quinta-feira, 21 de março de 2013

AS CICATRIZES

Olá, Maritudan0!  Que tal saber mais dos caiçaras?


Dando continuidade ao texto do Mingo, apresento um depoimento que permite “notar as cicatrizes espaciais e sociais provocadas pelo choque entre a sociedade de produção industrial e a sociedade da lavoura e da pesca artesanal”. Acha pouco olhar para o jundu e não ver nenhum rancho de canoa? E o que dizer dos morros agora tendo somente mansões, nos lugares dos antigos roçados? Ai! Tantas festas e tradições estão indo para o esquecimento!!!

O primeiro entrevistado foi o Benedito Gabriel, natural da Praia da Raposa. Na época ele vivia em Vicente de Carvalho, quase Guarujá. A palavra é dele:

Quando meu pai veio como  escravo ele era pequeno, o patrão tratava dele muito bem. Ele veio de São João Marcos... Ele não trabalhava, os outros todos trabalhavam... Ele era só pra fazer viagens pro patrão, serviços de casa...
As canoas de voga faziam o transporte de Ubatuba para Santos, a remo e a vela... Embarcavam lá naqueles engenhos lá... Do Antônio Madalena, Zé  Marcolino, Chico Cabral... Enchiam aquelas canoas de voga com até dez ou quinze barris de cachaça de cem litros... Canoa pequena tinha três remos, canoa grande tinha até seis remos grandes, com duas velas... Uma vela traquete adiante e outra atrás... Quando o vento dava, suspendiam os remos e usavam só a vela... Quando não tinha vento era só no remo... Gastavam dois, três dias para pegar a boca da barra em Bertioga... Quando o tempo estava ruim, num portinho melhor se encostavam... Traziam suas comidas dentro da canoa... E ajuntavam no remo... Tinha ocasião, quem ia embarcar cachaça pro Zé Marcolino, pro Antônio Madalena, falavam que tinha vento que corria só com a (vela de) mezena, não precisava da traquete... Tinha ocasião que pegavam cada leste, que vinham até aqui na boca da barra (Barra de Bertioga)... Eles padeciam muito, também, ô se padeciam... Remar de Ubatuba até aqui!
A canoa era feita de uma madeira só, de jequitibá, de dois metros de boca... Tem jequitibá muito grande... A madeira maior que tem pra fazer canoa é o jequitibá... Existia muita canoa grande... Chegavam ali na Prainha do Pulso pra pegar a Pinga do Chico Cabral... A canoa de voga não chegava em terra não... Pegavam os quintos de cachaça em canoas pequenas pra jogar dentro da outra canoa, que ficava fundeada fora, igual a um barco, a mesma coisa... Havia um pessoal dos remos e um só pro leme... Onde pegava mais pinga era no Chico Cabral, ocupava todo o espaço e só deixava lugar pros remadores...
Se plantava milho, feijão, arroz, batata, tudo quanto era planta miúda, banana...
Quando a planta não dava bem (má colheita), passava necessidades... Eu passei muito...Eu não vou dizer que a gente na roça passava bem... A pessoa na roça não passava bem... Ninguém passava bem... A situação era ruim... Pro pessoal que trabalhava em roça, naquele tempo, a situação era ruim... Mas também eram aqueles pais pra criar quatro ou cinco filhos, tudo da roça... Era difícil, meu filho... Meu pai não trabalhava, era velhinho, só fazia viagem pra um, viagem pra outro... 
O que eu fazia? Eu roçava, queimava, plantava e deixava pra eles cuidarem e vinha pra cá ganhar dinheiro pra mandar pra lá.
Aqui eu trabalhava em bananal, roçar bananal dos outros. O meu pai morreu no dia 7 de setembro de 1926...Dia 15 de outubro de 1926 viajei para Santos, moleque ainda, os meus irmãos que me trouxeram... Meus irmãos já eram casados.
Em Ubatuba, a venda de bananas era só pra despesa com o negociante... Alguns cortavam cinco, seis, dez, quinze dúzias de cachos de bananas... Naquela época quase não existia dinheiro... Quando saí de lá em 1966...a dúzia de banana que tava vendendo pro Natanael era mil e quinhentos a dúzia de cachos de bananas...O pessoal naquele tempo entregava a mercadoria da roça e pegava compra. Quando vendia algum cacho a bordo, ainda dava...Mas quando entregava pra ele revender a bordo, não sobrava nada.
Não tinha preço...café, farinha... nós cansava de fazer carreto de farinha de lá da Caçandoca pra Cocanha, pra vender o alqueire, 40 litros, a dois, três mil... É, a vida era triste... Plantava milho, plantava feijão... Milho, então, não tinha valor... Fazia carreto de milho, pra chegar lá e entregar o alqueire de milho a mile quinhentos... Não dava, tudo era barato... Por isso a gente fazia a roça, deixava pras mulheres cuidar e tinha que sair fora e vir pra cá pra recuperar um dinheirinho pra poder cobrir as despesas.

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