sábado, 23 de março de 2013

FAZENDA VELHA

Thomaz Cancer já fabricava uma boa pinga no início do século XX. (Arquivo JRS)

                         Seja bem-vinda, Mônica Inácio!

          A minha vó Martinha foi menina de engenho. “Eu trabalhava, ainda novinha, no engenho de pinga do vovô Chico Cabral”, costumava relembrar de vez em quando. “Tinham outros que também faziam pinga, mas eu não conheci. O vovô contava de um engenho admirado por ele, onde tinha uma cachaça muito bem falada. Era perto da cidade, depois do Sertão das Cotias e do Morro da Berta. O dono era um tal de Tomás ”.   Passou tempo. A Praia do Pulso, onde vivera o nhonhô Chico Cabral, também foi tomada por casarões. Vovó findou seus dias no bairro da Estufa.
             Na adolescência, quando comecei trabalhar num bar, “topei” com a “mardita” Ubatubana, a substituta daquela  produzida por Thomaz Cancer. Quem revendia o produto, em dúzia de litros acondicionados em engradados de madeira, era o Zezé da Antárctica, irmão do Ditinho Jati. Era cheirosa a danada! O rótulo estampava uma embarcação puxada numa prainha, tendo ao fundo uma ponta sobre o mar e morros verdejantes. Essa pinga cheirosa da nossa terra se apresentava como “branquinha” ou “amarelinha”. Os turistas faziam questão de comprar litros e litros. Diziam: “Essa é da boa!”  Depois, com a chegada das aguardentes industrializadas (Riopedrense, 51, Tatuzinho etc.), foi-se a famosa Ubatubana.
                Demorou tempo para que eu conhecesse melhor alguns dos Chiéus, os fabricantes desse produto que, desde 1978, deixou de ser produzido ali perto da ponte da estrada do Monte Valério, na Fazenda Velha. Então, passei a alimentar um desejo: saber mais coisa, ouvir a história desse pessoal e do engenho de pinga que faz parte da memória de Ubatuba (e dos ubatubanos!). Finalmente me encontrei com o Umberto Chiéus, o “Nenê”. Era sábado. Conforme me garantiu o Arnaldo, seu filho: “Todos os dias, a partir das sete horas, ele já está no mato. É a rotina dele. Ele vai gostar de conversar com você a respeito da fazenda”. Assim, com uma boa disposição, quase completando os oitenta e três anos, ele contou:
                O meu pai era Domingos Chiéus, italiano que morava em Piracicaba. Por indicação de Alexandre Malfatti, irmão da famosa Anita, ele veio trabalhar nesta fazenda em 1928. A proprietária na época era a Francisca. O primeiro dono tinha sido o Thomaz Cancer, seu filho. [Neste momento ele mostrou a chapa de cobre vazada, usada na identificação do fabricante nos barris]. Depois, tudo passou à Rafaela (que também era filha da dona Francisca).
                Éramos seis irmãos: Roberto, Augusto, Domingos, Gilberto, Umberto e Antônio. Só eu e o Antônio nascemos em Ubatuba. Somos caiçaras! Após a morte de nosso pai, estávamos resolvidos a deixar esta cidade porque apresentava uma mínima possibilidade de crescimento econômico. Foi quando a dona Rafaela quis vender as terras (aproximadamente duzentos hectares) para nós. A fazenda fazia parte da gente. Nós a compramos.  Desde 1952 ela nos pertence.
                A área de plantação de cana ocupava cerca de vinte e cinco hectares. Equivale aos terrenos do Jardim Carolina e do Jardim Samambaia. A produção era boa. Chegamos a ter até dez trabalhadores nos bons tempos de produção, por volta de 1970. A pinga produzida aqui tinha uma boa aceitação na cidade, mas a gente também vendia para fora (São Luiz do Paraitinga, Taubaté...). No tempo da safra, às quatro horas da madrugada nós já vínhamos para o engenho. A produção girava em torno de mil litros por dia. A capacidade de depósito era para mais de cento e vinte mil litros. Você imagina isso?
                A entrega era feita pelo próprio engenho. O lugar mais longe, ainda lembro bem, era no armazém do Maciel, na Enseada. Duas pessoas a cavalo saíam no amanhecer. A carga seguia de cargueiro: dois burros, abarrotados de litros entre palhas, seguiam a “Trilha da Ferrovia” até o Itaguá. Depois atravessavam a Praia Grande e a Toninhas, sempre pelo lagamar. Então subiam o morrão e desciam a estrada para a praia, onde ficava o maior armazém daquele tempo. Diziam que o Maciel tinha os melhores preços. Só sei dizer que, por volta das duas horas da tarde o pessoal estava de volta, na fazenda. 

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