sábado, 22 de janeiro de 2022

TERREIRO DO TIO TOTÔ

A menina e a flor - Arte: Estevan


    Tio Biduca era contador de histórias. (Mais um da minha infância). Tinha a preferência por falar do tempo em que trabalhou nos bananais em Santos, das viagens nos barcos de cabotagem que circulavam entre Ubatuba e a Baixada Santista até metade do  século XX. De vez em quando me vem à memória aquelas rodas de conversas, aquele pessoal que se reunia no terreiro do Tio Totô; me recordo de nomes, de fatos trazidos e comentados naqueles momentos. Conforme a história, eu olhava e apurava mais a audição para escutar os assuntos dos mais velhos, mas sem deixar de brincar no espaço que eu adorava. A nossa casa, mais tarde vendida ao Tio Antônio do Prado, era circundada pelas demais: Livina/ Leôncio, Andrelino/ Jorgina, Ana/ Dioclécio, João Paulo e Ana... Entre ela passava o caminho que seguia até o Sertão da Quina. Tudo na Praia do Sapê.

    "Quase arrumei uma noiva na penúltima vinda para cá". Era a vez de todo mundo prestar atenção no Tio Biduca. "Catarina era a 'mocinha da proa' do 'Ubatuba-Santos', do Mestre Luiz Camilo. Diziam que era filha dele  que estivera na Santa Casa de Santos em tratamento médico. Creio que foi tudo bem; parecia feliz segurando uma flor, de vestido roxo e com uma tiara, um arco na cabeça. Sempre estava na proa olhando as paisagens, as gaivotas e atobás. Sorria para toda gente da embarcação. Vim saber que que o mestre Luiz era filho do fazendeiro Camilo Lellis Vieira, dono da Fazenda Jundiaquara, no Itaguá. É herdeiro do francês Camille Jam. Disseram que, no alto do morro, eles têm uma casa grande, branca, que se vê de longe. Não produzem mais café para fora porque as terras estão cansadas, mas seguem fazendo cachaça, mesmo que as vendas tenham diminuído muito. Agora, eu não entendo uma coisa dessa: como um filho de fazendeiro foi se tornar mestre de barco?". 
  
      Tio Totô entrou nessa parte: "Eu entendo. Os filhos agora vivem outro tempo, os desafios são outros. Passou a fase das importantes fazendas. No caso presente, um foi ser mestre de barco, o  irmão dele, o Vivi [Leovigildo Dias Vieira], tá correndo atrás de novos negócios, a irmã Astrogilda  agora é funcionária da Prefeitura...e por aí vai. Essa gente, assim como nós, precisa se adaptar. Nós menos, né? Afinal, sempre fomos pobres, vivemos da roça e do mar. Deve ser bem mais difícil para quem foi se empobrecendo no decorrer da história. Eu admiro muito a ousadia, a coragem do Mestre Luiz Camilo. Já fiz viagem com ele no comando e vi o quanto é corajoso e conhecedor do mar e da arte de navegar. Eu presenciei ele lendo na cabine, estudando aqueles mapas feitos pelos ingleses. Eu admiro gente assim, passa mais confiança a todo mundo. Na primeira oportunidade que aparecer pela frente, vocês não acham que o Biduca deve ter mais coragem, deixar de ser medroso e falar com a moça?". Todos riram a valer.

    Comecei esta história após permanecer um tempo na Avenida Leovigildo Dias Vieira, no Itaguá, bem rente ao Rancho dos Pescadores, onde meu saudoso pai, Leovigildo Félix dos Santos,  passou seus últimos dias de pescador e de carpinteiro.  Ali, onde todos eram seus amigos,  ele reparou várias embarcações. A manhã estava radiante.

Em tempo: o nome do meu pai foi em homenagem ao Vivi. Parece que era muito estimado pelos caiçaras mais velhos.

     

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