segunda-feira, 28 de julho de 2025

PÁTRIA DOS LIVROS

 

Casarão do Porto - Arquivo Guisard 

   Em época de alguns encontros literários acontecendo nas proximidades, tenho de citar livros e autores. Mohamed Mbougar Sarr, um escritor senegales, escreveu o seguinte em uma história (A mais recôndita memória dos homens), onde uma mulher está se referindo a uma pátria que se defende sozinha. "Que pátria é essa? É a pátria dos livros, é óbvio, dos livros lidos e amados, dos livros lidos e desprezados, dos livros que sonhamos escrever, dos livros insignificantes que foram esquecidos e nem sequer sabemos se alguma vez os abrimos, dos livros que fingimos ter lido, dos livros que jamais leremos, mas dos quais também não nos separamos por nada do mundo, dos livros que aguardam sua hora em uma noite paciente, antes do crepúsculo deslumbrante das leituras da alvorada. Sim, eu dizia, sim: serei cidadã dessa pátria, serei leal a esse reino, o reino da biblioteca".

    Os livros nos permitem viagens fantásticas e uma vantagem principal: não cair tão facilmente nas garras de quem conspira contra a democracia e contra os direitos humanos. No momento, relendo a biografia de Félix Guisard (fundador da Companhia Taubaté Industrial), escrita por Cláudia Martins, faço questão de repassar um dado histórico: 


   Em 1933, as festas da família ganharam mais um lugar. É que Félix Guisard adquiriu um casarão em Ubatuba, chamado Sobradão do Porto. O local fora construído por Manoel Baltazar da Cunha Fortes, comerciante português que depois o vendeu para o Julius Kerstz, húngaro que fez dele o Hotel e Restaurante Budapest e que, por sua vez, o vendeu a Guisard. O prédio foi todo construído com material vindo de Portugal. Até os batentes de pedra vieram com lastro do navio. Félix Guisard fez questão de preservar cada canto da casa, consciente do seu valor artístico.

   Além do sobrado, Guisard também comprou algumas terras e um pedaço da praia do Perequê-açu. A cidade, ainda pouco habitada e também pouco visitada por turistas, oferecia um mar de paz e tranquilidade depois do trabalho estressante da fábrica. Porém, o problema estava em chegar a Ubatuba. A estrada era interminável, cheia de buracos e. quando chovia, o carro atolava na lama e não havia que o fizesse andar. Era preciso procurar a fazenda mais próxima e emprestar uma junta de bois para arrancar o carro do atoleiro. E a viagem pela Serra do Mar durava boas horas.


Em tempo: acabara de ser inaugurada a Rodovia Oswaldo Cruz (Taubaté-Ubatuba), a primeira via rodoviária a adentrar o território ubatubense. Vinte e cinco anos depois seria concluída a seguinte que faria a ligação com a cidade vizinha de Caraguatatuba.


sexta-feira, 25 de julho de 2025

FARINHA POUCA...

      

Gatinho da Maria - Arquivo JRS 

  "Pior que a maldade é a estupidez, a ignorância humana", já dizia o velho Arcelino, um cidadão carioca que, na década de 1970, veio tentar a vida em Ubatuba, se tornou morador do Perequê-mirim. Ele se dava muito bem com o meu pai, bebericavam e proseavam juntos sempre que podiam. Meu velho sempre repartia uns peixes com esse amigo porque ele não era da pesca, não foi criado nessa cultura. A profissão dele? Cortava pedras, entendia muito de granito! (Observação: do Estado do Rio de Janeiro vieram muitos trabalhadores para a extração de granito verde de Ubatuba no final da década de 1960 e seguinte).

      Vez ou outra eu me pego pensando, refletindo a partir da frase acima, desse vizinho de outrora que ousava comentar sempre temas em torno da ditadura militar daquele tempo, da minha infância. "Ah, o Celino enxergava tantas coisas além da nossa visão!".  Agora, lendo um livro do Nicolelis e notando os avanços da era digital, posso afirmar que é atualíssimo essa máxima que ouvi há tanto tempo. Não tenho dúvida de que é a estupidez, a ignorância, que alimenta as maldades. Pior: existe um minúsculo grupo de humanos neste planeta que sabe o objetivo, o que está conseguindo com investimentos em programas baseados na tal inteligência artificial. Essa gente, talvez poucas dúzias mundo afora, espera suplantar a capacidade mental dos seres humanos, ter o controle total, traçar o destino da humanidade. Assim se findará a privacidade das pessoas, os sentimentos de solidariedade, de empatia, de justiça. Quer maldade maior? 

      Quando vemos lideranças religiosas e politicas fazendo de tudo para alavancar a ignorância, sobretudo aos mais pobres, podemos crer em uma coisa: essa gente está em conluio para acabar com a capacidade humana de se indignar com tudo aquilo que tira a vida (nossa e do planeta). É a ambição de não repartir, de sonegar impostos, de controlar governos que garantam essas desigualdades sociais e toda sorte de maldades. Era nessa mentalidade exterminadora que se encaixava a citação recorrente do meu finado pai, da minha gente caiçara: "Farinha pouca, meu pirão primeiro!". Eu, criança de tudo naquele tempo, fazia como um gato: só espreitava e escutava as prosas. Ainda bem!       

domingo, 13 de julho de 2025

SEM SISO NO SISAL

    


    O modesto Jorge cresce cada vez mais na afinação com a literatura e foi um dos curadores do Pirão das Letras, o primeiro festival literário de Ubatuba. Aproveito para parabenizar os demais curadores e parceiros desse evento ocorrido recentemente nessa cidade. Que venham muitos outros!

     Eu tive a honra de apresentar o mais recente livro (Sem siso no sisal) desse estimado e grande amigo. Legal, né? É este sincero texto que apresento agora às pessoas que me seguem no coisasdecaicara.blogspot, nas publicações do Ernesto (Jornal Acontece) e demais leitores pelo mundo agora. 


       Logo no início deste livro, percebi um pouco da história do autor: Jorge Ivam Ferreira. Imaginei a vida dele em Iaçu, no interior da Bahia, e a sua familiaridade com os elementos da realidade nordestina, da lida do pai autodidata que queria os filhos estudando, do irmão que ainda mora lá etc. Pensei: "O Jorge e as suas lembranças de menino". Me veio à mente um poema de T.S. Eliot dizendo isto: "E ao final de nossas longas explorações, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". Ou seja, o autor da novelinha (como ele a descreve) mexe a colher na sua imensa panela e faz aflorar um mundo de beleza dos primeiros anos em família e na vida comunitária. Garimpando as palavras, ele vai nos apresentando o seu mundo e os dilemas possíveis e/ou imaginários diante do assombro que é a vida (porque faz pais desejarem outros destinos aos filhos, força migrações, possibilita encontros e desencontros...). Ao final da história e do suspense, capaz de continuar acontecendo sempre numa sociedade de tantas surpresas, desigualdades e injustiças, notei uma alma que tem um sopro de saudade, sobretudo da solidariedade da vizinhança nas agruras, nos padecimentos da vida. Termino a leitura muito agradecido pelo talentoso baiano que escolheu o chão caiçara de Ubatuba e pela nossa amizade, eu reconheço o bem que nos faz "uma alma que sabe o que merece ser lembrado", como escreveu Rubem Alves. No fundo, o Jorge está repartindo conosco o que foi acumulando em mais de meio século em seu ser.


    Vida longa ao Jorge e à sua produção literária! Vida longa aos que fazem de tudo pela literatura neste chão caiçara!

quinta-feira, 10 de julho de 2025

PROSA COM O MACIEL

 

Tartarugas - Arquivo JRS

    Maciel vive no mato, no alto da serra, mas nasceu e se criou no jundu do Ubatumirim, onde era o estaleiro do padre há décadas. Esse caiçara trabalhador passou pela pesca, foi embarcadista, de onde traz uma experiência inesquecível. Também aprendeu muito na construção civil (prova disso é a sua casa no meio do mato, nas proximidades de Catuçaba, município vizinho de São Luiz do Paraitinga). Na sua área tem de tudo um pouco, trazendo uma vez por semana (quarta-feira) a sua produção para a venda na Feira Agroecológica (final da rua Orlando Carneiro, no centro de Ubatuba). Até vinho de amora está produzindo na friagem da Serra do Mar. A grande novidade do momento é o mel da florada de suas jabuticabeiras. Quer provar? Passa na feira!

    Toda vez que eu me encontro com o Maciel, o assunto é a nossa cultura, os nossos traços culturais. Inevitavelmente o nosso palavreado destoa de muitos que nos rodeiam. Por isso alguém da roda, que escutava a prosa, comentou: "Vocês precisam montar um vocabulário, explicar as palavras que os caiçaras usam". Eu disse que já existe um modesto livro composto pelo João Barreto, meu primo da praia da Fortaleza. Coube ao Carlos Rizzo a editoração. Se esgotou assim que saiu. Também o Peter, da Enseada, produziu um livro no tema das falas caiçaras. Indo mais longe, no ano de 1978 Olympio Corrêa de Mendonça concluiu a tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob o título: O léxico do falar caiçara de Ubatumirim. Portanto, lá estão os falares de muitos personagens familiares ao Maciel. Vale a pena ler, minha gente! Também vale muito uma visita ao Vale do Paty, o sítio desse meu amigo!

   O assunto, por influência dos temperos que o Maciel estava negociando, rodou em torno de gastronomia. "Qual é a melhor parte do peixe, Zé?". Eu respondi, sem dúvida alguma: "É a bentrecha, claro!". Ele concordou comigo. Um dos ouvintes perguntou a nós: "O que bentrecha?". Esclarecemos na hora: "É o ombro do peixe, aquela parte que pega a barrigada". Que saborosa é essa parte do peixe - de qualquer peixe!-, principalmente quando, depois de secagem ao sol, vem acompanhada com a deliciosa farinha de mandioca!

  Muito mais nós proseamos gostosamente. Só faltou, no final, um café com biju. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

A DIDÁTICA DO TIO DÁRIO

Vê o M na parte inferior? - Arquivo JRS 


   Era bem cedo quando eu fui à praia com meu pai para ver as canoas chegando de visitar os tresmalhos. Ah, faz muito tempo isto! Eu gostava muito de ver a tranquila movimentação e admirar os pescados que se ajuntavam nos balaios e fundos das canoas. Também adorava contemplar os desenhos que o sobe e desce das marés deixava no lagamar: eram "árvores" que não se repetiam. Foi naquelas areias molhadas que eu aprendi as primeiras letras: meu pai escrevia e eu copiava ao lado. 

   Tio Dário Barreto tinha uma canoa preta, grande, que dava muito trabalho para dois remadores, mas ela com ela que ele se lançava o mar quase todo dia. Ele era sossegado, falava devagar... Desconfio que nunca teve pressa para nada. Dormi. Numa dessas manhãs, vendo eu ali fazendo os rabiscos na areia, ele ficou contente, disse que foi assim que seu pai também havia lhe ensinado a ler e a escrever. "Naquele tempo não havia escola por perto, menino. Nem sei como o meu pai foi alfabetizado, lia de tudo que aparecesse. Vou agora lhe mostrar como eu fui ensinado pelo meu finado pai". O tio Dário, naquele dia distante, me apareceu num sonho. Pegou uma vareta maior e começou a desenhar. Primeiro foi uma casa reforçada nos traços do telhado: "Aqui na cumeeira está a letra A. Ela aparece na palavra casa duas vezes". E escreveu CASA. A seguir desenhou uma concha: "A costa dela é a letra C, tais vendo? Olha ela aqui no começo da nossa palavra". Depois ele suspendeu um verme do mar, inerte ali perto, depositou perto da palavra casa e deu uma ajeitada com a vara de modo que cobriu o traço do S. "Pronto. tá feito! Foi assim que eu fui aprendendo. Ainda hoje, ao olhar cada coisa, eu primeiro enxergo letras. Faz assim que, logo logo, você vai estar escrevendo e lendo". Em outros dias ele fez outros desenhos com a mesma intenção de me ensinar.  Contei o sonho ao papai. Ele gostou e seguiu o exemplo, a didática daquele caiçara que tantos causos contava na praia da Fortaleza. 

   Não é que ele, mesmo no sonho, estava certo?! Acho que foi daquele dia em diante que peguei o hábito de desenhar no chão e em qualquer lugar que fosse possível deixar uns traços, umas garatujas. Eu era "um perigo" com qualquer pedaço de carvão em  mãos, dizia a mamãe.

      

sábado, 14 de junho de 2025

A BUSCA DE CADA UM

 

Uma ponte no caminho - Arquivo JRS

  Tempos atrás eu me encontrei com o amigo Ni, parceiro de resistência nesse tempo todo, força amiga nas comunidades caiçaras. Dele é a narrativa a seguir:

  "Sabe o Tadeu, aquele pião que apareceu por aqui na década de 1970, que chegou a trabalhar conosco em várias obras? Pois é, ele foi lá em casa pedir ajuda. Tá lá, me auxilia em algumas coisas. Agora já é idoso, mais do que nós, mas não se libertou do vício da pinga. Tenho muita dó. O pessoal me critica por eu lhe dar abrigo, manter ele ali, mas você acha que eu tenho coração para colocar porta afora um ser humano como eu? Se nem cachorro eu sou capaz de desprezar, imagine um filho de Deus! Lhe arranjei um quartinho, comprei colchão novo. Ele come da nossa comida, convive com a gente. Nada sei do seu passado, dos seus familiares. Só sei que veio da cidade de Lorena em busca de trabalho na construção civil, em 1975. E aqui ficou. Desde esse tempo creio que nunca deixou Ubatuba, sempre vivendo pelas obras, em barracos pelas áreas impróprias que foram sendo deixadas aos pobres trabalhadores, às famílias que vieram de terras distantes na esperança de melhores condições de sobrevivência. 

