domingo, 9 de maio de 2021

O RABEQUISTA DO SAPÊ

João Paulo, nosso vizinho do Sapê (Arquivo Kilza Setti)

        As tradições são importantes, reforçam nossas memórias. Porém, elas não descartam a aquisição de novos conhecimentos, de atualizações e de tecnologias modernas que as revigorem. É por isso que gente nova vai chegando e deixando a sua contribuição, revivendo traços culturais que pareciam estar esmorecendo. Aí estão jovens mestres canoeiros, fazedores de instrumentos, compositores, pesquisadores etc. na cultura caiçara. De repente, surge alguém que dá novo fôlego a uma arte ou a determinado aspecto que parecia esmorecendo. Neste instante penso no amigo Mário Gato que, fazendo parte de uma comunidade católica (da praia do Itaguá, em Ubatuba), onde a cultura popular era praticada intensamente por seus membros, se viu desafiado para o resgate do fandango. Ao mesmo tempo lançou, por influência do fazedor de rabeca Ricardo Nunes, do Ubatumirim, o curso relativo a este instrumento musical, na fundação de cultura municipal (Fundart). Me recordo de seus primeiros participantes. "A moçada está produzindo seus instrumentos. Precisa ver! Este é o meu. Aquele ali é do Gustavo. O outro, depois, é do Rogério Estevenel" Empolgado, Wagner, filho talentoso do saudoso Juraci, me mostrava seu instrumento. Lindo demais! Agora tem o Roberto, a Fernanda, o Ostinho e outros seguindo na produção de instrumentos tão essenciais ao Fandango, à Folia de Reis e outras manifestações nossas. 

     Ricardo Nunes, o rabequista-artesão, chamava genericamente de violino as rabecas que produzia. Kilza Setti, pesquisadora que nos legou um estudo do caiçara paulista e de sua produção musical (Ubatuba nos Cantos das Praias), escreveu que "o músico caiçara distingue facilmente o violino industrializado daquele feito na região. Dos onze violinos encontrados em Ubatuba, durante sete anos de pesquisa, apenas um era industrializado, comprado em São Paulo. Os demais são de fabricação artesanal local. [Era o ano de 1977].  Apesar de os instrumentos serem todos da mesma procedência [do município], sua fabricação é atribuída a três ou quatro diferentes artesãos. É importante notar que, pela talha, os músicos conhecem qual o artesão autor de cada instrumento". No ano passado, na festa da aldeia Boa Vista, no Prumirim, uma liderança jovem, segurando uma das  rabecas da Casa de Reza, me disse todo orgulhoso: "Esta rabeca é muito boa. Foi feita pelo Mário Gato. Você conhece?".  Me enchi de orgulho pelo filho da dona Mercedes, aquele jovem que se despertou no terreiro da capela do Itaguá!

  Me aproveito do momento para dizer que aquele instrumento industrializado, comprado em São Paulo, era do nosso vizinho João Paulo, companheiro roceiro do vovô Estevan, na praia do Sapê. João Paulo, João Miguel e tio Maneco Armiro eram rabequistas nativos mais ao sul do município. Com certeza, a julgar pelo capricho de sua filha Maria Cruz, esse instrumento que tantas vezes me levou a sentar no terreiro vizinho da minha infância para me encantar, está bem guardado. Durante um tempo esteve emprestado ao primo Antunes, saindo nas Cantorias de Reis, no tempo de Advento. 

   Agora, para terminar, reconhecendo a importância e agradecendo a esse pessoal novo que está produzindo tantos instrumentos, uma fala do saudoso Mestre Ricardo Nunes apreciando outras rabecas produzidas pelos caiçaras de seu tempo:

  "O feitio do Zé do Céu, da Picinguaba é um; esse aí acho que não foi ele que fez, não. Eu acho que esse é daí mesmo, feitio da Barra-Seca, por aí; tô desconfiado que esse aí é o feitio dele [do Vítor, que viveu na Barra-Seca]. Não é do Zé do Céu, não".

  

   
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário