sábado, 22 de dezembro de 2018

RASTROS DE ARTISTA

Rastros de um (a) artista (Arquivo JRS)


               José Cirineu Coelho, pintor de placas do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), na década de 1970, fazia a nossa alegria ao pintar lindas paisagens em azulejos, tampas de latas, madeiras, paredes etc.

               Meu pai (apelidado de Carpinteiro) e Cirineu eram amigos de bar, de prosas e de farras. Por isso, sempre éramos presenteados com alguma arte do pintor que se dizia natural da cidade de Santos. Ao receber elogios, assim agradecia: “Gostei das suas bonitas palavras, mas precisa ver os quadros da minha esposa. Ela é japonesa e pinta muito bem!”.

               Um dia, ao saber que o padre passava de vez em quando lá em casa, Cirineu prometeu pintar um quadro da Santa Ceia, onde Jesus fazia uma refeição com os seus apóstolos.  Foi quando contou a seguinte parte que me deixou encabulado:

               “O time de Jesus era meio capenga, teve até um traidor, mas na imagem, na mesa devidamente preparada, eles se comportaram direitinho. Só não apareceu o Benedito e Mirashima”.

               Aí, meu pai que já estava indo além da conta no conhaque, refutou:

               “Alguma coisa tá errada, Cirineu. Se entrar mais dois, fica quatorze. Está escrito que eram doze apóstolos, não é mesmo? Ou tô errado?”

               Então o pintor continuou:

               “Você sabe, Carpinteiro, nem tudo se deu conforme está escrito. Na Bíblia está registrado doze porque é um número simbólico. Representa desde o tempo mais antigo o ponto máximo do Sol, que ocorre apenas duas vezes por ano. Por isso que o doze foi escolhido. Não vê que o ano também é dividido  em doze? Quem faz a escritura entende mais coisas que nós, sabe que é importante usar símbolos fortes. Quem me contou isso foi o Toninho Preto, lá na barraca do Tião Caçuroba, numa partida de truco. Ele sabe de muita coisa. Então... essa história não é da minha cabeça! Ele me explicou que Benedito, preto como ele, era o cozinheiro, estava direto no lida com as panelas, não tinha tempo para ficar fazendo pose. O outro, que andava sempre mirando a sua máquina fotográfica em cima de tudo que envolvia Jesus, tinha os olhos puxados. Isso! Mirashima era um japonês! Entendeu agora porque ele também não estava na cena, em volta da mesa? É graças ao talento para fotografar tudo desse povo que nós temos a linda imagem da Santa Ceia! Diga ao padre Pio que eu vou caprichar num quadro pra ele. Só que eu vou acrescentar os dois que ficaram de fora. Acho muita sacanagem não corrigir isso depois de tanto tempo. Se há erro, vamos acertar, né?”. E concluiu se dirigindo ao papai: “Tô certo ou não tô certo, Carpinteiro?”.

               Estou rindo agora da criatividade dessa genteEu me lembrei dessa história depois de achar, num local abandonada, num resto de parede, imagens deixadas, rastros de um (a) artista. Será que, em algum lugar, alguém tem guardado alguma das obras do Cirineu? 


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