   O Tadeu, assim como tantos outros, me faz refletir sobre a noção de individualidade (que eu considero a manifestação do pensamento que vai se apurando no decorrer da vida). Se o coitado não se libertou desse vício tão antigo, é porque o seu pensamento precisa dele por alguma razão. Depois, tem o corpo que sente a necessidade de determinados elementos que estão presentes na cachaça, né? Mas, pergunto sempre ao pessoal lá de casa, por que o pensamento tem necessidade do vício? Concluo sempre que trata-se de autorrealização. A nossa cabeça comanda o corpo, quer lhe satisfazer para também se realizar. O nosso pensamento sonha desde a infância. E tais sonhos seguem a gente até a velhice, querem se realizar. Nós até nos conformamos em muitos aspectos para contornar os nossos sonhos, mas nem todos são assim, não conseguem isso. Um vício pode ser a solução para quem não admite renunciar aos apelos dos sonhos. Acredito que o Tadeu ilustra essa minha crença. No fundo, somos a realidade, mas estamos buscando a realidade. É o eu querendo conhecer o eu, ansiando pela realização. O Tadeu, coitado, é um dos tantos exemplos de gente que passam a vida inteira nessa angústia. A sociedade não colabora. Ainda mais agora, neste tempo de ideologia egoísta tão forte a ponto de fomentar ódio aos mais pobres, às minorias sociais. Por isso tento ajudá-lo, tornar o fardo dele mais leve. Um dia se libertará. Tenho esperança".

    Eu continuo admirando esse amigo com seu grande coração acolhedor. É um exemplo de alguém que continua regando os laços comunitários que nos trouxeram até aqui e seguem sendo a nossa força. Pessoas assim são pontes em nossos caminhos.


quarta-feira, 11 de junho de 2025

AH, VACINA!

 

Eu e mamãe - Arquivo Ana


  Dias atrás eu fui me vacinar porque acredito na ciência, no empenho de profissionais pelo mundo todo em descobrir fórmulas que previnam doenças ou ao menos as amenize. Ao chegar no posto de saúde, uma competente atendente olhou a minha caderneta de vacinação e exclamou: "Uau, o senhor tem tomado todas as vacinas! Parabéns!". No que eu respondi: "Aprendi com a minha mãe. Foi ela que nos mostrou esse caminho. Lá em casa tem outro documento desse mais antigo, foi completado há muito tempo. Ainda bem, né?".

  A minha saudosa mãe, desde os primeiros anos na praia do Sapé, nos levava ao local de vacinação, no canto da Maranduba, nos mantinha em dia com as aplicações ofertadas pelo setor municipal de saúde e higiene pública daquela época. Mais tarde, na escola primária, também havia campanhas de vacinação. Eu e meus irmãos nunca perdíamos uma, nunca faltávamos à escola para escapar de vacina alguma.

  Vacina como prevenção à gripe a cada ano, vacina contra covid a cada seis meses etc. Ano que vem terei que tomar uma antitetânica. Outras mais podem aparecer. Estou preparado para recebê-las! E pensar que tivemos um ser na presidência neste país que negou a ciência e as vacinas! Além de não levar em frente nenhuma campanha à população, ainda convenceu muita gente, sobretudo pobres, a abandonarem esse hábito que me acompanha desde a infância. Pior: deixou uma herança maldita de políticos que querem desobrigar as vacinações em crianças. Aonde vamos parar? Conheci pessoas que sucumbiram por falta de vacinas. Sei que muitas doenças estão sob controle graças a elas. Minha finada tia Apolônia sofreu a vida toda por poliomielite, teve paralisia infantil porque no seu tempo não era oferecida vacinação contra esse mal.

  Muitas vezes uma pessoa que caiu nessa ideologia nefasta, de não querer vacina, ao ficar doente vai correndo ou será levado às pressas para um hospital público, resultando em gastos infinitamente  maiores do que uma simples dose de vacina. A minha mãe estava certa. Sabia que o nosso socorro estava além das ervas que era usado em casa e na comunidade caiçara daquele tempo, assim como estava certa em querer que estudássemos. Em outras palavras, ela era convicta que o conhecimento liberta.  Ao meu colega tapado, que nega a vacina, perguntei: "Você se arrisca em comer carne bovina, suína etc., que não tem controle sanitário, não recebe medicamentos e nem é vacinado?". Ah, vida de gado!  

  


sexta-feira, 6 de junho de 2025

DESAFIO CULTURAL

 

Rio - Arquivo JRS 

   Escrevi o presente texto para um encontro que deverá ocorrer no bairro da minha infância, o Perequê-mirim, em Ubatuba. Acho louvável o desafio a que se propôs a Vanessa, da família Cabral Barbosa, em resgatar aspectos culturais do nosso querido lugar. A vida comunitária é a nossa base segura, onde os ensinamentos da família se solidificam.  É o rio que sacia a nossa sede. Através do que escrevo, espero ajudar em algo nesse desafio dessa caiçara que se enveredou pelos caminhos da arte, tal como a minha filha e tantas outras pessoas.

   Se queremos vencer a ignorância, busquemos a verdade. É esta que nos liberta.

   Começo assim este texto porque é inegável que a ignorância avança sobre as mentes, sobretudo quando os laços comunitários vão sendo apagados e ideologias individualistas querem tomar e refazer o nosso ser. Assim é com gente, assim  é com o nosso lugar.  Em qualquer caso trata-se de uma perda cultural. 

