viva todo mundo que segue deixando suas marcas pelos textos e pelas imagens!

                O que escrevo agora está relacionado a um molusco: o cambiá. É um molusco muito apreciado na cultura caiçara, mas tem gerações mais novas que não sei dizer se conhecem esse ingrediente da nossa culinária. Mamãe nos preparava fartas porções de cambiás na quentura branda da lenha. Geralmente eles aparecem na praia em maré vazante ou após uma forte ressaca, quando não resistem às correntezas insistindo em rolá-los até o lagamar. O amigo Rogério Estevenel, caiçara da praia das Toninhas, escreveu que lá aparecia muito mesmo. Que bom! Os cambiás, para o meu povo, fazem parte das tantas dádivas do mar.

                Cambiá também é o canto direito da praia da Fortaleza, chão do meu lado materno, onde passei parte da minha infância. Lá, na Costeira do Cambiá, ficava o Buraco da Cobra. (Precisa recordar? Busca no índice do coisasdecaicara.blogspot.com O buraco da cobra, publicado em 08/03/2011). Também no Canto do Cambiá morava o Tio Onofre. Então, Canto do Tio Onofre era o jundu e Canto do Cambiá era o extremo da praia, na costeira. Foi na sua sala, segundo a sua filha Maria Mesquita, nossa querida titia, que funcionou a primeiro espaço de aula daquele lugar. “Papai cedeu parte da nossa pobre casa para as crianças aprenderem. A professora vinha da cidade e ficava morando com a gente, lá em casa mesmo. Era na nossa sala que ela ensinava”. Mais tarde a propriedade foi vendida para um turista, mudando o modo de chamar para Canto do Pierre. Eu me lembro bem de uns gansos bravos dele que sempre cismavam em correr atrás de nós na praia. Ai que raiva!

Acabou a escola, não teve mais aula? Não! A tia Martinha em seguida cedeu a sua casa no pé do morro, próximo da casa do vovô Armiro para a criançada continuar aprendendo. Foi ali a minha primeira experiência escolar. Bem cedo eu e minha irmã descíamos da nossa casa no morro molhando as canelas no orvalho do capim para aprender a escrever, ler e fazer contas, começo desta epopeia que eu seguirei até a morte, quando a gente deixa de aprender. Só em meados da década de 1970 a prefeitura construiu um prédio, para ser, de fato, a escola do bairro, no local onde ficava o Bananal do Sul, ponto do começo da subida do caminho em direção à a praia Grande do Bonete, nas posses da vovó Eugênia, herança do finado João Bento. Até hoje funciona lá a escola e o posto de saúde.





3 comentários:

  1. Lindo o seu testemunho.
    Ele tem uma importância fundamental no registro da história de nossa gente. Povo que não preserva o passado, não tem como construir deu futuro.
    Parabéns.

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    1. Gratidão pelo comentário. É a grande verdade! As memórias são nossas raízes, o que nos sustentam, dão as razões para nossas lutas e nossas alegrias. Um abraço.

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  2. Obrigado, meu amigo Zé Ronaldo! Eu ainda não tinha lido.

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