sábado, 1 de novembro de 2025

É SINA

 

Arte em casa - Arquivo JRS 

  A gente sofre, chora, fica inconformado por um tempo quando parte do nosso meio uma pessoa querida. A cada finados os cemitérios recebem visitas na intenção de reverenciar os mortos, aqueles que nos deixaram. Os pesquisadores já afirmam que o culto aos mortos é muito antiga, fazia parte dos primeiros grupos de seres humanos. Deduzem isto pelos achados arqueológicos, pelas formas que os esqueletos foram arrumados e por restos de oferendas no local. Podemos inferir de tudo isso que, desde aquele tempo primordial, os humanos acreditam numa outra forma de vida que está além da breve existência do corpo vivente? Mais tarde surgiram divindades, inferno, purgatório, céu...e o conceito de alma imortal. É isto: não queremos aceitar que a vida seja só isto (nascer, viver e morrer). 

  Os conceitos de céu e inferno visam servir como parâmetros morais: se fizer o bem merecerá o céu, se fizer o mal arderá nas chamas do inferno. Sacerdotes e sacerdotisas vivem às custas das teologias, das exigências das divindades para com seus fiéis, mas tudo se sustenta na crença da existência da alma. Se ela é imortal, precisa ir para algum lugar depois da morte corporal. Sacerdotes e sacerdotisas pretendem saber o caminho melhor para a alma, ditam os preceitos morais. Aos demais humanos resta a escolha do caminho, fazer em vida as ações merecedoras da vida no além. "Porque a justiça divina vem".

  Edifícios teológicos estão no topo da pirâmide social. Quem almeja o poder político sabe disso. Não é à toa que agora até está se criando uma "bancada cristã" na sede do poder em Brasília. Localmente, até um conselho de pastores recebe terreno público para se fortalecer. (Leia-se fortalecer o poder político). Edifícios teológicos são superados pelos edifícios de riquezas dos ídolos dessa bancada que se justifica em "honra e glória a Deus". Igrejas são isentas de inúmeras taxas porque precisam ostentar poder e riqueza? Porém, já sabemos a moralidade predominante no povo que grita "Deus, Pátria e Família". Aqui apresento uma frase em torno de uma tragédia recente: "Se você é uma pessoa cristã e está comemorando o que aconteceu no Rio de Janeiro, já pode rasgar sua Bíblia e sair da igreja". Vale para qualquer pessoa, independente de ser dessa ou daquela denominação. Vale para todo ser humano que tenha a ética como parâmetro: as injustiças não podem justificar matanças. Segundo consta, disse Jesus: "Eu vim para que todos tenham vida". "Ah, mas a bancada cristã vibrou no plenário!". 

  Enfim, não se trata de ter alma ou não ter alma. A nossa responsabilidade é por vida digna, vida plena para todos! Acima de toda moral está a ética! Lembremos os nossos mortos, bem como todos os que passaram por esta Terra cultivando os maiores e melhores valores que eles escolheram. É sina dos sóis se apagarem, mas a memória de cada pessoa que nos deixou com bons exemplos irá permanecer em nossas memórias como o Sol maior.



quinta-feira, 30 de outubro de 2025

ONDE SE PASSA NÃO É AONDE SE VAI

 

Girassol - Arquivo JRS 


Meu amigo enviou mensagem:

Na costeira há uma boca de esgoto.

Vem de onde?

Daquele condomínio de ricaços,

Dos que chupam vidas, deixam bagaços.


Meu amigo assim encerra sua fala:

Deixemos de lado, vamos levar a vida.

Vem de onde isto?

Séculos de conformismo tão baixo,

Paz de morte que eu rechaço.


Meu amigo ficou calado,

Minha gente está dobrada.

Vai parar onde isto?

Tudo se estilhaçou;

Um caleidoscópio que se quebrou.


Meu amigo se foi na dor.


quarta-feira, 29 de outubro de 2025

AONDE LEVA A PORTA?

 

Porta queimada - Arquivo internet 

  Viajamos sempre. Cada dia é uma prazer que chega com a claridade: a saúde tá de acordo, a companhia fiel segue disposta a amar nosso jeito e nossas conquistas, sol ou chuva são bem-vindos, nossos animais sempre esperam algo de nós, as plantinhas crescem, florescem e e frutificam, nossas crianças se tornam adultas nos desafios, mas sempre sabendo que há um outro chão a sustentá-las. Vemos artes em muitos momentos do cotidiano, lemos, escrevemos, recebemos notícias desse mundo afora e da realidade do terreiro de casa. Eu penso na irmã e nos irmãos, nas pessoas próximas e/ou distantes cheias de carinho por nós... Enfim, nada como começar cada dia com novos estímulos e energias renovadas!

   Lá fora um vento assobia refrescando a primavera, aqui dentro de casa a inspiração murmura. Penso na igreja que teve a porta queimada. Incêndio criminoso como muitos outros neste país chamado Brasil? Pode ser sim! Que mal fez uma porta? Nenhum! "Ah, mas o padre pode ter proferido um sermão que mexeu com os interesses egoístas da classe conservadora/reacionária". Ou..."Neste país agora se vive uma onda de intolerância religiosa, com tendências cruéis se manifestando contra um exercício de cidadania comprometida com mudanças sociais, querendo que as desigualdades sejam abrandadas". "Também não é de se descartar fanatismo religioso". Não consigo imaginar um ser religioso que não queira a vida em plenitude para todo mundo! O motivo não foi para roubar, pois outras portas mais fáceis estavam logo ali, na lateral. "Será que ali não repousava uma pessoa com alguma deficiência mental se aquecendo sob proteção do templo?". Pode ser tudo isso. Portas fechadas é sinal de não acolhimento. 

   Nenhuma divindade precisa de templos. O corpo, o ser de cada um de nós é um templo. Passo sempre pelas ruas e vejo templos desacorçoados, sem portas, sem telhados, sem estímulos que não sejam apenas a sobrevivência. Templos sagrados em cada corpo humano estão pelos caminhos e beiradas de telhados implorando pão e acolhida; templos abandonados e perseguidos que valem mais que qualquer porta. Porta queimada: que sobressalto em meu coração! Tenho chave para abrir tal porta?

    Porta fechada pode esconder uma passagem a um espaço lindo e aconchegante, lugar de vida plena. Quem tem a chave? A chave foi dada a Pedro, um pescador ignorante, sem estudo algum. A chuva recomeçou. A porta queimada continua fechada. O viajante se despediu da cena depois de ter deixado uma esmola para a igreja. Uma coisa é certa: cada dia precisa de novos estímulos e de energias novas.



terça-feira, 28 de outubro de 2025

ÁGUA SEM VIDA É...

 

Bandeira verde - imagem internet

  Uns dias atrás eu me deparei com a imagem de uma placa muito chocante em torno da realidade do nosso mar  que causa muita tristeza e preocupação. É certo que ao longo dos anos ele vai perdendo vida. Quem perde  vida também não gera vida. Pelo contrário, gera morte. Na verdade, não é apenas o mar que está morrendo; nossos rios também estão no mesmo caminho. Foi-se o tempo em que podíamos tomar água de qualquer regato, se banhar em qualquer rio, se alimentar dos peixes deles. Canos de esgotos são visíveis em qualquer ribanceira, tudo o que não presta mais  é descartado nos veios d'águas, nas margens dos rios ou até mesmo dentro deles. Aquele óleo, as sujeiras do vizinho sem-noção, sem educação, que regularmente lava os veículos na calçada, acabam escorrendo para o rio mais próximo. Para onde vai tudo isso? Para o mar! Duvida disso? Vai na beira do mar, na praia, depois de uma chuva forte e veja o que está encalhado com a ciscalhada. Vai lá! 

  Agora me diga: como iremos à diversão nas praias e rios sabendo de tudo isso? Eu, há um bom tempo, me contento em apreciar de longe essas nossas belezas. Poucas praias mais isoladas me inspiram confiança em me banhar e ficar na areia. No entanto, a maioria das praias estão lotadas de turistas, as cidades continuam a produzir mais esgotos sem o tratamento adequado, a vigilância sanitária não consegue barrar as obras irregulares e as condutas de desrespeito ao meio ambiente, a educação escolar não alcança a conscientização necessária, os comerciantes põem o lucro acima de tudo etc. Enfim, o mar se converteu numa espécie de fossa geral, para onde tudo segue. 

  A imagem a que me referi no início deste é uma placa da empresa responsável pela verificação da qualidade das águas. O texto desperta para uma incoerência: a praia está liberada, própria para quem quiser aproveitar, desfrutar do lazer ali, mas tem um cheiro insuportável. Pode isso? Nas minhas manhãs, indo de Ubatuba para Caraguatatuba, percebia cheiro desagradável em diversos pontos da estrada: perto do posto de gasolina na Estufa, na área do rio Jundiaquara, quase na rotatória da praia Grande, na ponte da praia Dura... Foi nessa época que o saudoso Emílio Campi escreveu um texto com um título cruel: Ubatuba cheira merda. Você acha que hoje, oito anos depois, as coisas melhoraram? Atmosfera de bosta seria o termo adequado, de acordo com o primo Zé Roberto. É, pode ser.

   Água sem vida é...

  Não nos esqueçamos: o meio ambiente saudável, a beleza deste litoral onde nascemos é a nossa "galinha dos ovos de ouro".


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

SER DOCENTE, SIM!

 

Imagens da felicidade - Arquivo Rê

   A  minha muito estimada Regina, formada na EE Deolindo, de Ubatuba, na virada da década de 1980, começou a exercer o magistério num lugar distante de casa, no outro lado da Ilhabela, na comunidade do Saco do Sombrio, no começo da década de 1990. A escola isolada lhe servia de moradia, com crianças e familiares lhe servindo de companhia. Ela, por dois anos, foi integrante da cultura caiçara daquele lugar. Será que nos dias atuais ainda tem moradores, comunidade caiçara por ali? Se eu tivesse condições, pegaríamos uma lancha e iríamos até o Saco do Sombrio para uma visita, viu Rê? Seus registros fotográficos e textuais naquele início de carreira continuam sendo muito significativos. Assim é um lado pouco conhecido de quem abraça a carreira docente com todo o seu ser. Cada um de nós sempre precisará desses "documentos da linha do tempo" (escritos ou na memória) para se sentir feliz apesar dos descasos por parte do poder público e receber "pancadas" esporadicamente por parte de alguns pais. A Rê é mestra nas anotações dessas "pequenas" alegrias que vão se dando no exercício da profissão e, somadas, dão o sentido à vida que escolhemos. Sendo assim, hoje eu faço questão de publicar seu feliz registro, de dias atrás, quando levou a sua turminha para um dia de vida em seu quintal. Posso dizer com toda certeza: elas jamais esquecerão dessa vivência com a professora Regina.


"Ontem a minha casa foi compartilhada com as crianças e... A alegria de simplesmente ser aquilo que nasceram para ser... Crianças... De repente o encantamento tornou-se realidade! Sem mistério, sem segredos, somente com curiosidade de viver o presente sorrindo, correndo, pulando, comendo, sonhando..."


   Querida Rê e querida companheirada docentes: são essas as nossas maiores alegrias. Nós seguimos em frente porque sabemos que assim vamos aprendendo, exercendo e transmitindo cidadania! Lembrando o mestre Paulo Freire: um mundo novo só é possível com educação libertadora!








sábado, 25 de outubro de 2025

PATRIMÔNIO CULTURAL

 

Arte em casa - Arquivo JRS 

   Os meus clássicos da literatura vão e vêm, como marés. Agora, por exemplo, estou numa maré Saramago. Além de viajar por outras terras, à mente me apresentam outras reflexões, muitas visões de mundo e novas contribuições ao meu ser. Assim se faz e refaz meu espírito, a minha alma inquieta que inquieta continua, marca da minha/nossa humanidade que começou a se formar ainda no ventre da mãe, passou pela comunidade da infância e pelas escolhas que foram feitas. Feliz da pessoa que pode fazer escolhas!

   Hoje acordei pensando em quem produz arte, sobretudo em quem, na minha terra caiçara, sempre produziu artes para o nosso prazer e reflexões. Em minha memória estão compositores, cantores, tocadores, entalhadores, pintores, tecelãs, ceramistas, fotógrafos, artesão das mais variadas vertentes etc. Infelizmente muitas coisas maravilhosas já desapareceram, não foram arquivadas, nem gravadas, muito menos conservadas em acervos públicos. Preciosas obras de artes surgidas nesse chão caiçara de Ubatuba foram condenadas à morte pela indiferença e pelo desmazelo. Pensei muito nisso certa vez que fui ao museu de arte sacra de Taubaté e vi obras do Mestre Bigode, ubatubano da gema. Levei em consideração um pensamento de Saramago ao fazer itinerário semelhante: "A gente não precisa de imagens sacras para orar aos pés delas, mas precisa de que elas sejam defendidas porque são obras do gênio do homem, beleza criada". Recentemente, no espaço do Teatro Municipal de Ubatuba, houve uma mostra do que foi possível arregimentar das obras desse mestre entalhador. Agora, que tal fazer o mesmo empenho nas obras do Da Motta, do Jacó, do Pio e outros?

   O mesmo rumo destas linhas se aplica ao Museu Caiçara, ao Museu Histórico, às ruínas que muita gente nem sabe da existência, às poucas linhas arquitetônicas e urbanísticas desta Ubatuba que atestam um passado interessante, passível de servir ao turismo cultural. Faça um passeio à deriva pela cidade, pelos logradouros, sinta as mensagens de outros tempos e diga convictamente: "Isto tem de ser preservado; aqui merece guia de turismo para a sensibilização das pessoas!".

   Ainda podemos consertar e acertar muitas coisas. Ainda há tempo para mostrar muitas obras da genialidade humana! As mostras que acontecem vez ou outra devem se intensificar! Podemos acertar... podemos errar!

    Nesta direção, preocupado com o acervo de 14 anos (mais de 2.200 textos até este momento), estou pensando em fazer a escolha de alguns textos para publicação. Para tal desafio estou iniciando uma campanha junto ao público leitor. Espero e agradeço por sugestões na seleção e custeio, via e-mail (ronaldo.jrszero@gmail.com)

   "Há horas felizes, há erros que o não são menos" (Saramago)


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

ESCURIDÃO DE RESPEITO

Arte em xilogravura - Pita Paiva 


     Bem cedo me pego pensando na mítica Ilha dos Sumidos, citada na obra Canoa Emborcada, do estimado Santiago "Santi" Bernardes. Eu a tomei como espaço de reflexão de temas que não deveríamos descuidar, de lembranças boas e de gente melhor que não podemos apagar da memória. Ela, na minha concepção, se tornou um desafio e, ao mesmo tempo, um lugar para redescobrir e/ou reforçar a mística do povo que se fez entre roçados, pescarias e festejos; um espaço para nutrir nossos espíritos que teimam em evitar que o nosso território se torne um inferno aos seus moradores e visitantes. Por isso, sempre que eu sentir necessidade e inspiração, recorrerei à Ilha dos Esquecidos para pensarmos juntos e agirmos em conjunto. Agora eu trago a reflexão do muito estimado Jorge Ivam em torno da educação pública:

    A escola pública era apresentada como um meio de os jovens da classe trabalhadora ascenderem socialmente. Poucos conseguiam isso, mas havia essa possibilidade, havia um discurso que o estimulava, agora os currículos oficiais nem disfarçam mais o objetivo de manter as injustiças sociais. Para isso, com o pretexto de que os jovens pobres precisam se empregar mais cedo, a escola alija os alunos dos conhecimentos básicos e empurra-os para o mercado de trabalho, no qual, por falta de formação, terão de se conformar em exercer funções desprestigiadas e, portanto, mal-remuneradas. O resultado é que a desigualdade social só aumenta. Outra consequência dessa educação é o indivíduo que a recebeu não ter a mínima noção de que é vítima de um sistema que o faz acreditar que vive em situação precária porque não tem mérito, ou não é tão inteligente quanto aqueles da classe dominante.