   Entre 1970 e 1980, o Perequê-mirim abrigou a minha família. Uma praia maravilhosa, com um rio em cada canto e uma lagoa no lado direito. (Faz tempo que uma marina está sobre o local onde até tainhas fisguei um dia); um bairro de vida cultural invejável e com uma equipe de futebol (Esporte Clube Anchieta) respeitada no município. Este time tinha uma sede onde eram promovidos eventos culturais (bailes, espetáculos, campeonato de truco etc.). Hoje, todo aquele espaço do Clube Anchieta se converteu em pontos comerciais e estacionamento para veículos. A moçada daquele tempo, nos fins de tardes, jogava a "pelada" na praia até chegar a escuridão. Em época de carnaval, a molecada maior se fantasiava de mascarados na parte da tarde, num corre-corre distribuía varadas e pregava sustos nos menores pelas ruas. Havia festa junina na escola (que ficava na beira da pista, na esquina oposta à mercearia do Seo Miguel Cabral. Atualmente todo aquele espaço da minha infância está tomado por pontos comerciais). Também nos primeiros anos da década de 1970, o bairro abrigou por anos a Aragon, a companhia que refez a rodovia desde Caraguá até Ubatuba. O antigo local da usina de asfalto e de britas faz tempo que abriga a principal escola do bairro, na área dos Rocha. No sertão está a cratera de onde foi tirada toda pedra a ser britada.

  Defronte a antiga escola, havia uma linda área arborizada, cujo cuidador era um japonês idoso, vizinho do Seo Dito Santo e Dona Vicentinha. (Talvez o Paulinho, da pizzaria, queira falar mais desse personagem singular que até se perfilava no momento do hino nacional e do hasteamento da bandeira uma vez por semana). Nas festas juninas da nossa escola, a grande atração era a dança da quadrilha. Quem comandava os ensaios era o mestre Altamiro, tendo como auxiliar o Dito Carneiro. A quadrilha infantil ficava sob ensaios da Alice e Lúcia, filhas da Dona Ba. Elas moravam na Enseada, no canto direito, onde chegava o Caminho das Três Praias. A festa da capela era no segundo semestre, no dia de Sant'Ana (26/07), com missa, leilão e quadrilha. A rua no entorno era toda enfeitada com arcos de bambus e bandeirinhas coloridas. Carros não circulavam naquelas horas. A zeladora da capela era a Dona Julieta, esposa do Itagino. 

   Outra paixão do bairro era o jogo de malha. Na última vez que o apreciei no bairro, as disputas aconteciam na rua, lateral da capela, onde o chão de areia era ideal para o deslizar das peças achatadas de ferro. (Talvez o Romildo, filho da Dona Aparecida e do Seo Farias, possa comentar desse lazer e dos participantes).

   A cada manhã vários moradores se dirigiam à praia, sobretudo os caiçaras mais velhos, na intenção de olhar o mar e de ver os pescadores chegando de visitar os tresmalhos. Era um prazer ver peixes ainda se debatendo no fundo das canoas ou nos balaios, poder ajudar a puxar as embarcações sobre rolos até a beira do jundu. Uma vez por ano, cantando nas casas e na capela, passava o pessoal da Bandeira do Divino. Quem não queria ver e ouvir esse traço da religiosidade popular?

   Os cultivos no bairro ficavam por conta de banana e mandioca. A família Hyasa tinha a sua área de cultivo (pimenta do reino, beringela, giló etc.) quase no pé do morro, outrora propriedade do Seo Miguel Cabral, onde enormes jabuticabeiras nos proporcionavam prazer graças à bondade dessa família nipônica. (Ainda espero escrever a história desse saudoso samurai, do Seo Hyasa). Em meados da década de 1970, chegaram os Yamada, cuja área de plantação arrendada do Seo Afonso, era depois da ponte, no caminho do sertão, nas proximidades da escola Florentina. Pelo que me lembro, somente um caiçara se dedicava totalmente às verduras e bananas: era o Seo Dito Coimbra, morador do Sertãozinho, onde mais tarde também foi morar o Miguel, filho da Dona Maria Clarinda. Qual será a denominação daquele lugar atualmente?

  Agora, em relação aos espaços de cinema no bairro, deixo a palavra para o meu irmão Domingos, para o filho da Dona Maura e Seo Aristides e outros dos presentes, cujos filmes deixaram suas marcas. Infelizmente, por motivos pessoais, não pude estar presente, rever o estimado pessoal e conhecer gente nova Forte abraço, minha gente! Parabéns à Vanessa pela iniciativa! Até.

       

        

terça-feira, 3 de junho de 2025

CÉU ESTRELADO

 


Força neste dia! - Arquivo JRS 

Noite - Arquivo JRS 


    Querida mana Ana: 

    Eu me acomodo no banco de madeira do terreiro para olhar o céu estrelado, aproveitar que ainda não faz muito frio. Sempre que faço isso me vem à lembrança a paixão da querida sobrinha, da sua filha Joseana. Há um ano ela partiu, deixando apenas o céu estrelado como referência. Pascal, o pensador, escreveu que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". A vida-luta de cada dia era dela.

     A nossa querida nos deixou no silêncio triste, mas ouvimos sempre suas falas, suas angústias, suas conquistas e seus desafios incompletos. Em minha família, na sobrinhada espalhada, nos andarilhos que vagam pelas estradas e no tanto de gente que segue enfrentando o grande oceano com suas infindáveis vagas, eu enxergo a Joseana. É por isso que digo: A Jô permanece entre nós porque o seu carinho, o seu empenho, as suas angústias, as suas alegrias são as mesmas de toda gente que deseja um mundo melhor, uma sociedade mais justa, um espaço de boas risadas como ela gostava. 

     Olho o céu. Lua e estrelas oferecem luz para todos. A nossa querida das tatuagens, passando em nossas vidas, também deu a sua luminosidade. As estrelas seguem sendo parte da sua luz neste céu imenso que contemplo sempre. O que eu desejava a ela, eu continuo desejando a todo mundo: paz e bem.

     Foi buscando a paz que ela fez o seu caminho. Foi perseguindo o bem que ela usou o seu ser. Paz é fácil de entender. Bem é algo mais complicado, mas a nossa Jô, uma das nossas fofuras queridas, se pautava no bem como enfrentamento das injustiças (por isso era intransigente), como tentar ajudar quem precisava (por isso perguntava sempre), como conviver bem com o nosso entorno (por isso adorava festas).  Ela notava,  comentava as hipocrisias e enfrentava as situações adversas com a cara limpa porque perseguia a felicidade, pois sabia que ela é a razão do nosso ser. À felicidade é que somos talhados. 

     A sua filha via demais, Ana, captava muitas coisas, ousava além das próprias forças... Neste sentido escreveu o velho Nietzsche: "Quem vê demais, acaba não cabendo em lugar nenhum". E ela não coube nesta realidade porque o seu sonho era muito maior, tal como este céu estrelado visto desse banquinho plantado no nosso terreiro. O coração dela, assento da consciência, se decidiu pelo mais difícil. Em nós restou o grito de muita gente representada pela sua viagem no caminho das estrelas. Olhando estas, eu vejo a sua passagem entre nós, o seu presente que nos coube. Estava certa a sua amiga Karen quando escreveu que "ela nunca esquecia de presentear quem amava". A luz que irradia do céu estrelado é o seu presente para nós. Ela viajou, seguiu a razão dela. Mais que isto ainda não consigo fazer, pois consolar continua sendo um aprendizado difícil. Em memória dela, continuemos a cultivar o nosso amor-saudade. Beijos e abraços nossos, querida Ana.

Em tempo: de dia, do mesmo banco, eu aguardo a tinticuia (manacá da serra) da nossa Fufa florir. De noite, olho as estrelas. A memória não esquece aquilo que o coração ama. 


sábado, 31 de maio de 2025

A SÉTIMA ARTE

 

Lá longe o mar - Arquivo JRS 

    Vanessa Cabral era uma criança nas minhas lembranças da década de 1970, no Perequê-mirim. Eu a via muitas vezes passeando, sempre bem arrumadinha, com roupas bonitas,  de mãos dadas com a mãe nos arredores ou brincando na praia, bem em frente da casa dos avós (Seo Pedro Cabral e Dona Ana). Passou o tempo, vieram as redes sociais, Vanessa cresceu; estabelecemos contato porque ela também se interessa por coisas de caiçara, pela história da nossa terra. Assim como eu, ela acredita que manter a viva memória do nosso povo ajuda na resistência e na preservação do nosso lugar, da nossa cultura. Está na área da Arte a filha da Nely Cabral? Que bom! Concordo com o velho Nietzsche que disse o seguinte: "Temos a arte para não morrer da verdade". Dias desses ela me perguntou a respeito do cine clube que funcionou nos fundos do Bar e Bilhar do seu tio Aristides Cabral. Eu não pude lhe ajudar em nada, mas lhe contei que outro tio, Miguel Cabral, possibilitou a muita gente assistir filmes no espaço que lhe pertencia, onde mais tarde existiu o Bar Orly, do Severino e da Nilséia Nascimento. (Neste estabelecimento eu fui registrado dos 14 aos 18 anos, época que me mudei para o bairro da Estufa depois de ter morado por 11 anos no Perequê-mirim).

   Miguel tinha uma sortida mercearia num dos acessos àquela maravilhosa praia, na esquina oposta à escola do bairro. Na verdade, a área dele era bem grande, abrangia várias casas. A outra mercearia do bairro estava localizada no outro acesso para a praia: era do Aristides, seu irmão. (Seo Jorge Coelho foi arrendatário mais tarde. Recém chegado do Estado do Rio de Janeiro, era sogro da pasteleira dona Margarida e pai do Jairo. Se estabelecera um tempo antes como açougueiro num espaço alugado, ao lado da mercearia do Miguel. Prosperou tendo o filho como parceiro). Não havia bares naquele tempo, na década de 1970. Somente o Tião Caçuroba tinha uma barraca no terreno do Almeida (depois Perequim), onde a freguesia principal era aos domingos, nos dias de jogo no campo, na área atual do supermercado do Pai. Logo esse outro ponto comercial do Miguel, do lado de cima da pista, localizado entre as propriedades do Almeida  e do doutor Sidnei, se tornou uma referência, sobretudo aos bebedores. Havia um salão grande, além do espaço do balcão e das mesinhas. Era ali que, por um tempo, assistíamos aos filmes. Quem tinha o maquinário era o senhor Valter, de Taubaté. Também era tarefa dele esticar um grande pano branco na parede para servir de tela e organizar cadeiras e bancos de madeira. Os filmes vinham em latas redondas e achatadas. Mazzaropi, Zé do Caixão, todos os ídolos do faroeste americano entraram em nossas vidas graças a esse espaço proporcionados pelos Miguel Cabral, o Seo Miguel. 

    Dias atrás, conversando com o mano Domingos, fiquei surpreso: "Claro que eu me lembro do cinema do Aristides! Eu fui assistir muitos filmes lá! Você não ia porque já trabalhava no Severino e estudava à noite na cidade, no Deolindo. Era legal. Quem fazia a projeção era um homem que chamavam de Boiadeiro". Então eu deduzi que esse senhor era o pai do meu colega Silvio. Por um tempo eles moraram na Enseada, quase na subida do morro do Maciel, não muito longe  do Veiga. Só não tenho certeza de que era ele mesmo quem projetava os filmes. Talvez alguém mais antigo no bairro possa ajudar a Vanessa nesse resgate. Resumindo: o único cinema da cidade era o Cine Iperoig, mas era muito difícil sair dos bairros para desfrutar dos prazeres da sétima arte. Então, os irmãos Miguel e Aristides nos proporcionaram conhecer artistas, estilos e viver aventuras através das projeções em seus singelos espaços. Viva o cinema!

 


domingo, 11 de maio de 2025

CHÃO DO MUNDO

 

  

Uma rosa - Arquivo JRS 

    O velho Ronisvaldo, reacionário toda vida, ainda não de todo velho, mas aposentado, resolveu-se pelo casamento. Começou a pintar os cabelos, não deixou crescer barba e bigode para não mostrar os fios brancos. (Não tem como escapar das malhas do tempo, né? Porque a idade só cresce - para todo mundo!). Lhe disseram que em igrejas é mais fácil conseguir um namoro, arranjar casamento. Por este caminho foi o velho Ronisvaldo. E apareceu mesmo uma moça, aparentemente de boa família, mas com um pai beberrão devido aos traumas da caserna. (Eu desconfio que ele teve de participar de coisas horríveis, tipo tortura). Religiosa fanática, a moça cujas raízes vinham da região  nordestina, aceitou a parada, foram morar juntos. Depois se casaram porque, na igreja, começaram a surgir uns comentários maldosos. Se mudaram, alugaram casa à beira mar. Que felicidade! O velho, orgulhoso da vida, arranhou a poupança e proporcionou uma viagem em lua de mel. Na volta até comprou um carro novo. No início quis regular o uso para a esposa, mas com o passar do tempo não teve jeito porque ela, bem mais nova do que ele, queria rodar, ver as novidades, ter a autonomia que o pai nunca permitiu. E ele? Ah! Já estava cansado, confirmando a verdade de que o corpo se vai bem mais rápido que a cabeça.

    Passaram-se anos. Até tinha me esquecido dos pombos reacionários que um dia quiseram me diminuir porque se achavam melhores que o meu povo, "essa caiçarada atrasada que nem merecia estar perto do maravilhoso mar".  Eu soube tempo depois que o velho tinha morrido. Pensei na hora: "Bom para a esposa. Ainda deve ter um resto de poupança do finado muquirana".

