terça-feira, 25 de maio de 2021

A REDE DO TEMPO-MAR (I)

 

Consertando rede (Image: Santiago)

Santiago se põe ali, de lado; esmiúça o olhar enquanto semeia e colhe palavras. Aos poucos vai trazendo nas malhas palavras em mensagens que nos alegram. Valeu, irmão!


A rede do tempo-mar


       A tarde era um mar alaranjado pelo sol poente, brilhando nas malhas secando na areia. Praia vazia de outono, quando enfim o sossego volta a pousar na beira d’água que desliza mansinha na madeira da canoa.

       Eu andava por ali, conversando com um velho consertador de redes, que lembrava histórias, causos, com a tranquilidade de um remanso no olhar... e a profundidade do mar em dias longos. Suas mãos continham a arte de tecer o fio de rede do tempo nas histórias que voltam à memória como ondas indo e vindo nas marés do existir. 

       Lembro dele de quando guri eu andava por estas bandas com os pequenos amigos de escola, passando rede picaré, pulando das pedras, indo de trilha para a praia Brava. Ele era então pescador... contava histórias do mar, das ilhas tantas que há por ali ao redor dessa vila antiga de gente da terra e não só do mar, pois eles plantavam. Época iam para o mar “colher” peixes, época iam pra roça colher mandioca, milho, cará, feijão... 

       Ele consertava a rede de cerco do neto. Mãos velhas e enrugadas, mas ainda ligeiras do oficio de tanto tempo, pensamento sereno e um tanto triste, como uma manhã de agosto quando um vento traz à praia os restos e silêncios de naufrágios. 

     Caminho pela praia, pensando... eu que já não sou pescador há tanto tempo... desde que as leis proibiram a pesca que meu pai fazia, e o velho naufragou na tristeza dos que nada podem contra as marés dos homens e suas injustiças e ganâncias. 

       Hoje sou um pescador de palavras. Mas às vezes jogo a rede, jogo a rede e nada. Dias em que “o mar não está pra peixe” e o coração não tem palavras... um bolo de silêncio de sal na garganta. Rodeio o velho consertador de redes, como um menino rodeando a grandeza do mar. Aproximo-me e sento quieto ao seu lado. Ele não se incomoda, segue em seu trabalho, dedos rápidos na agulha remendando buracos, reforçando a malha. Talvez ele lembre, e veja apenas um menino querendo aprender coisas antigas, escutar a voz do tempo na voz do homem. 

       Em silêncio nos quedamos assim, ele na sua arte, eu na minha solidão de escrever com os olhos, sobre a superfície das águas morosas. Por quanto tempo?! Talvez pela eternidade adentro... pelo oceano de ilhas-histórias que não voltam mais, talvez por um momento apenas...

          Dois jovens se aproximam, um moço e uma moça “da cidade”, param, olham, se achegam, pedem conversa, câmera e caderno nas mãos e uma certeza de um mundo de longe, que não esse. 

         O velho consertador de redes para, ouve a fala deles. Olha o mar, o reflexo dos barcos ancorados no abrigo, a luz do sol de fim de dia deslizando nas pedras lisas, e seu olhar parece um mar olhando outro mar... e os dedos prosseguem em seu trançado, como se trançasse o tempo, a memória, o pensamento. E não pudesse parar. E depois de alguns minutos em silencio ele começa a falar. E é como se o próprio tempo falasse.


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