quarta-feira, 5 de maio de 2021

BRINQUEDOS DE PALAVRAS

 

Sinta a água, caiçarinha. (Arquivo JRS)

         Acordei pensando nas histórias. Não em qualquer história, mas naquelas que eu contava às minhas "crianças" quando elas eram crianças. Sempre era na hora de dormir que eu dava um jeito de me ajeitar ao lado delas, na cama estreita. Acomodado, já sonolento também, eu começava a debulhar  Histórias do Zezinho, todas elaboradas com coisas que aconteceram no passado. Se tornavam presentes porque as palavras são poderosas. Muitas dessas coisas eu até nem tinha certeza de que continuavam existindo. Por exemplo, na história do Neco Gaspá, o macaquinho, eu me recusava de imaginar um final porque aquele córrego desapareceu sob obras. Mansões de turistas, de "tubarões" que assim continuam se fazendo pelo trabalho explorado dos pobres, tomaram o morro das nossas roças. E toma história!


        Perto de casa, no bananal da tia Martinha, havia um córrego cheio de camarões. Apesar de eu nunca ter visto alguma lagosta nele, deveria ter sim. Por isso elas vinham na narração, saíam quando era noite. Por que faziam isso? É que tinham medo do macaco Neco Gaspá, um exímio pescador de camarões que aparecia regularmente por ali, onde enchia a pança de água e de camarões. Quem presenciou isso pela primeira vez foi o menino Zezinho.

       Zezinho vivia andando, matando a curiosidade até onde conseguia enxergar. Sua mãe era a primeira a chamá-lo de andejo, batedor de perna. E era mesmo! Um dia, deixou o avô e os tios na roça de mandioca e foi ao córrego beber água. Ainda estava longe quando avistou um bugio enfiando a cara na água. O menino foi se aproximando com todo cuidado, sem fazer bulha alguma. O macaco continuava no mesmo ritual. "O que ele está fazendo ali?".  Se pondo atrás de um imenso jacatirão, ele espreitou com mais atenção, notou que o bicho demorava um bom tempo com a cara dentro da água. Prendia a respiração e ficava paradinho. De repente levantava a cabeça, arremessando-a com força para o capim. Nesse momento o pequeno Zezinho descobriu o motivo: era para lançar os camarões que se grudavam nos beiços dele. Em seguida, catava um por um e ia jogando na boca. Os bichinhos, naquela água límpida, pensavam em comida e se abraçavam nas bordas da carnuda bocarra. Era uma armadilha, parecia com a carne amarrada no pau de isca que os caiçaras, assobiando, usavam na captura de guaiás. Encantado com aquela cena, Zezinho  ficou todo o tempo do mundo; pode se aproximar mais e ver que havia pelo corpo do animal uma espécie de farinha, parecendo caspa. É de onde veio o nome dele: Neco Gaspá. Depois de muitas idas e vindas, eles se tornaram amigos. Zezinho passou a levar bananas maduras num samburá toda vez que ia na roça. Os dois pareciam duas crianças se divertindo na beira do córrego. 

     Um dia Zezinho ficou doente de sarampo, precisou ficar de resguardo, sob vigilância da mãe. No terceiro dia, ainda acamado, Neco Gaspá, do nada, apareceu na janela do quarto. Fez festa ao avistar o amigo. Após saber da doença, se compadeceu. Sumiu e voltou com bananas de imbaúba. Assim que foi embora, a mãe do menino chegou de lavar roupa na grota. Ao entrar no quarto, logo avistou aquele cacho em cima da cama. Exclamou: "Era disso que eu estava precisando! Quem trouxe?". O filho contou toda a história. Ela, toda satisfeita, exaltava: "É um santo remédio isso! Pode comer dos mais maduros. Vou ferver água para fazer chá dos mais verdes. Dentro de dois dias você sairá pulando por aí, vai poder andejar com o Neco Gaspá". E foi o que aconteceu. Daí em diante, a visita do bugio naquela casa era diária. Todo mundo gostava dele.

      

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