      Na semana passada, enquanto eu estava cuidando de umas plantas na beira do caminho, divisei duas mulheres que portavam uns galhos secos (lenha) e seguiam conversando alto, como se estivessem perto de uma ruidosa cachoeira. Você acredita que uma delas era a viúva desta história? Ah! Que mundo pequeno! As duas companheiras estavam a prosear:

- A Maria perdeu as duas novilhas que levou para o sítio. A primeira sumiu, depois levou outra que também desapareceu.

- Pode ser que tenham sido roubadas ou comidas por onça.

- Será que onde ela tem o sítio existe onça?

- Lógico que tem! A Carminha, que foi uma vez lá, disse que escorregou num barranco e lá embaixo viu muitas pegadas de onça. Esconjurou: "Nunca mais volto naquele lugar, nem que me pague".

- E se foram roubadas porque alguém estava querendo comer?

Nesse momento a dita viúva suspirou:

- Acho que até eu comeria com satisfação uma novilha feito churrasco.

  As duas continuaram a falação caminho afora enquanto eu pensava e repetia o surrado chavão: "Como este mundo é pequeno!".

sábado, 3 de maio de 2025

LUZ ACESA

Serão caiçara - Arquivo JRS 

  

    Já tinha anoitecido quando fui seguindo a rua principal do Sapê, o bairro onde nasci. Naquele tempo o final dela era justamente no terreiro do vovô Estevan e da vovó Martinha, onde brincávamos, colhíamos frutas, fazíamos fogueiras, tomávamos banho no rio etc. Depois dali era o território chamado por todos como Queimada. Com o advento do turismo, não demorou muito para tudo aquilo, até divisa com a praia da Lagoinha, virar um grande loteamento. Também foi rápida a ocupação, inclusive da vargem. Hoje está muito feio aquele pedaço do meu berço original. Há anos que aquele lugar produz muito esgoto, está contaminando tudo e percorrendo as veias que deságuam no canto da praia da Maranduba. Eu seguia pensando tudo isto enquanto se aproximava do chão outrora cultivado pelos meus avós  e seus filhos. Atualmente somente o tio Dito Félix e familiares moram ali. Resistem, né? 

       Voltando ao meu momento: era noite fechada quando eu passava defronte da casa do tio. Da rua, pela porta aberta, eu avistei a luz acesa na sala. Tudo estava em silêncio; não tinha ninguém à vista. Em sagrado silêncio aquele espaço continuou porque eu apenas estava de passagem, indo em direção ao Sertão do Ingá, onde haveria uma cantoria de reis na casa dos irmãos Mané e Toninho. Pensei na hora: “Hoje o tio e seu pessoal não irão no evento e farão muita falta nas vozes e nos instrumentos. Nesta noite a nossa prosa não será tão animada”. 

      Era noite sem luar. Somente na casa do meu querido tio havia uma luz acesa. Dali em diante era trilha escura pela mata que a todos servia.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

PACIÊNCIA NÃO BASTA!

 

Arte do Gallo em Caraguatatuba - Arquivo JRS 

     “Firmino sabia que precisava ter paciência com aquelas obras da prefeitura, que prometia uma cidade limpa e arrumada”. Desde criança somos acostumados a escutar que precisamos ter paciência quando os poderes públicos (municipal, estadual ou federal) - sustentados pelos trabalhadores ! - parecem estar inertes, fazendo coisas que nem parecem importantes ou até mesmo prejudicando quem já é tão prejudicado no dia a dia. Muitos desabafam nos comentários quase sempre descomprometidos, outros procuram um jeito de se encaixar no esquema de mamatas que recheiam os espaços dos poderes públicos. A maioria apenas sofre  as consequências dos descasos, dos abusos que fazem com a sua contribuição (impostos, tributos etc.). Firmino se perguntava: “Fazer o quê?”.

      Em qualquer terreno que está sem uma vizinhança atenta vemos lixo, entulhos, móveis velhos etc. deixados na maior tranquilidade, enfeiando e atraindo animais indesejáveis. Não tem uma secretaria municipal para ver isto? Carros velhos são abandonados rente das calçadas, impedindo até a varrição. Cadê o pessoal que cuida do trânsito em nossa cidade? A  guarda municipal não pode intervir (notificar, multar, guinchar...)? Na entrada de um conjunto residencial na beira da rodovia, no bairro onde passo pedalando sempre, no lugar que era tudo gramado por ocasião da inauguração, agora tem ferro velho se acumulando, dando um mostra muito negativa do urbanismo em nossa cidade. São alguns exemplos, mas muitos outros não faltam.

     No mês passado, minha mana desabafou: “Fui no posto de saúde, tomei vacinas contra a gripe e covid. Sabe que eu fui atendida por funcionárias terceirizadas? Por quê não chamam o pessoal que passou no concurso? É injusto isto!”.  Eu respondi: “Parece que não desejam arrumar a cidade como deve ser arrumada, né? Como vimos em outras épocas, dá-se um jeito para contemplar uns poucos em detrimento de outros. Pior é isso que deixa trabalhadores mais fragilizados, se submetendo às tramoias da terceirização. Quem pode ajudar a arrumar, de fato, são os vereadores, a promotoria pública, a sociedade civil organizada, a gente exercendo a cidadania, desejando uma gestão eficiente e humanizada em todos os aspectos”.

 

domingo, 20 de abril de 2025

LUZ FRACA, DE LAMPIÃO

 

 

Arte: Gildásio Jardim

     É comum escutar absurdos sempre, sobretudo neste tempo de mentira alçada à categoria de virtude, a elogiar gente desonesta que quer o pior mundo aos pobres. No universo caiçara não é diferente. Quem nunca ouviu besteiras e até mesmo falas odiosas contra negros, indígenas, nordestinos etc.?

     Estou lendo uma biografia de Lampião, cujo autor (Frederico Pernambucano de Mello) esclarece um monte de pontos e coloca questões nem sempre tão perceptíveis assim. Por exemplo: “a geografia do cangaço se esmerava em decalcar as linhas secas da geografia da fome na região, oriundas de razões naturais e sociais conhecidas de longa data”. Era realidade há cem anos. E não é assim ainda hoje? Não são essas as principais condições que continuam impulsionando as migrações na atualidade?

    No caso dos migrantes nordestinos, depois da Depressão de 1929 a 1934, “se aproveitava o governo paulista para custear a emigração sistemática de sertanejos para os campos de café e açúcar”. Ou seja, o grande estado produtor do Sudeste se elevou ainda mais graças à mão de obra de quem? Só que hoje, haja vista as besteiras que estamos sujeitos a ouvir de “gente de bem”, prevalece um tom de queixa, de repúdio aos descendentes desses que, para São Paulo e outros estados mais ao sul vieram, foram buscados. Essa gente preconceituosa e maldosa, quase sempre a reproduzir narrativas de uma elite que se fez às custas da exploração de concidadãos historicamente injustiçados, arrota “ares de nação invadida pela pobreza indesejável”. A maioria não sabe ou não quer admitir que tal realidade mais endinheirada é decorrente de uma eficiente estrutura montada para aliciamento de braços produtivos de outras regiões e até mesmo de terras mais distantes. Imagine, então, as narrativas contra nordestinos e/ou descendentes que amealharam riquezas no Sudeste e Sul! E o que dizer se um sobrevivente dessa geografia da fome e das desigualdades sociais chegar a presidência do Brasil?

      Entrei neste assunto porque cansei de escutar migrantes e descendentes de mineiros, de paraibanos etc., vizinhos meus, se aproveitando da miséria alheia, mas falando mal dos pobres do nosso lugar, quase sempre pessoas vindas dos mesmos lugares que eles para tentar vida melhor em Ubatuba. Quem lucra mais com essa ideologia discriminatória, de racismo, predisposta a se aproveitar dos outros e a não ter nenhum respeito pela natureza que nos circunda e é a nossa maior riqueza?

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

UMA MENTIRINHA

     

Noite de luar - Arquivo JRS 

    Um senhor estava no ponto do ônibus com uma menina. Eu  os  reconheci,  mas  eles não  me  viram porque a baixinha chorava e esbravejava muito com o avô, sem educação, lhe gastando a paciência. 

     O avô, seo Luiz, há anos perdera a esposa, dona Tereza. Essa neta estava com eles desde que nasceu. Continuei andando e pensando num jeito de ajudá-lo a resolver aquela situação com a neta.    

               Avistei o Jota, um desconhecido deles. Lhe propus o seguinte: “Chega naqueles dois que estão dando aquele show na esquina da parada de ônibus e diz assim: uma mulher chamada dona Tereza me apareceu no sonho na noite passada e disse para eu repassar um recado para um senhor que estará discutindo com a neta. Acho que a mensagem era para este momento, para vocês. Posso dizer agora? A mulher do sonho, a tal Tereza que eu nunca vi, disse que não está  tendo paz porque vocês dois tem brigado demais. E isso não pode continuar  entre avô e neta. É um inferno isso”. O Jota topou; fiquei de longe assistindo. Não é que deu certo?

    Tempos depois eu encontrei o seo Luiz e o convidei para tomar um refrigerante na barraca do Tião. Foi quando ele contou do ocorrido: “A minha finada esposa me mandou uma mensagem, por meio de um rapaz muito educado, de onde ela está. Disse que é para a minha neta não ficar brigando comigo e ter mais paciência comigo e com outras pessoas, sobretudo da família. Sabe que depois as coisas melhoraram muito? Foi Deus quem permitiu a ela se comunicar com a gente. Aleluia! Eu só não sei porque ela não falou diretamente comigo e com a neta”. Eu, todo atencioso, concordei. Fiquei contente pelo resultado. Uma mentirinha ajudou aquela família, né? O ruim é que agora ele vai seguir espalhando esse “contato” do mundo dos mortos com o mundo dos vivos, esse privilégio que ele teve. E tem mundo dos mortos?

 

sábado, 12 de abril de 2025

ÁRVORES E PESCADORES

Aroeira cortada- Arquivo internet


 A aroeira do Alfredo Vieira e do papai”.

Assim dona Clície me falou.

Edson, do Antônio   Atanázio, depois confirmou:

“Era jundu tudo aquilo; um deles a  plantou”.

 

Ali era o caminho deles.

“Nunca é demais uma sombra!”.

“E, de ver passarinho, quem nunca gostou?”

Pois é, obedecendo ordem alguém a cortou.

 

Sob pretexto de doença?

Desculpa de urbanismo?

Um poder econômico o corte solicitou?

Foi a propaganda quem ganhou?

 

A aroeira dos frutos, dos banhos nas redes...

“Quem vê o anúncio com ela ali?”.

A aroeira do velho Vieira e do Fifo (João Serpa) alguém cortou:

Outra etapa da “boiada” que passou.

 

“Nem só de ingênuos e reacionários vive a cidade”.

Do alto da serra não se enxerga,

Mas bons frutos aqui vingou:

Minha gente de outra geração uma muda nova plantou.

 

Ações irracionais...volta da barbárie...

“A aroeira do Alfredo Vieira e do papai”...

“Estão plantando outra”, alguém comentou.

“Acertem as canoas porque a maré mudou”.

 

 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

PEIXES COM SEDE

    

Amanhecer - Arquivo Clóvis 

     Estávamos na escola. Descobri um espaço totalmente fechado, cheio de livros, como se quisessem esconder de todos, sepultá-los para sempre tal como eu fiz com a velha carcaça de um aparelho antigo. Desconfiei da diretora reacionária. Teríamos apenas duas aulas, depois seríamos dispensados. Alunos na aula de educação física brincavam de pular corda. Defronte a uma sala do corredor vi serragem formando imagens tal como a procissão de Corpus Christi. Admirei a iniciativa da turma daquela classe. Interessante que os passantes não destruíam a obra; a cena tava perfeita no piso do corredor.

  Num outro momento, eu e mais pessoas estávamos num canto de praia. Mingo falou: “Lá vem Desireé, se transferiu pelo Banco do Brasil, veio de São Bento.” Ela passou por nós, apenas cumprimentou e se foi empurrando a bicicleta. Marli estava ao meu lado, não disse nada, mas procurava se segurar em mim. Elogiei o carro que ela tinha. Parece que se arrependeu de vendê-lo. Vera diz que não gostava mais da costeira da Enseada porque lhe mudaram o nome antigo. (Eu nem sabia que tinha outro nome aquela costeira. Porém, a Vera nasceu lá, né?!). Era o entardecer, a noite vinha chegando. Mingo falou de uma sorveteria ali perto. “Eu pago.” Marli estava quieta, era muito religiosa, uma beata, disse que iria na igreja se confessar porque teve um desejo, cometeu um pecado. Eu, junto dela, apenas falei que era bobagem, não tinha nada demais. “Você não prejudicou ninguém,  menina. Deixa disso.” A sorveteria era num precário rancho, mas os produtos pareciam maravilhosos. Pedimos os sorvetes. Mais gente chegou, mas a atendente continuava dando toda atenção ao nosso grupo. Pensei algum tempo depois: “É assim mesmo a nossa vida. Tem uma fase que poucas coisas nos preocupam porque somos jovens, andamos com poucos compromissos, sem pensar muito além de cada momento que vamos vivendo. O que importa são as amizades, tudo de bom que vivemos juntos”. Assim era a nossa vida, sem nenhum aparelho que tomasse o nosso tempo, nos deixasse isolado dos outros. Mais importante era a convivência, a alegria de estar em grupo. Queríamos viver; éramos peixes com sede.

