sábado, 19 de setembro de 2020

SE NÃO HOUVER CHIFRE EM CASA

 

Coentro, hortelã, cebolinha...Nosso espaço (Arquivo JRS)


       De onde vem todo esse conhecimento de mato, de ervas, que a cultura caiçara tem? "Tem mato para tudo", diziam os mais antigos. "É sabedoria dos caiporas, dos pretos e da portuguesada". Assim como antigamente, as mulheres continuam à frente nesta particularidade de conhecer os matos e as suas funções na culinária e como medicamento. Em toda a minha vida eu conheci várias benzedeiras caiçaras, mas apenas um benzedor: o Velho Mariano, do Ubatumirim, que veio findar seus dias no bairro da Estufa. Após o ritual deles e as rezas, ninguém deixava o lugar sem levar uma braçada de mato para fazer remédio. A cura se completava assim

             Nossos quintais eram repletos desses matos, dessas plantas que não podiam faltar porque sempre havia precisão para usar na comida, fazer um chá, um emplasto etc. Quase sempre um cercado de bambu (ou de aproveitamento de pano de rede velha) protegia nossas ervas, sobretudo das galinhas ciscadeiras. Era o espaço das hortelãs (gordo e de bicha), dos coentros (miúdo e do mato) , da alfavaca, da melissa, do capim cidrão, do poejo, do guaco, da cidreira, do alecrim, do favacão, da arruda, do manjericão... Entre elas, ocupando o mesmo espaço se via couve, cebolinha, tomate, pimenta, salsa e por aí vai. Entre as flores do terreiro e pelos caminhos também abundavam dessas plantas que nasciam levadas pelo vento, por bichos e por nós também. Era comum avistar alguém fincando galhos ou jogando sementes nos locais das nossas andanças. E tinha toda aquela riqueza de plantas que abundavam na capoeira, depois do cisqueiro. A gente, a bem dizer, tropeçava em caninha do brejo, pariparoba, urtiga, aperta ruão, malícia, sete sangria, quebra pedra, gervão, melãozinho, prumera, boldo de todo tipo, erva baleeira, ervas diversas (cavalinha, de bicho, de São João, de Santa Luzia etc.).

               Nunca podia faltar algumas folhas de alfavaca no preparo de qualquer espécie de cação. Na carne de galinha, o sabor que realçava era do hortelã gordo. Coentro do mato entrava em quase todos os tipos de peixes que fossem cozinhados. "Zezinho, vá lá fora e me traga três folhas de coentro. Escolha das maiores". Assim, a partir da mãe, das avós e com tanta gente mais, fomos aprendendo disso tudo. De vez em quando se escutava frases do tipo: "Comadre, tendes aí hortelã, daquela de bicha [lombriga]? É que tenho reparado no Tãozinho que se encontra muito aíbo, empalamado. É só bater a vista que se nota. Deve ser ataque de bicha. Na semana que começa amanhã, irei preparar chá de hortelã com pó de chifre para ele beber de tarde". E por que tinha de ser na parte da tarde? Vovó Martinha me explicou: "É que, depois de atacar a comida do almoço, as bichas ficam desesperadas de sede, dando até coxa nas tripas. Só que, em vez de água, quem conhece faz elas tomarem chá de hortelã nas fuças. Se tiver fervido com um punhado de chifre torrado aí que resolve mesmo! Pode ser usado sementes de mamão moído se não houver chifre em casa e nem na vizinhança".

                    Talvez por tudo isso, eu, assim que me levanto a cada manhã, dou uma volta no quintal para apreciar as nossas ervas, o nosso mato. "Um pedaço da Mata Atlântica no terreno", conforme o dizer da mana Ana.

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