terça-feira, 17 de abril de 2018

LUGAR CAIÇARA: SACO DO SOMBRIO


             
Preparando o moinho de cana (Arquivo Rê)

Embarque e desembarque nas pedras (Arquivo Rê)

       
        Se muitos dos meus irmãos não conhecem sequer as praias de Ubatuba, imagine um lugar distante como o Saco do Sombrio, na Ilhabela! Para chegar lá é preciso enfrentar o mar. Fica bem depois da praia dos Castelhanos. Na primeira vez, a viagem, de canoa movida a motor, durou duas horas e meia. 

                Eu conheci os caiçaras do Sombrio há vinte e cinco anos, quando a amiga Regina foi professora na escola isolada local. Dessa época vem a minha amizade com Vera e Pedro, outrora professores na ilha dos Búzios, parte  do mesmo arquipélago. Para desembarcar lá era uma manobra que exigia agilidade e pernas boas: uma estiva de paus roliços se espalhava sobre a costeira, por onde subiam as pessoas, as mercadorias e as canoas para serem guardadas nos ranchos. Assim se repetiam os embarques e desembarques na Serraria,  Búzios e Vitória, outras ilhas vizinhas onde ainda temos parentes.

                Naquele tempo, as roças dos moradores chegavam até na costeira, ou seja, o morro próximo era bem cultivado. Informo que nenhuma área era plana. Foi o primeiro lugar que não encontrei ninguém mais rechonchudo, aparentando ter algum peso a mais. Justificativa: a alimentação era constituída pelo pão nosso de cada dia básico (peixe, farinha, feijão, arroz...) e  todos  eram obrigados a um exercício contínuo. Era subir ou descer morro sempre, não tinha como escapar! Desde as criancinhas até os idosos: todo mundo driblava as pedras, as partes escorregadias, escolhia os melhores lugares para galgar os caminhos que se teciam na encosta, entre as dez casas que ali existiam. Eles corriam tanto no dia como na noite. Enxergavam que era uma beleza!

                Os caiçaras do Sombrio, simpáticos e acolhedores, viviam numa humildade impressionante, tal como quase todos os ubatubanos há cinquenta anos. Tinham suas roças de mandioca, feijão, milho e cana. Cultivavam bananeiras, extraiam palmitos e cocos. Faziam canoas.

                Não tem como se esquecer da gostosa farinha de mandioca do Seo Pedro e do Alessandro. E o melaço apurado pelo Élcio? Que delícia! Foi lá que eu aprendi a fazer uma espécie de caipirinha, mas com folhas de limoeiro. Também foi onde vi o uso de uma pasta de óleo e farinha para curar ferida “arruinada”.

                Para aumentar a diversão, cortaram um pedaço do morro e fizeram um campinho onde jogavam futebol. Era um chão cascalhento, num espaço reduzido, com uma pedra no meio. Canelas se encontrando, “soltando faíscas”, era coisa comum. Ruim era correr morro abaixo atrás da bola. Para quem não estava acostumado, era um sofrimento essa diversão. Outra atividade muito aguardada era o baile na casa da dona Vinina, que ficava logo acima da costeira de embarque  e desembarque. Não sei de onde aparecia uma vitrola alimentada por pilhas e vários discos de forró. Todos se produziam como se fosse uma noite de gala. Tinha gente comedida, mas as assanhadas também eram evidentes. Não existia salão para competir com aquele espaço embarreado de 4 X 4. O suor descia em bicas direto para o chão de barro socado. Era um mundo que não se afastava muito da faina do mar, das necessidades do eito e dos prazeres da carne.
                A escola era um lugar especial. Ainda hoje, quando vejo o álbum da Regina, através dos desenhos e textos da caiçaradinha, viajo no tempo e nos sonhos. Terrível é o modelo econômico que continua matando essas expressões de vivências tão simples, essas particularidades culturais tão específicas, esses lugares de caiçaras tão queridos. É assim que o mundo vai ficando mais sombrio.


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