segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

UM PASSINHO NA PRAÇA

Ponto de ônibus em Taubaté- Arquivo JRS 


    Há poucos dias, no centro da cidade que já se enfeitava para o Natal, eu pedalava de um ponto a outro resolvendo umas papeladas para a aposentadoria, depois de mais de quarenta anos contribuindo, sendo descontado no meu salário. (No final, muita gente já sentiu na própria carne, pois as coisas emperram sempre contra o trabalhador). Notei que várias ruas estavam em reforma, recebendo melhorias na pavimentação. Atravessei a praça bem arborizada e procurei um banco para descansar um pouco. Parece que quem administra a cidade não quer cumprir o principal de uma praça: ter bancos para os transeuntes. Enfim, me acomodei ao lado de um andarilho. Foi dele que escutei esta história:

    “Sabe, senhor, eu nasci aqui mesmo, numa rua ali de cima, quase na beira do rio, mas andei muito mundo afora, vivendo do meu artesanato ou fazendo uns bicos. Um pouco de tudo sei fazer, mas nunca roubei. Em muitos momentos foi a caridade das pessoas que me acudiram”. Eu me esqueci de tudo que ainda tinha pensado em fazer, inclusive tomar um café com a mana Ana Maria, para me inteirar mais na prosa daquele homem que deveria ter uns vinte anos a menos do que eu. “Anderson é o meu nome, devo continuar perambulando pelo mundo depois da temporada. Eu estava oferecendo meus produtos na avenida, mas a polícia me enxotou de lá, até uns tabefes me deram”. Fique triste, revoltado com tamanha covardia e maldade contra pobres. Com ricos essa gente não age assim. "Bem aventurados os pobres" já disse alguém, né?

   Muito marcante foi quando Anderson, viajante de tantos lugares, entrou num detalhe marcante da vida dele: “A minha família era muito religiosa, católica. Na adolescência, ali naquela esquina, numa procissão da semana santa, numa espécie de altar que mamãe chamava de ‘passinho’, uma senhora negra, cujo nome era Lígia, usando um véu escuro, representava o papel de Verônica, a devota que enxugou o rosto ensanguentado e suado de Jesus. Ela cantava em latim, eu acho, depois beijava o Nosso Senhor. Acho que era a procissão do enterro, os passos da vida de Cristo que seguia depois até a igreja matriz, na outra praça logo ali. Todo mundo levava velas acesas; íamos em duas filas pelas ruas”. Agora vem o melhor da nossa prosa:

    "O senhor sabe quem me ofereceu uma marmita ontem? Só a reconheci porque quem a acompanhava disse o seu nome: ‘Não vamos demorar, Lígia. Ainda tem mais gente nos esperando’. “Que emocionante foi rever a dona Lígia, receber pelas suas mãos aquele alimento! Pessoas assim não são gente, são anjos!”.

   Confesso que fiquei emocionado. Pensei na Lígia, no padre Júlio Lancellotti e em tantas outras pessoas que continuam enxugando rostos suados e ensanguentados pelo sistema individualista/egoísta que embala a sociedade. Já era serão quando me despedi: “Tenha um bom Natal, Anderson. Estou muito agradecido pela prosa desta tarde. A gente se vê de novo, logo logo”.

 

 

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