quinta-feira, 2 de setembro de 2021

PROSA DE PESCADORES

 

Arte resgatada por Flávia -  Arquivo JRS 

         Amanheci e anoiteci com saudade de uma prosa, no jundu ou em outro lugar qualquer perto do mar, para me deliciar nas aventuras da minha gente, dessa caiçarada que tantas coisas já viveu e tantos momentos fantásticos criou. Por isso decidi compartilhar algumas oportunidades que tive e tanto me compensam dessas ausências, desses momentos.


        Tio Silvário, bem idoso, marido da tia Astrogilda, na sala da casa deles, no Morro das Moças, contou-me  de quando eram recém-casados  e ele foi pescar com o primo:


     "Nós saímos de madrugada; era tempo de pegadeira de peixe-porco ali perto, no largo da Caçandoca. A isca era de bicho da praia, cavado um dia antes. Assim que fundeamos a canoa, de ingá, já fomos trazendo peixe, um atrás do outro. De repente, alguma coisa se enroscou no cabo da poita e saiu arrastando a canoa. Bateu um desespero em nós dois. Recolhemos as linhas e pegamos os remos para controlar a canoa, sem virar no zig-zag daquilo que saía mar afora. O  que seria, meu Deus? A gente já ia longe, chegando no Mar Virado, quando aquilo aboiou. Era uma arraia. Mas não era uma arraia. Era a arraia! Enorme, com dois chifres medonhos. Foi neles que o cabo da poita estava engatado. Que azar o nosso. De repente, ela pareceu voar metros acima da linha do mar e caiu esparramando água como se um grande tapa tivesse sido dado na superfície. Nessa hora, por sorte nossa, o imbé se desenroscou sozinho. Ela se foi para as funduras e nós tivemos de voltar remando toda aquela distância do nosso lugar. Tivemos sorte naquele dia. Ainda bem que a canoa resistiu naquela pancadaria  toda mar afora. Sabe por quê? Era de ingá!".   


           Na sequência, tia Astrogilda explicou uma sequência diferente, uma pescaria em etapas.


         "Era assim, meu filho: meu finado pai só pescava com camarão do rio. Era costume dele, tal como meu finado avô. Por isso, quando queria largar uma linhada, seguia até o riozinho mais perto com uma peneira, ajuntava alguns camarões, desses tamanqueiros e cafulas, e saía logo ali, de canoa. Sempre pescava sozinho, sem ir muito longe. Do lagamar a gente avistava bem ele; dava até para dizer qual peixe tinha largado no fundo da canoa.  De volta à casa, ele separava as tripas dos pescados e dizia que no outro dia viria peixe  maior. E assim, no outro dia, as tripas separadas serviam de isca. Atraídos por elas, os peixes maiores eram fisgados por papai. Novamente o mesmo procedimento - de deixar tripas para nova pescaria. No terceiro dia seguido, agora se afastando mais longe da praia, as tripas maiores estavam em anzóis maiores. Então vinha peixe grande! Bastava quatro ou cinco deles para lotar a canoinha dele. Aquilo dava para nós e era repartido com mais gente. Por fim, ele dizia que era suficiente o que foi ajuntado até a outra onda de vontade e necessidade de pescar".


         A grande lição, a conclusão da saudosa titia: "Papai ensinava que toda criatura precisava crescer e se multiplicar". E, para fechar com chave de ouro: "Agora vamos tomar café, menino! Tem farinha de mandioca, tem uma panela de arroz e tem peixe-espada frito esperando por nós. Ande logo!".

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