    O resultado, as consequências de tal modelo tende a agravar com a tendência conservadora de implantação de escolas cívico-militares, onde a ideologia de defesa dos privilégios de uma mínima parcela da população (sob a denominação de "patriotismo") é marca histórica das instituições  militares (que desejam manter-se na mamata). Uma elite terá sempre a necessidade de gente disposta a dar a própria vida, a tal disposição de "morrer pela Pátria e viver sem razão" cantada pelo poeta. Somando todos esses aspectos, das tendências curriculares ao neofascismo da extrema-direita, essa onda que ameaça inundar as praias com muitas imundícies, prevejo uma escuridão de respeito caso não tomemos posição contrária, se consolidando como força popular.


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

NÃO VÁ, JÚLIO!

 

Júlio O. Barbosa - Arquivo da família 

  Seo Júlio Barbosa, pescador antigo da praia do Félix, nos deixou, navega agora em outras águas.

  Na primeira década deste século, eu e a família preferíamos a praia do Félix como diversão principal, ficando no sossego do canto direito, onde desce um riozinho. As crianças adoravam aquele pedaço. Era comum eu encontrar o seo Júlio reinando por ali, fazendo uns acertos no rancho das canoas, saindo ou chegando da pescaria, mas sempre tendo um tempo para prosear. Tristeza por quem não passou por essa vivência, não ter conhecido esse honrado caiçara que nasceu, cresceu e morreu na praia que tem como padroeiro São José.

  Foi escutando o seo Júlio que eu soube da luta dos caiçaras autênticos contra aqueles que queriam lhe tomar o lugar dos ranchos das canoas, acabar de vez com o jundu daquela praia. Também aproveito para engrandecer a Maria Isabel (filha do saudoso João de Souza e da dona Maria) e outras mulheres que se fazem parceiras de seus companheiros na preservação da natureza e da dignidade do povo caiçara. Ela, Nilton e o sogro não me deixam esquecer de estar sempre vigilante, de ter a mansidão da pomba, mas a astúcia da serpente. Lembre-se do seo Júlio na próxima vez que você for na referida praia, saiba que o que está preservado ali deve muito à luta desse roceiro-pescador que agora rema em outros mares, onde não há lajes traiçoeiras, nem ressacas, nem nada. Não vá nos deixar órfãos de seu ânimo,  seo Júlio! 

    Vá em paz, seo Júlio! Em cada remada nesse outro rumo, pense em nós que precisamos ter forças contra as ressacas de maldades que assolam o mundo, destroem o litoral e perseguem a diversidade cultural deste Brasil.

  O mano Mingo escreveu a seguinte prosa desse valoroso homem que continuará em nossas memórias e alimentando as nossas lutas e celebrações:


   "Deus do céu já falou comigo. Foi em uma madrugada quando estava arrastando a canoa para pôr no mar. Ele disse nos meus ouvidos: 'Júlio, não vá pescar!'. Olhei para os lados, pensei que era imaginação e continuei o que estava fazendo e de novo ouvi: 'Júlio, não vá pescar!'. Parei, senti o vento, espiei o mar, estava quase tudo tranquilo e pela terceira vez escutei o mesmo conselho: 'Júlio, não vá pescar!'. Muito teimoso eu fui. Veio uma primeira onda imensa, vinda de não sei onde, rolou minha canoa, me pinchou na areia. Depois vieram outras e começou o açoite do mar ressacado. Pedi perdão a Deus por não ouvir os seus conselhos. Quase morri afogado".

Em tempo: No rancho da família Barbosa está a grande canoa do Nilton/Isabel reformada por meu pai. Ele a chamava de canoa dos mil pedaços.



quarta-feira, 22 de outubro de 2025

BADO, O BARDO

Bardo da aldeia - Imagem internet


  Quando digo bardo, penso nos desenhos da revista Asterix. Nas historinhas da aldeia gaulesa, o bardo era músico, poeta, um conclamador e contador de histórias nos moldes dos pasquins de antigamente em Ubatuba. O amigo Bado Todão se encaixa bem na definição, nesse perfil: faz teatro, compõe música, escreve significativos textos... Enfim, viaja em universos diversos. Dias desses, esse bardo ubatubano me deu a ótima notícia:

  "O Sérgio e a esposa estão oferecendo um espaço na loja FOTO KIKUTI para que possamos expor nossos livros".

   Também o mano Guinho reenviou a mensagem do Sérgio: 

"Estou te convidando para participar do espaço literário criado aqui na loja KIKUTI para autores locais. Já estão chegando alguns exemplares. O espaço não tem custo e nem comissão sobre as vendas, Se você tiver alguma publicação ou souber de algum amigo ou parente, por favor pode chegar".

      Louvável a iniciativa deles, do Sérgio e esposa, talvez seja alguma das reverberações da primeira edição do Pirão das Letras, o evento literário que recentemente envolveu muita gente em Ubatuba e foi um sustento às nossas almas. Parabéns ao casal que trás essa possibilidade, essa oportunização de outros olhares sobre nossas heranças culturais e os talentos neste chão caiçara! Gratidão demais do fundo do meu ser!

Em tempo: Eu conheci o senhor Kikuti quando, para se matricular na quinta série (primeiro ano do ginásio), tive de providenciar algumas fotos 3x4. Ele era o fotógrafo. Tempos depois fiquei sabendo, por intermédio de um caiçara antigo, que esse descendente nipônico tinha um imenso bananal no Morro da Pipoca, no pé da serra: "Bastante gente trabalhava no bananal do Kikuti. Eu era novo de tudo. Naquele tempo, desde a Marafunda até o pé da serra era só plantação de bananas. A decadência veio depois da enchente em Caraguá (porque ficou sem estrada para escoar a produção e eram poucos os barcos que transportavam esse tipo de carga".


terça-feira, 21 de outubro de 2025

CORAÇÃO NAS BRUMAS

 


Rua dos Góis - Arquivo Roberto Ferrero

   Das brumas, dessa cerração no mar, vêm coisas da memória que nunca imaginei brotar um dia. Dias desses, estando a me recordar de bons momentos antes da adolescência, quando a diversão era o motor principal da vida, com morros, praias, caminhos e mar à disposição, pensei num relato do tio Dadinho (Dario Góis), pai do Diminhas e tio do João e irmandade, todos companheiros, em outros tempos, de travessuras e aventuras no pedaço de chão entre Perequê-mirim, Santa Rita e Enseada. Éramos bem felizes e sabíamos!

   Tio Dadinho, assim como o irmão Dito Góis, habitavam nas proximidades da Pedra Branca, zona intermediária da praia da Enseada. A mãe deles, a já bem idosa Dona Maria, recebia todos os cuidados da nora Dita (esposa do Dario Góis). Já faz tempo que a rua onde moravam recebeu o nome da família: Rua dos Góis. Ali por perto, nas cercanias da rodovia, residiam outras amizades: Vera, Nenê, Helena, Dinho, Jair, Teté, Basílio, Nestor, Celi, Celeste, Vanil, Zizo, Tereza e Fernando...

