quarta-feira, 9 de setembro de 2020

DESAFIOS DAS LETRAS

Sinéia, professora caiçara boa de prosa (Arquivo JRS)


                Vovó Martinha, nascida na praia do Pulso, se queixava sempre por não ter aprendido a ler. “No meu tempo de criança não havia escola. Bem depois, quando as crianças foram nascendo é que, onde morava o Chico Romão, na boca-da-barra [rio Maranduba], começou a ter ensino. Um professor vinha da cidade [centro] e passava a semana toda, ficava hospedado com uma família dali mesmo”. Mais tarde, quando tinha quase todos os filhos casados, a vovó resolveu frequentar o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Era tempo dos governos militares (1964 a 1985). No serão, com um caderno e um lápis na sacola, ela se dirigia ao miolo do bairro (Sapê), à casa da dona Maria Balio, uma guerreira do nosso povo. Era lá que as aulas aconteciam. Ela aprendeu as letras, soletrava cada uma delas com segurança, mas não alcançou aquele ponto mágico de uni-las e ter o significado completo. Não persistiu, deixou o curso. “Porque eu me cansava demais depois de um dia todo na labuta”. Outro caso para entender os desafios das letras é o depoimento do Antônio Alexandre, da praia do Puruba. Está em Os caiçaras contam:

                “Aprendi a escrever na terra. Tinha 18 anos. Pegava um pedaço de jornal e perguntava pra quem soubesse: Que letra é essa? A pessoa dizia e eu escrevia no chão. Daí em diante escrevi largamente. Escrevi de tudo. Fazia aquela garrancharia e depois arrumava. Rapaz!, o que eu mais gostava de fazer era estudar, mas aqui não tinha escola... Três meses de estudo pra mim teria sido como 200 anos!”.

                Vovó Martinha e Antônio do Puruba: dois saudosos caiçaras apenas para ficar como exemplos. A prosa boa deles me faz falta. Escutei-os bastante, mas gostaria de ter registrado tantas coisas a mais deles... Quantas boas histórias, quantas prosas prazerosas se foram, continuam se apagando, sem se tornarem letras arrumadas, sem se arranjarem em textos para deleites hoje e nas gerações vindouras?

                Para finalizar: Maria Balio era tia do Antônio. Era a "Tia Mariazinha" de quase todos que habitam em torno da capela da praia (Puruba). Nasceu bem ali, na praia da Justa, no norte do município, mas acompanhou o pai, funcionário do telégrafo, ao Sapê, no sul, onde viveu até os últimos dias de vida. Era mulher de encarar enormes desafios e de vencê-los.

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