quinta-feira, 16 de setembro de 2021

VOSSA COMIDA ESTÁ CHEGANDO!

 

Tio Dito, mana Ana e eu (Arquivo JRS)

      Tempo chuvoso. Da cozinha, minha esposa deixa escapar um aroma avisando que a comida está quase pronta. Penso em meus tios e naqueles que já se foram, relembro suas rotinas lá atrás, quando ficavam em casa fazendo artes por ali, pois não iam pescar e nem podiam fazer algum serviço na roça. Somente quem se encontrava na construção civil, com obras cobertas e acabamentos por fazer, se arriscava em deslocamentos maiores.

      Nos balaios e em gamelas havia peixes a garantirem períodos assim. Farinha de mandioca, essa cultura herdada dos indígenas, também não faltava nunca. Por volta das casas, nos cisqueiros, taiaiaoba (taioba), cará, batata doce, pequenos eitos de feijão, mandioca de cozinhar e árvores frutíferas. Não longe dali, no rio de serventia, piabas abundavam. Por volta de setembro/outubro aconteciam as revoadas de içás. Quem nunca comeu uma farofada delas?

       Voltemos à mandioca. Na carta de Anchieta, datada de 1565, nada consta dela. Decerto ele nem reparou, preferiu jejuar para não se contagiar com as comidas pagãs. Mas que viu viu! Já Hans Staden, prisioneiro uns dez ou doze anos antes, escreveu:

       "Partimos na manhã seguinte, vogamos o dia inteiro. Às ave-marias chegamos à taba, depois de três dias de viagem. Devia distar da Bertioga umas trinta milhas, chamava-se Ubatuba e compunha-se de sete casas. Entramos por uma praia perto da qual estavam as mulheres lidando numa plantação de mandioca. Ao defrontá-las, fui obrigado a gritar na língua deles:  -  Vossa comida está chegando!".

    Imagine o cagaço do alemão! Huuuummm...carne com mandioca: que fim para o coitado! Mas, continua o texto: 

      "As mulheres me conduziram, umas adiante, outras atrás, entoando os cantos que usam quando vão devorar algum prisioneiro. E assim me levaram até à caiçara, isto é, à estacada de grossas achas de madeira que lhes cerca a taba. Quando entrei, acudiram outras mulheres ao meu encontro, deram-me bofetadas e arrancaram-me punhados da barba, exclamando: - Che anama pipike aê!, o que quer dizer: Vingo-me em ti do que os teus fizeram conosco!".

      Pois é! E pensar que, agora, os descendentes diretos dessas etnias, cuja herança cultural tanto ainda nos acodem, estão correndo o risco de verem aprovada a lei do Marco Temporal, cujo mérito é tirar-lhes ainda mais das suas posses, das sua terras, para beneficiar os fazendeiros, o agronegócio, principais financiadores do presidente genocida que aí está. Hoje, em vez de vingança, nossos parentes do Brasil inteiro querem justiça! O que fazemos nós?

2 comentários:

  1. Vamos pensando, visitando, escrevendo sobretudo aos diversos níveis políticos. Também podemos visitá-los e batalhar por maior inclusão deles em nossa realidade próxima, na Educação e Cultura.

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