   Mas qual relato me fez recordar do tio Dadinho e dessa gente dos Góis, sobretudo do Seo Dito Góis e da Dona Preciosa? Explico: eu queria entender de onde vinha esse nome, essa descendência, essa família Góis. O relato do pai do Dimas, aparecendo em fragmentos na minha memória é este:

  "A minha gente antiga veio de Portugal. Mamãe contava que até existe um cidadezinha em terras portuguesas com o nome de Góis. Foi de onde, desde os primórdios de 1500, os Góis se fizeram presentes na história do Brasil. Peró de Góis foi famoso naquele tempo. Mais tarde, junto com a família real, em 1808, mais Góis vieram para cá, morar neste chão. Tinha gente da nobreza entre os Góis, dizia a mamãe. Dessa última turma é quem vem o parente mais próximo resolvido a ser fazendeiro em terras brasileiras. Sabeis a razão do finalzinho da praia, indo no caminho do Paru, ter o nome de prainha do Canto do Góis? É porque ali um nosso parente tinha um engenho de pinga e plantava mais coisas por aquele morro todo. Com o passar do tempo esse meu parente empobreceu, tudo se arruinou e deu nessa caiçarada que somos. Os descendentes viraram esses Góis que estão hoje em dia por aí, inclusive eu e o Ditinho." 

   Ah! Como eu gostaria de saber mais dos bens da nossa terra! É neste rumo que o meu coração é chamado.




segunda-feira, 20 de outubro de 2025

HÁ PONTE?

 

Caiçara no Camaroeiro - Arquivo Louzada


    Sim, há ponte, mas não há toda memória. Sei que foi o João Firmino quem a construiu. Era para passar gente, animal de carga de vez em quando. Agora passa carros leves e pesados caminhões. Ia da praia ao mato fechado, era o caminho para o Morro da Quina. Agora dá volta, chega no outro lado depois de cruzar o Araribá. Aquele rio vinha da vargem enriquecida com águas do Ingá e ganhava o outro grande já no mangue, não tão perto da casa da tia Brandina, no jundu da Maranduba, onde caiçaras antigos caçavam guenzo para se alimentar de forma diversificada. Viajante nenhum esquecerá o café amargo com peixe seco da saudosa hospitalidade. Titia era assim. Tempo depois, quando lotearam tudo, ela se viu obrigada a deixar aquele seu pedaço de chão próximo do rio que dava infinitas voltas. (Desde o início da década de 1960 está reto). Só ficou uma mangueira estimada que até hoje está lá bem próxima da atual rodovia. Nunca deu frutos;  só é testemunha do tempo. Mas de qual tempo? Da infância, no tempo da escravidão restante, na fazenda da Caçandoca? Da simplicidade no jundu, quase no Sapê? Do Sertão do Meio que a acolheu até o último suspiro?

  

   Agora a bruma já se levantou, mas o tempo continua incerto. Os tempos são outros! As esfarrapadas névoas levam lembranças das liberdades douradas. Há um silêncio acima de toda perturbação. O mar de peixes se torna mar sujo de tudo. Contra isto pouca gente luta apesar da imensa indignação. O viajante vai-se embora, mas sua figura continua sentado na beira da estrada, olhando o horizonte que separa o mar do céu. Sapê: aqui foi a primeira porta do paraíso. A ponte do João Firmino, neste dia de azul aguado, ainda resiste e existe na memória fraca. O céu tá limpo e lindo! Aquele canteiro cultivado com dedicação demonstra a grandeza da alma, do trabalho transformador dessa gente que se fez povoado à sombra do porto da Santa  Cruz e segue fazendo pontes universais. Tio Dito, tio Neco, Aquilau (que um dia me deu sementes de especula), Marcos, Tina, Claudinha, Giovana, Mônica, Maria Cruz, Rosa do Décio, Nié, madrinha Chica...Toda gente deste chão caiçara, deste sangue roceiro e pescador que esta terra gerou está na figura sentada na beira da estrada, na lembrança que não viajou. Depois da ponte, o viajante teve um arrepio. Pensou: depois do tudo vem o nada, mas qual será o futuro desse tudo? Há ponte?


domingo, 19 de outubro de 2025

ARRASTANDO

Canoas do pai - Arquivo JRS



 

Tio Chico, animado bem cedo,

quis saber da vovó:

Como começa o dia, mamãe?

Arrastando, meu filho.

Pensou: hoje tá ruim o seu humor.


Depois baixou a canoa no rolo,

se muniu de remo, puçá e balaio;

armou o traquete para reparar bem em tudo,

viu os tons de terra e de mato

e os azuis do mar: maior amor.


Depois do Ilhote do Pontal desceu o arrasto do puçá.

Água clara, águas a leste...

Longe um nevoeiro ameaça avançar,

lembranças do parceiro Hilário

quando a Aurora, da Sete Fontes,  transbordou.


Já faz tempo, agora têm filhos, netos, bisnetos...

A cerração chegou junto com a puxada:

o ensacador estava abarrotado.

Gosta de nada ver, mas remar na sorte...

Titio aportou, tava certo no rumo que tomou.


sábado, 18 de outubro de 2025

CAMBUCI REDONDO?

   

Cambuci redondo - Arquivo JRS 

Os dois tipos - Arquivo JRS 

    "A gente, até o final da vida, vai aprendendo e vendo coisas diferentes", sempre dizia a tia Izolina Amorim. E é verdade mesmo! Sabe que dias desses, lá no Vale do Paty, aos sessenta e três anos, me deparei com uma árvore diferente, mas não muito estranha? Fui indagar do meu amigo depois de olhar bem as folhas e o tronco parecido com um cafeeiro bem ali, na porta da cozinha. "Maciel, esta daqui é do mato mesmo ou é alguma frutífera?". Ele, com aquela postura desafiadora, assim falou: "Você não conhece mesmo? É cambuci e é do mato!". Voltei a reparar na planta, amassei uma folha para cheirar: "É, tem cheiro de cambuci, mas as folhas são um pouco diferentes. Tem certeza que é cambuci?". Ele deu uma prazerosa risada: "Lógico que é, Zé. Só que é do redondo". Então me espantei: "Do redondo? Existe cambuci redondo?". Naquele instante ele entrou em casa e, do congelador, trouxe umas amostras. Não é que era redondo mesmo?!

  A velhice vai chegando, mas a vida não se cansa de nos surpreender. Quem diria que eu veria um cambuci redondo depois de achar que somente existia aquele levemente achatado, tipo disco voador?! Em seguida busquei avistar - e vi! -  outras árvores semelhantes. Que beleza! Espécies assim precisam ser preservadas, redescobertas por seus sabores e suas características inigualáveis graças à floresta preservada, à Mata Atlântica. Precisamos agradecer às comunidades tradicionais, às pessoas tipo Maciel que prezam pela diversidade e reproduzem espécies que nem imaginamos terem participado do sustento de nossos antepassados neste chão, nesta Mãe-Terra. Viva a natureza! Viva o Vale do Paty e tantos outros lugares que nos brindam com essas dádivas maravilhosas!


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O OURO DO JOÃO

 

Salve, João! - Arquivo JRS 

    João Carioca é uma amizade recente, do tempo em que eu viajava muito de ônibus para me deslocar no serviço diário. Bem cedo a gente se encontrava indo para a labuta. Logo nos descobrimos no prosear. Pensa numa pessoa boa de prosa. Assim é o João. Logo ele me confidenciou que foi parceiro do vovô Estevan, no tempo em que trabalharam no terminal da Petrobras, em São Sebastião, no final de década de 1960. O serviço deles era abrir valas para drenagem do terreno. Foi quem me contou da saudade que o vovô sentia da sua terra, das suas coisas, do seu pessoal. Frase recorrente dele ao avistar o mar, de acordo com o João, era: "Ai minha rede, ai minha canoa". Tinha vontade de voltar a pescar esse meu ente estimado demais, cujo nome repassamos ao nosso filho querido.  

