domingo, 20 de janeiro de 2019

PREFÁCIO (II)

O remo voa na chegada (Arquivo JRS)


               Após ter chegado da Festa de São Sebastião, na praia Grande do Bonete, retomo o prefácio de Dalmo Dallari:

               Outro aspecto muito interessante da cultura caiçara, registrada por Priscila Siqueira [Genocídio dos caiçaras – 1984], é a religiosidade, que se manifesta de modo ingênuo e alegre, através de festanças, com muito colorido e muita dança, havendo ainda os últimos sinais da congada, com seus reis e guerreiros.
               Curiosamente, conforme o testemunho da autora, o rádio de pilha penetrou nesse ambiente e colocou o caiçara em contato permanente com o resto do mundo, praticamente sem agredir seus valores e tradições. Esse dado é muito interessante, pois revela a possiblidade de divulgação de informações mesmo onde é elevado o número de analfabetos e sem provocar deformações culturais.
               Mas a vida simples e feliz do caiçara parece destinada a um breve desaparecimento. É o que nos revela este livro-denúncia. A gente caiçara, que por séculos teve o mar como via de acesso quase única, encontrando nisso um fator de proteção, não conseguiu resistir aos “piratas” vindos da terra.
               Favorecido pelos governos militares que infelicitaram o Brasil nos últimos anos, chegaram os aventureiros de várias espécies. A simulação de um “milagre econômico”, que foi uma das muitas imoralidades impostas ao Brasil pelos governos militares, foi pretexto para grandes investimentos públicos e para os pseudorrevolucionários se valessem de informações confidenciais e do poder arbitrário para ganhar dinheiro na esteira desses investimentos. A estrada Rio-Santos, embora prevista antes desse período, entrou de cambulhada nesse processo desenvolvimentista.
               Políticos sem escrúpulos, especuladores imobiliários, empresas multinacionais e pessoas ricas à procura de “paraísos” para recreação descobriram o Litoral Norte e Sul fluminense. Foi o começo do genocídio (morte física), acompanhado de etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e de agrupamentos de índios guaranis existentes na região. Com precisão e coragem Priscila Siqueira relata neste livro o que tem sido esse processo, contando “o milagre e o santo”, na antiga expressão brasileira, descrevendo agressões e identificando agressores. Dasapossamento de terras, ações de jagunços, fechamento de praias e estradas, poluição, prostituição de meninas, tudo isso faz parte de um ritual da “civilização” a essa região.
               Este é um  livro-testemunho, um grito de alerta e também um repositório de dados para etnólogos, antropólogos e outros estudiosos das sociedades humanas. Se nada for feito para deter a voracidade dos invasores, se não houver ouvidos que ouçam, olhos que vejam e vontade de decidir a favor da pessoa humana, restará o registro de que um dia, numa região de praias, florestas e montanhas, existiu um povo caiçara, companheiro da terra e do mar, simples, ingênuo e feliz.


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