 

segunda-feira, 7 de abril de 2025

ADEUS, CAMILA

    

Uma rosa foi cortada - Arquivo JRS 

   Eu me detenho e tiro minhas conclusões após ler determinados comentários, sobretudo femininos, no dia da morte horrível da minha estimada Camila, colega de profissão que tão arduamente conseguiu se formar e trabalhar junto comigo, no bairro das nossas habitações, onde ela nasceu.

    Algumas mulheres são favoráveis aos projetos da extrema direita, estão defendendo projetos de uma sociedade patriarcal pronta para violentar, matar as mulheres e outras minorias sociais tão fragilizadas.  

     Essas mulheres também querem o fim da lei Maria da Penha, admitem que ter uma filha é uma “fraquejada”, estão de acordo que homossexuais devem ser perseguidos, que os povos indígenas não merecem terras, que os dependentes químicos precisam ser castrados, mortos etc. 

   São essas mulheres que concordam que os negros são inferiores e sempre suspeitos em qualquer lugar.  

    Essas mulheres, algumas mães desde já, torcem pelo fim dos direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores organizados em sindicatos ao longo de séculos. 

     É isto mesmo que estou entendendo mediante alguns comentários de mulheres que parecem não se importar com mais uma companheira barbaramente morta, querendo passar pano para a extrema direita, votando em gente que tem esses pontos programáticos e são contra os Direitos Humanos? Mulheres com essa mentalidade direcionarão crianças em qual direção, a qual modelo de sociedade?

   Se sou o que sou, devo muito às mulheres que fizeram parte da minha vida, que estão ao meu lado sempre (a minha irmã, a minha filha e a minha esposa querida). Camila fez parte da minha existência, labutamos juntos em salas de aulas, planejamos atividades, discutimos problemas da escola etc. Meus sentimentos aos familiares dela. Forte abraço. Basta de violência!

domingo, 6 de abril de 2025

A CASA

 

Uma casa na cidade - Arquivo JRS 

   Me detive na praça 13 de maio com imagens de Ubatuba de outro tempo. A primeira delas foi quando o estimado professor Osmildo, que  aguardava no final da linha dos ônibus, nos levou até o seu apartamento, no edifício Andorinhas. Era meados da década de 1970. Lá conhecemos sua reduzida família, tomamos café. Depois ele nos conduziu ao ginásio “Deolindo” e fez nossas matrículas para a quinta série. Éramos dez crianças; morávamos, a maioria, no Perequê-mirim. Nos deslocamos apreensivos os dez quilômetros que distava a nossa escola primária do centro da cidade. Fomos em ônibus circular, sem a companhia de nenhum adulto.  O professor nos matriculou naquela enorme escola, fez a vez dos nossos pais. Ele sabia que só assim era certeza que continuaríamos os estudos.

   A segunda imagem era da casa da Maricarmen. Simples, bonita, com uma oficina onde seu pai exercia o ofício de serralheiro. Seo Zé Marroquino (Guadix) foi o primeiro profissional que eu conheci nesse ramo. Eu achava lindo os portões aparecendo depois de ferros serrados e soldados. Creio que o mais importante trabalho dele foram os lustres que fez para a igreja matriz, sob encomenda pelo frei Angélico, em 1982. Também deste ano é o altar em formato de barco, obra do mestre Jacó Meira.

   Numa noite dessa eu sonhei com aquela casa, só que parte dela estava em ruínas, contrastando com as do entorno da atualidade. Até pensei que ninguém morava ali devido ao estado precário da fachada, mas logo avistei a mãe da minha colega de ginásio. Vi que só ela habitava a casa. Parei para prestar atenção e notei que a oficina ainda existia na lateral. Foi quando eu avistei duas pessoas, guerreiros portando espadas, querendo invadir o espaço. O que fiz? Me coloquei do lado de dentro, no espaço da oficina, e passei a defender o local. Depois que acordei me pus a pensar: Por onde andam a filhas daquele casal tão tranquilo que nos viam sempre circulando por ali, brincando na praça (toda plana naquele tempo!) enquanto esperávamos ônibus? Por que eu defendi a casa dos ataques? Qual a mensagem do sonho?

   Casas antigas e casas velhas, abandonadas, chamam a minha atenção sempre. Diante da casa da imagem postada acima, na cidade de Guaratinguetá,  notei as janelas fechadas por blocos. Imaginei ali moças debruçadas, olhando a movimentação no entorno. Do lado oposto havia um pintor a retratá-las sob o   título:  As moças na janela. Talvez ali morasse umas das Cinco moças de Guaratinguetá,  obra de Di Cavalcanti pintada em 1930.

sábado, 5 de abril de 2025

PIRÃO DAS LETRAS

 

Imagem piraodasletras

     Eu acredito que é o pensamento que caracteriza  a alma. É conhecendo que a alma se forma, cuida de si, se alimenta. Logo, devemos estar numa eterna busca do conhecimento. E onde buscamos o conhecimento?

     Sem dúvida alguma que a arte é o veio principal de fruição do conhecimento. Arte é cada utensílio que a humanidade criou, cada maneira de expressar nossos sentimentos, cada forma de aproveitar os recursos que permeiam a nossa existência... Arte é a forma de arranjar as palavras querendo criar outros mundos, mostrar que eles são possíveis, tal como quem cozinha ao juntar ingredientes diversos numa panela para depois resultar num alimento que nos sustenta. Creio que o Pirão das Letras tem esta finalidade dentre outras: sustentar nossas almas.

     Pirão, prato tão típico da cultura caiçara, é uma composição de peixe, água, ervas, banana verde e farinha de mandioca, podendo incrementar com mais coisas. Também tem pirão de caças, de aves etc. Pirão, desde os primórdios, era a base alimentar do povo que subia e descia morros com cargas do roçado, que remava e puxava rede no lagamar; que labutava nos afazeres domésticos e festejava em qualquer oportunidade, que dançava gritando alegremente “Amanheeeeeeeece!”. Pirão sempre foi a "sustânça" do meu povo!

    Então... estou feliz por captar a intenção do Pirão das Letras como um veio artístico de resgate, de preservação e de oportunização de outros olhares sobre nossas heranças culturais (referências sobre quem somos e o mundo que queremos, ou seja, a nossa alma que se faz pelo conhecimento que herdamos, construimos e repassamos).

    É isto: Pirão da Letras é uma iniciativa louvável de celebração da literatura, da arte literária, sobretudo daquela produzida em Ubatuba, da celebração da alma da cidade! O primeiro evento deve acontecer entre 12 e 14 de junho, na praça Anchieta (defronte ao Casarão, na boca da barra do rio Grande). Venha se informar e participar!