    A história do João não começa em Ubatuba, pois caiçara não é. Ele é natural de Volta Redonda (RJ). Por desavenças na localidade causada pelo irmão mais velho, João achou por bem sair  do seu lugar de origem e procurar outros ares. Primeiro foi morar no bairro da Vargem Grande (Natividade da Serra), depois "escorregou" serra abaixo e veio parar em Ubatuba. Sempre disposto a fazer de tudo para garantir uma vida melhor aos familiares, ele passou por diversos empregos até se fixar na Estação Experimental do Horto Florestal onde, pelo empenho e honestidade, encontrou no diretor (Doutor Gentil) um ombro amigo. Transcrevo agora a fato que alavancou a vida desse meu amigo, segundo ele mesmo me contou mais de uma vez:

    "Escute bem, Zezinho. Eu trabalhava e morava no Horto, numa daquelas casinhas feitas para abrigar funcionários e familiares. Então cismei de criar umas galinhas para aliviar nas despesas. Falei como diretor, pedi autorização e contratei um ajudante para a tarefa. Num dos pontos marcados para receber uma coluna da cerca, nos deparamos com uma laje. Tinha espaço bastante para fazer outro buraco e assim escapar daquela barreira, mas eu era teimoso, queria porque queria que fosse ali fincado o esteio. Aquilo foi a minha sorte. Sabe o que tinha debaixo daquela barreira? Um cordão de ouro, um colar. Que fiz eu: levei e expliquei toda a história para o doutor Gentil para ele não pensar que eu tinha roubado de alguém. Para encurtar a história: ele levou o meu achado para ser avaliado em Campinas e se ofereceu em comprá-lo. Com o dinheiro que ganhei (graças à teimosia em abrir o buraco naquele lugar) eu pude investir: comprei uma bicicleta velha e nos momentos de folgas eu comecei a vender verduras. Pegava ali na Marafunda, na plantação dos Matsuoka, e seguia oferecendo os produtos pedalando pelos caminhos. Depois comprei uma carroça para vender areia retirada em pás do rio Grande por humildes trabalhadores e trabalhadoras. (A finada mãe do Ditão era uma dessas mulheres lutadoras. Ela deixava muitos homens no chinelo). Não demorou nada para eu adquirir um caminhão e poder entregar areia nos depósitos e obras mais distantes. Aí só cresci. Teve um tempo que, desde o Ipiranguinha até chegando perto da capela da Marafunda, tudo era porto de areia para  eu fazer as minhas cargas. Ganhei dinheiro, comprei terrenos, fiz casas... Muitas amizades permanecem desse tempo de muita labuta."


   Em tempo: atualmente João mora com uma das filhas, próximo do posto de saúde do bairro, no Ipiranguinha. Proseador dos bons tá ali!

terça-feira, 14 de outubro de 2025

DOENÇA FEIA

 

Noite de lua - Arquivo JRS 

   Tio Dário Barreto, da praia da Fortaleza, divagava em muitas prosas. Acredito que ele inventava bastante coisas para nos impressionar pelas palavras; misturava tudo com as suas experiências e conhecimentos para nos fazer rir e pensar. E conseguia! Todo mundo silenciava para ouvi-lo. Dificilmente ele se encontrava sozinho em algum lugar. Com o passar do tempo, ele ficou lento nas passadas, trôpego das pernas, com vistas curtas, mas nunca perdeu o dom de nos cativar pelas prosas. Certa vez eu perguntei a ele porque a nossa gente não dizia o nome de determinada doença incurável, chamando apenas pelo nome de "doença feia". Eis a resposta dele:

  

   "Saiba de uma coisa, menino: não presta a gente falar o nome de coisa ruim porque isso atrai o que não presta. É por isso que "coisa feia" é dita, para não resultar em mais doença [cusparada] que ainda ninguém conseguiu achar um remédio, não tem cura. Do mesmo modo não se pode chamar alguém de louco, de retardado [cusparada]. Também nunca diga o nome do anjo mau, que zela pelo inferno [cusparada]. Ele vem se as pessoas ficarem chamando. Cruz-credo! [se benzendo] Os nomes têm força, menino. Dentro de cada palavra mora um sentido com força. Ponha mão nessa pedra aí. Tais sentindo a dureza, o limo grudado nela? Tais sentindo o cheiro e o calor dela? Pois é, assim são os nomes! Uma porção de coisas dependem deles, lhe emprestam sentidos, têm força [energia] e afetam a gente ao serem ditos. Por isso eu recomendo: cuidado com as palavras que saem da sua boca.   Quando não puder dar uma guspalhada, bata na boca no mesmo instante"             

   Naquele tempo de criança em aprendi que cada cusparada queria expressar repugnância, coisa que não se desejava; palavra ruim que precisava ser cuspida, sair da nossa boca e se perder no chão. E o ato de se benzer era pedir a benção divina para nos livrar de todo mal, de todas as maldades resultantes do espírito maligno. Ah, como é difícil não se lembrar desses traços culturais!



domingo, 12 de outubro de 2025

SOMBRAS E IDEIAS

 

Sombra e nuvem - Arquivo JRS 

    Uma amiga desde o tempo de infância postou que continuava a olhar as nuvens e ainda enxergava as coisas que a gente via naquele tempo, quando nos deitávamos na areia da praia: baleias, borboletas, corações, barcos etc. Coisa de criança, coisas das nossas fantasias. Crescemos. Muitos de nós nem olha mais para o céu, mas ele está para todos e sempre tem novidades nas nuvens. Dê uma olhada de vez em quando.

    Outra diversão daquele tempo era aproveitar a luz da vela ou da lamparina para, com as mãos, projetar sombras na parede. Cachorro latindo tinha a minha preferência porque era mais fácil de fazer usando apenas uma das mãos, mas meu tio João era o craque no uso das duas, fazia coisas incríveis. Tente fazer sombras com suas mãos hoje, aproveite uma lanterna e se divirta como antigamente.

    As sombras, assim como as nuvens, nos apresentam ideias. Melhor dizendo: as ideias se manifestam porque imagens foram avistadas, imaginadas no céu, nas paredes etc. Enfim, nas possibilidades que surgiam nas brincadeiras do nosso tempo de criança. (Nunca precisou ter um Dia das Crianças!).  Crescemos. Para a maioria nem há sombras das ideias daquele tempo, mas posso garantir de que eram mais solidárias, menos egoístas, mais comunitárias, menos gananciosas. Eram ideias que prezavam pela amizade, pela vontade de ser feliz e de expandir tudo de bom que sentia. Em algum lugar desse universo infinito se encontram as ideias contra a intolerância, contra as mentiras que têm propósitos de conduzir os pobres para a alienação. Alguns poucos sabem - e fazem de tudo! - para dominar o mundo das ideias capazes de reconstruir o mundo em outras bases. (Imagine que agora até forçam ideias militares, via escolas, em cabeças infantis!) Matar a criança que existe em cada um de nós é uma meta dominadora. Triste, né? 

   Gente que me impressiona, segue com força no meu espírito, é gente que não deixa as ideias sumirem das sombras. Coitado daquele que se mantém na ignorância e só pode ler o mundo e os livros literalmente. Pobre daquele que não enxerga nada nas nuvens brincantes e nas sombras emocionantes das paredes. 




sábado, 11 de outubro de 2025

PARTILHA DO PÃO

  

Basta! - Arquivo internet

Decoração - Arquivo JRS

   Todos os dias, bem cedo, me detenho no morro  para  olhar a estrada lá embaixo:  passam   automóveis,   caminhões de cargas,  tropas de burros...  Seguem lenhadoras,  trabalhadores  braçais com  seus    embornais    e    cachorros...    Passam    depressa     os motoqueiros munidos de suas ferramentas... De vez em  quando  um preá ou uma lebre se tecem pelo asfalto também.

  Anteontem, quando uma chuva fina teimava em deixar o amanhecer mais frio, avistei um homem e seu cachorro que sempre seguem nesse ponto do dia para a labuta. Não consigo dizer se ele está com algum tipo de capa para se proteger, mas...pelas mãos nos bolsos, deduzo que sente o frio. Ouço um barulho se aproximando: desponta na curva o fusca branco do Chico da Tiana que trabalha numa fazenda distante sete quilômetros. Vai agora e volta pouco antes do anoitecer, só altera este ritmo aos domingos, dia de descanso. Todos estão se dirigindo aos seus lugares de trabalho. Humildes trabalhadores e trabalhadoras que me fazem lembrar de companheiros de outrora na construção civil e de partes de um poema de Vinicius de Moraes:


    Era ele que erguia casas

    Onde antes só havia chão.

    Como um pássaro sem asas

    Ele subia com as casas

    Que lhe brotavam das mãos.

    Mas tudo desconhecia

    De sua grande missão:

    Não sabia, por exemplo

    Que a casa de um homem é um templo

    Um templo sem religião

    Como tampouco sabia

    Que a casa que ele fazia

    Sendo a sua liberdade

    Era a sua escravidão.


    É assim, né? O trabalho acaba prendendo o ser humano. Pior: escraviza! Acorda, se alimenta olhando o relógio, sai às pressas com a preocupação de não ter esquecido nada, trabalha o dia inteiro muitas vezes sendo humilhado por um chefe ou patrão, volta para casa, toma banho, se alimenta e logo vai descansar para enfrentar um novo dia de trabalho algumas horas depois. E ainda tem gente, dona do capital, que acha pouco! Essa iniquidade exploradora, que atualiza o passado escravocrata, não quer nem imaginar o fim da escala de trabalho 6 X 1, diz que um dia de folga está bom aos seus trabalhadores e trabalhadoras.

    Mas voltando ao meu momento (de observação ao amanhecer): Chico da Tiana breca o fusca, oferece carona ao sujeito. "Agora o cachorro vai ter de correr atrás do carro se quiser seguindo o dono". Foi o meu pensamento. Pensei errado! O cachorro também foi colocado dentro do carro. Ou seja, a solidariedade foi demonstrada aos dois que seguiam juntos na fina chuva: homem e cão. Deve ser isso parte da ampla dimensão do gesto de repartir o pão, né?

    A campanha pelo fim da referida escala deve tocar nossos corações tal como está na poesia:

       

    E o operário ouviu a voz

    De todos os seus irmãos

    Dos seus irmãos que morreram

    Por outros que viverão.

    Uma esperança sincera

    Cresceu no seu coração

    E dentro da tarde mansa

    Agigantou-se a razão

    De um homem pobre e esquecido

    Razão porém que fizera

    Em operário construído

    O operário em construção.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

OS OLHOS

  

Margaridas - Arquivo JRS 

    "O belo é o terrível que contemplamos, sem que ele nos destrua" (Rilke)


    Já era metade da tarde, com um sol cheio de vontade, quando eu e minha esposa, nos deparando com uma frondosa árvore, resolvemos descansar num banco da beirada do rio. A mata ciliar - bem pouca! - se resumia em uma fina borda com variadas espécies de árvores. Uns ipês sustentavam suas últimas flores. De repente eu escutei um barulho, como se alguém andasse levemente sobre as folhas secas. Me virei devagar, avistei um lagarto  -dos grandes! 

    O lagarto seguia calmamente porque não pressentia perigo algum. Eu e minha companheira fomos acompanhando o seu deslizar entre o mato baixo e as pedras pequenas da ribanceira. Nisso chegou um carro, marca Fiat Uno, com dois homens jovens e uma criança que beirava os cinco anos. Deduzi que um deles era o pai da pequena. Subitamente o mais jovem percebeu o lagarto por ali, chamou a atenção para os demais enxergarem o bicho. Viram e se admiraram. Logo um dos parceiros, parecendo ser o pai da menina, pegou uma pedra grande para atirar no lagarto. O que fez a criança? Repetiu o mesmo gesto: se agachou e também pegou uma pedra. Na hora eu e a minha companheira repudiamos aquilo de querer assustar ou matar um ser que vive na beirada do rio, está sempre tranquilo por ali. Como pode uma coisa dessa? Além do adulto fazer uma coisa errada, ainda ensinou a criança a ir pelo mesmo caminho. 


   "Temos dois olhos. Com um contemplamos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro contemplamos as coisas da alma, eternas, que permanecem" (Angelus Silesius)


terça-feira, 7 de outubro de 2025

NEM TUDO É DIVINO

 


Viva a vida! - Arquivo JRS 
   
       Na minha infância, num tempo passado bem antes da metade do dia da minha vida, parece que havia mais religiosidade no ambiente, entre o povo caiçara. Predominava a igreja católica; só no centro da cidade havia duas outras diferentes: a Presbiteriana e a Assembleia de Deus. No bairro do Lázaro estava nascendo a Congregação Cristã. Eram narrativas diferentes disputando fiéis, querendo crescer em todos os sentidos. Criança pode  muitas vezes não falar, mas capta muitas coisas e fica pensando a seu modo a respeito de tudo que acontece à sua volta. Já naquele tempo eu queria entender porque sendo Deus um só havia essas igrejas, tantas religiões diferentes, com pregações diversas que causavam desavenças até mesmo entre alguns dos meus parentes próximos. Uns comentários pareciam justificar o troca-troca de religião: "Fulano, depois de engravidar aquela coitada, se arrependeu, mudou de igreja para mostrar que se converteu. Deus tá vendo!", "Beltrano foi pra tal igreja depois de passar a perna nos irmãos. Quem tá inconformada é a coitada da mãe dele", "Depois daquela briga não fui mais à missa. Quer me achar no domingo? Tô no culto orando!"...     

     Naquele tempo eu já me perguntava, mas tinha medo de comentar com alguém: "Como é possível tantas diferenças nas doutrinas de um só Deus?". Só exemplos das pessoas mais próximas e de algumas lideranças que se empenhavam em defender a justiça como vontade maior de Deus me convenciam de um caminho mais acertado. Veio a adolescência e a juventude, vieram outras igrejas mais diferentes ainda! Pastores motivavam as gritarias, colocavam caixas de som nas calçadas, falavam em "línguas" que não se entendia nada etc. Também o catolicismo se apresentou com novas tendências, cheias de "milagres", investindo em negócios tipo turismo religioso, medalhas milagrosas etc. As festas se tornaram pecado, dançar era coisa do Diabo em todas as vertentes religiosas que estavam no meu radar. (O saudoso Zé Pedro, da Fazenda da Caixa, mestre cirandeiro, me disse assim um dia: "Aqui na Picinguaba agora tem quatro igrejas diferentes, mas todas pregam que a dança é pecado. Por isso não existe mais a nossa Ciranda, tá se acabando tudo"). Após a década de 1970, a televisão ganhou os lares apresentando novidades de longe, inclusive pregadores que estavam ganhando fama mediante a espetacularização do sagrado. Daí chegamos esse modelo, a esse conjunto, como setas indo em todas as direções, incentivando perseguições aos diferentes, amortecendo a religiosidade local, prevalecendo o individualismo, fomentando a ganância, quebrando laços comunitários. Ótimo para quem quer explorar os pobres! A religiosidade foi ganhando outros contornos, aceitando o egoísmo e se conformando com as injustiças. Quem falava contra tudo isso precisava ser calado. A primeira lição cristã (de que as comunidades primitivas tinham tudo em comum, o denominado comunismo primitivo) caiu por terra porque passou a valer a máxima de "quem puder mais chora menos". Percebe a ruína da vida das comunidades caiçaras se aproximando? Percebe a espiritualidade dos mais pobres sendo corrompida por interesses dos mais ricos? Percebe os riscos à natureza única desse nosso lugar, desse chão caiçara?

   Hoje eu sigo nas minhas simples reflexões, recorrendo às palavras para entender melhor os rumos que aí estão sempre no objetivo de alienar as pessoas, de direcioná-las a este fim: mais gente deve concorrer para garantir os lucros de pouquíssimos. Não é difícil concluir de que as vontades divinas não são divinas. São projeções de gente como nós, mas diferente nos desejos: uns querem repartir, outros desejam acumular a qualquer preço. E assim, ao longo da história da humanidade, as teologias foram sendo construídas, elaboradas e reelaboradas. Com visões particulares e revoltas diversas surgiram muitas igrejas e chegamos às "vontades divinas" atuais, sendo opção de cada um abraçar aquela que melhor lhe convém. Na minha opinião, é caminho divino - traçado por humanos, lógico! - querer um mundo mais justo, onde a vida seja intensa e alegre para todos. Pessoas e grupos que buscam resgatar esses valores, destacá-los na nossa cultura pelo o bem da Terra e da humanidade, merecem todo o nosso reconhecimento e incentivo.

domingo, 5 de outubro de 2025

CANTA, MUNDO!

   

Cachorro na cidade - Arquivo JRS 

    Luiz Carlos Lisboa, no livro O Som do Silêncio, escreveu o seguinte:

  Ah, o desperdício de falar, quando há tanta coisa a ouvir de quem não tem nada a dizer. [...] Só é preciso prestar atenção e ficar em silêncio, para escutar a música que vem do mundo. Nela estão as respostas que procuramos, e nela está a certeza de que todas as perguntas são fúteis quando somos felizes. 

 Por mais que coisas terríveis sigam sendo praticadas pela humanidade, músicas brotam do mundo: é tico-tico em cantoria quase encostado na janela da minha casa bem cedinho, é o vento assobiando nas grandes árvores... É a preocupação da minha família e de gente alheia pela minha saúde, é vizinho que chega trazendo uma mudas ("Elas atraem muito os pintassilgos")... É a coragem de um considerável grupo querendo levar socorro pelo mar a um povo destruído pela infame guerra... Tudo é musicalidade do mundo querendo nos dizer algo!

   Músicas brotam pelos poros do mundo naqueles botões das roseiras e de margaridas que logo se destacarão em nosso terreiro e nas vizinhanças, pelos caminhos! Música do mundo me comove nos shows de artistas que bradam por um mundo mais justo! O som do mundo me abarca pelos gestos de partilha, pelas palavras animadoras de alguém que me conhece há pouco tempo... 

   E não é música o carinho gratuito dos animais que convivem conosco? E o que dizer daqueles bichos que, mesmo na movimentada cidade, abanam seus rabos aos se depararem conosco? 

   Que música bela saem dos lindos artesanatos, dos encantadores quadros pintados, das singelas fotografias, das impressionantes esculturas, das maravilhosas peças teatrais, dos desafios temáticos dos inspiradores filmes! E a música da alma que flui num texto literário? E os acordes cativantes que perpassam textos científicos desde uma ínfimo verme até as distâncias siderais? E os pés errantes e as mãos pedintes que possuem sonoridades questionadoras porque já fizeram artes? E o que dizer das peles lisas das crianças e das vestes rugosas de gente mais velha que nos tocam em tons de sabedoria? Tudo é música do mundo!

   Se há música...há energia!   Se há energia...há rastro que encanta tudo ao redor!    Se há música...precisamos saber ouvir!

   Que a música do mundo nos una para fazermos dele um lugar melhor  é o meu desejo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

DIA DE PRAIA

 

Cedinho - Arquivo Clóvis 

   Um conhecido, depois de passar o dia com a família numa praia, veio comentar comigo: "O dia estava lindo, o mar bem calmo, mas muita gente sem educação nenhuma acabou com a nossa alegria". Daí, enumerou um monte de absurdos que a gente já sabe. Creio que foi numa situação semelhante, depois de viver um dia de praia e mar, que levou o escritor Rubem Alves a produzir o seguinte texto:

    O que vi me despertou horror. Não, não amam o mar [...] Como nas privadas onde as pessoas escrevem obscenidades, sem dar conta de que ali mesmo, na parede pornográfica, está uma revelação de sua alma.

   As pessoas não vão para ouvir. Trazem consigo os demônios da agitação. Os rádios urram, cada qual a seu modo, sem que ninguém os ouça, sem que ninguém se importe. Porque não é música que se está buscando: é barulho que silencia o silêncio. Para que as vozes que moram nele não se façam ouvir. E a areia, pele branca e lisa do mar, se cobre de lixo: latas vazias, garrafas eternas de plástico, vidros quebrados, fraldas descartáveis, cascas de fruta, sobras de comida. E ninguém percebia que a areia sentia, que o mar sofria. Espaço invadido por demônios incontroláveis, os mansos perdendo sempre: chegam os rádios, vai-se o silêncio, a correria põe um fim à contemplação, o lixo se espalha sobre o branco. Ao fim do dia, a praia é um campo de batalha, coberto de destroços.

   Tristeza: ali estava a revelação de uma alma, pesadelo... 

   No quadro caótico de final de tarde em quase todas as praias, muito conhecido dos caiçaras, capaz de causa indignação em muita gente, está a alma destruidora da natureza e da paz que ela pode nos proporcionar para enfrentarmos o cotidiano de semana após semana. Ubatuba não pode seguir nesse rumo de destruição. Ousemos no exercício da cidadania!


sábado, 27 de setembro de 2025

SABERES ARTESANAIS, HERANÇA CULTURAL

 

Caiçarada 2025 - Arquivo JRS 


   Ao escutar a palavra herança eu deduzo que alguém deixou algo para outro alguém. É como um presente recebido. Portanto, herança cultural é tudo aquilo que marca uma cultura, que já veio de outras gerações e dará continuidade à atual e futuras. (Assim espero!). Desde quando nascemos (no seio de uma família e de uma comunidade), nós passamos a receber esses traços que marcam a cultura na qual nascemos. No caso da cultura caiçara, alguns exemplos de traços culturais: artesanato, canoagem, pescaria, culinária, religiosidade, causos, etnoconhecimento no geral e no contexto do ambiente mar-terra-serra. Ou seja, a cultura caiçara é a marca dessa minha gente que precisou sobreviver entre a serra e o mar. 

   Serra e mar são a caiçara (cercado, em tupi-guarani) natural de uma determinada faixa do litoral brasileiro, sendo o município de Ubatuba parte integrante. Herança cultural é aprendizagem, tem de ser ensinada! Por isso eu valorizo mestres e mestras desse universo caiçara! Viva toda essa gente que segue reproduzindo nossa cultura! 

   Vovó Martinha buscava junco na lagoa, escolhia depois de murchado, ensinava a fazer tranças e confeccionar chapéu. Vovô Armiro buscava taquara longe para, no terreiro, aprontar os balaios diversos. Meu pai fazia canoa, construía casas de pau a pique, entalhava etc. Minha mãe fazia o pirão mais apreciado por nós. Pedro Brandão corria folia e ensinava as cantorias. Dito Fernandes e Mocinha não deixaram morrer a congada. Tia Nair era craque em fazer e remendar redes de pesca. Neco é craque nos remos, cestaria e tantas coisas mais. João de Souza se destacou como contador de causos. Tia Maria Mesquita dominava a arte da taboa. Antônio Neves, até antes de se encantar pela caiçara de Sete Fontes, era o maior craque no bate-pé. João Zacarias, tio Chico, Pedro Cabral e muitos outros dominavam a arte da pesca. Doquinha, Maurício e outros eram músicos excelentes. Tio Dário muito me encantava com suas narrativas de façanhas exageradas. Vô Estevan e vó Eugênia tinham o dom de contar histórias. Laureana é a mestra do fandango. Vou parando por aqui, mas tem ainda muita gente para entrar nesta lista, sobretudo uma geração nova que muito me orgulha!

   Me inspirei a começar a escrever este quando, na praia do Cruzeiro, fiquei apreciando a corrida de canoa, no festival Caiçarada, na modalidade infantil, quando cada criança remava com um adulto, aprendia e se emocionava na proa que rompia as marolas, chegando na praia sob muitas palmas da plateia! Quer ensino-aprendizagem mais eficiente? É herança cultural se fortalecendo na diversidade cultural brasileira! É cultura resistindo à massificação cultural!

       A Mostra de Saberes Artesanais, na sua quinta edição, é uma oportunidade de apreciar traços culturais caiçaras. Local: Cadeia Velha, no centro de Ubatuba. Vai até 11 de outubro, a partir das 10 horas até a chegada do serão.  Passa lá para ver as obras!


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

SENTIR A BELEZA

 


Arte Di Vicencio - Arquivo JRS 


  Creio que nascemos vendo e sentindo a beleza. A ternura da mãe, o seu olhar e sorriso nos acolhem num primeiro momento, no clarão da vida. Em seguida, o pai, todos os familiares, as visitas... Enfim, uma comunidade que acolhe, direciona cada novo ser e vai revelando as muitas nuances da beleza.

  A beleza externa de cada um também varia com a sensibilidade estética de cada um, com padrões definidos em uma determinada sociedade. E a beleza interna, aquela que motiva a vontade de viver, de não excluir ninguém da vida, de ser feliz e de espalhar a felicidade mundo afora? Rubem Alves escreveu que é esta que "os homens oferecem aos deuses como dádiva". Pode ser mesmo! 

  Quer presente maior que ser solidário com os que sofrem, promover a justiça, escutar ao menos as histórias de vida desse povo andarilho em nosso lugar? Quer dádiva superior a amar a natureza e desejá-la pura, sempre repleta de vida? Quer alegria tão grande quanto em compreender o tesouro da infância, ver os filhos alegres, trabalhando com dignidade? Quer alegria maior do que sentir, em companhia querida ou só, o quanto é amada a sua descendência direta e a sua irmandade? 

  Eu desejo que cada pessoa não se descuide do cultivo incessante da saúde e dessa beleza interior, digna da divindade. Por tal beleza - expressa em felicidade! -, a gente chora e ri. É ela que garante a vida na Terra, esta única beleza paradisíaca. Alguém duvida?


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O COISA RUIM É UMA LEGIÃO

 

Ninho ao vento - Arquivo JRS 

   As coisas próximas de nós nunca estarão totalmente numa boa. Assim também é mundo afora. Barcos navegam por mares mansos, mas também sucumbem em tormentas ou são atacados por maldade. No princípio da história humana, grupos nômades se enfrentavam na disputa de territórios de caça e coleta; mais tarde, os embates aconteciam para ter as melhores terras, se fazerem proprietários a qualquer custo. Países foram fundados, impérios vieram e se foram às custas de trabalhadores escravizados, de muita gente exterminada. Na atualidade, perseguições às minorias, invasões de terras das populações tradicionais, leis elaboradas para beneficiar a  ganância daqueles (que se compõem num número muito restrito de pessoas) seguem a mesma lógica (de exploração em nossa terra e em outras mais distantes). Ser criminoso parece estar sendo legalizado, pode tornar-se moralmente aceitável. Uma lei terrível ronda o nosso Brasil, onde o texto tem a seguinte ousadia: bandidos só serão julgados se seus pares permitirem. Algo mais terrível? Penso no genocídio contra os palestinos praticado pelo Estado de Israel. Tudo começou quando, há cerca de setenta anos, os países ricos, depois de saquearem a Palestina, decidiram criar naquele território outro país. De lá pra cá toda aquela área se tornou um eterno conflito. Imagine você ser tocado da sua casa, ter de ocupar um espaço restrito no seu quintal e terminar sendo perseguido até a morte, chegando assim à solução "abençoada por Yahweh". É esta a vontade de um ser divino? Pode sim se for um deus da guerra!

   Rubem Alves contou, certa vez, a história de um judeu, teólogo amigo dele, que dizia:

   "Depois do Holocausto é preciso dizer que Deus morreu...". E concluiu dizendo que ele não falava assim por impiedade, mas porque amava Deus. Como se dissesse: "Se Deus estivesse vivo, isso não teria acontecido". 

   Fico imaginando qual teor teria esse diálogo na atualidade, como seria a elaboração de uma justificativa teológica para esse outro Holocausto praticado nos territórios palestinos, nas áreas restritas de uma antiga Pátria-Mãe, sobretudo na Faixa de Gaza que, na concepção sionista, precisa ser varrida para sempre. Tenho a consciência de que muitos judeus não aprovam desmesurada maldade, do mesmo nível ou pior daquela impingida ao povo judeu à época da Segunda Guerra Mundial. Um holocausto tem muitas nuances, pode acontecer bem perto. Fico imaginando quantas famílias da minha cultura foram forçadas a se retirarem da beira do mar porque os ideais capitalistas se sobrepuseram aos princípios comunitários. As leis - poucas e baseadas em árduas lutas! - favoráveis aos que resistem à exploração nunca serão aceitas por quem deseja viver às custas dos outros. Sabe a razão? Porque, sempre escutei da caiçarada antiga, "o Coisa Ruim é uma legião".


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

SETEMBRO AMARELO

  

Eis a  Terra -  Arquivo JRS 

      Viver bem: a vida devia ser só isso! 

        Eu estava lendo um texto de Rubem Alves, numa parte em que os médicos estão discutindo sobre o melhor tratamento. "O jeito científico se dá por uma pílula, um bisturi, uma radiação etc. Este é o método científico de pensar e de fazer", continua o autor, "mas eu ando pelo caminho da arte de curar, que é diferente. Acredito que, antes de mais nada, é preciso que se acenda, dentro desse corpo, a vontade de viver. E isto, vontade de viver, é coisa que nenhum prodígio da ciência tem o poder de produzir. E essa chama, que às vezes tem o nome de esperança e outras vezes de alegria, não existe receita que a produza. Só sei que, por vezes, ela se acende com uma única palavra, um único gesto, um único olhar... [...] Nada substitui a fome de viver. Sem fome de viver, o poder que mora no pão só servirá para alimentar os passarinhos. E não há receita para isto: para reacender a esperança e a alegria. Só sei que não moram nem nos remédios nem nos bisturis. Moram nas palavras, nos gestos, nos olhares...". Para terminar, um dos que assistiam a discussão perguntou: "Mas onde é que se ensina a arte de acender de novo a fome pela vida?". 

   Pode ser por um anjo que proporciona um trabalho digno, uma boa moradia, uma boa educação e boas condições de saúde... Pode ser por um anjo que sempre está em sua companhia para compartilhar os momentos... Pode ser por um anjo que ensina a amar os bichos, cultivar um jardim, a produzir alimentos saudáveis... Pode ser por um anjo que valoriza as amizades, a diversidade cultural, de gêneros... Pode ser por um anjo que viaja, se diverte junto com você e carrega junto a carga contra as injustiças de cada dia... Pode ser por um anjo que mostra que a cobiça pode acabar com esta Terra, pois não é preciso muita coisa para ser feliz!