terça-feira, 16 de setembro de 2025

A VIDA DE UMA CANOA

Maria Eugênia e vô Leovigildo

 
Maria e Célia - Arquivo JRS 

  Pouco mais de vinte anos separam as duas imagens acima. Na primeira, Maria Eugênia, criança ainda, sentada sobre a última canoa de capurubu talhada com esmero pelo vô Gildo, no jundu do Itaguá, no terreno na beira da estrada, no lado oposto ao rancho dos pescadores, próximo da rua Holanda Maia. Tenho quase certeza que aquela árvore foi o último capurubu do Itaguá. Na segunda, Maria e Celinha posam junto à canoa CERNE, na ocasião da corrida de canoas do festival Caiçarada 2025, na praia do Cruzeiro, a Yperoig do povo Tupinambá.

    CERNE é aquela canoa talhada no grande capurubu por meu saudoso pai. Segundo André Damásio, hoje ela pertence ao Nélio, caiçara da Barra Seca, um dos remadores de destaque dessa geração que busca preservar a cultura caiçara.  Não  é emocionante ainda poder apreciar um traço cultural deixado por nosso pai? Não nos comove ver jovens remadores em suas potentes remadas abrindo a água e ganhando posições em tão singular canoa?

    No momento da segunda foto, contei ao André, Maria e Celinha que, na primeira travessia daquela canoa, eu remei com meu pai e o "Major". Foi uma procissão marítima, idealizada pelo Ney Martins, cujo percurso era capela do Itaguá -  porto do Cruzeiro. Era uma tarde de mar revolto, frio e com ventania regular. 

       Vida longa à canoa CERNE e à tradicional corrida de canoas do povo caiçara!

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

BEBENDO ÁGUA DO RIBEIRINHO

Flor de maracujá - Arquivo JRS 


Lá vai São Francisco pelo caminho

De pé descalço, tão pobrezinho

Dormindo à noite junto ao moinho

Bebendo água do ribeirinho...


     Este trecho de uma música já antiga, composta por Vinícius de Moraes em parceria com alguém que não me lembro agora, me convoca a refletir sobre a juventude que caminha neste mundo a cada manhã e no correr dos dias por conta das suas necessidades. Alguns têm empregos, muitos sobrevivem em condições degradantes. Alguns habitam lares, outros perambulam por áreas impróprias e ali se saciam de alguma forma. Alguns são amados, outros sucumbem a toda forma de violência. Alguns são nativos, caiçaras, filhos, netos, bisnetos de caiçaras, outros são migrantes, filhos, netos e bisnetos de gente que precisou deixar seu torrão natal em busca de melhores condições de vida, vieram parar em Ubatuba nesta intenção.

    Não é esse tipo de mundo  (onde poucos se apoderam de tudo e muitos estão totalmente desprovidos do básico por conta da ganância e injustiças) que eu desejo aos meus filhos, às novas gerações!


    Lá vai São Francisco tão pobrezinho! De qual ribeirinho ele poderá tomar água, retomar a sua dignidade desejada pela mãe e pelo pai no dia em que nasceu?

domingo, 7 de setembro de 2025

RESISTIR É PRECISO

 

Resistência de um povo - Arquivo JRS 

        Há 31 anos se comemora, no dia 7 de setembro, por iniciativa da igreja católica do Brasil, o Grito dos Excluídos inspirado no Grito do Ipiranga.

     O Grito do Ipiranga é a denominação do momento em que o imperador Pedro I, em 1822, proclamou a independência do país em relação ao domínio de Portugal. Ele, na ocasião, se encontrava às margens do rio Ipiranga, hoje centro da cidade de São Paulo. Um artista imaginou o momento e pintou uma tela que hoje é famosa. Nós sabemos pouco, mas aprendemos na escola o quanto lucrou alguns países (Portugal, Inglaterra...) para o reconhecimento dessa independência. Melhor usar esta condição entre aspas, principalmente agora quando uma horda de gente que vive às custas de quem trabalha brada contra a nossa soberania, deseja continuar sendo quintal dos Estados Unidos da América.

    É Grito dos Excluídos porque são mais de 500 anos de injustiças, muitas delas nunca refletidas por nós no dia a dia. Os jovens querem trabalhar, mas quem oferece trabalho digno a essa juventude? Muita gente da minha geração, mesmo trabalhando sempre, mora em condições horríveis, se alimenta mal e não se diverte de verdade. Pior: não enxerga melhores dias para os seus descendentes. Na minha cidade, assim como na grande maioria das demais, os nativos devem ceder seus lugares aos que se apresentam com maior poder aquisitivo. Quem nasceu na praia não consegue arcar com os impostos que foram sendo aumentados de acordo com a especulação imobiliária e com a ganância perante as lindas paisagens do meu lugar, da terra dos meus ancestrais que me viu nascer. O que fazer? Vender e se afastar da beirada do mar, se fixar em áreas impróprias, nos mangues ou confins da serra, acabar com a mata e com os rios que descem da Serra do Mar. Precisa de um salário para viver? Vai a pé, pedala...Pega ônibus se puder pagar! Quem topa zerar imposto territorial ao nativo caiçara que persevera na cultura?

    Excluídos das condições de outrora, onde parecia haver mais dignidade, os pobres sobrevivem. Seus filhos não são obrigados a se conformarem, mas não enxergam saídas para a situação. Quem arruinou esses corpos que perambulam pelas ruas, estão dependentes de drogas, são desgraçados pelo sistema econômico que aí está? Quem terceiriza mão de obra em vez de efetivar os concursados? Quem fecha escolas de comunidades mais carentes? Quem é a favor de acabar com os direitos trabalhistas? Quem deixa de investir no transporte público? Quem deseja manter os pobres alienados promovendo shows bizarros na esteira da velhíssima máxima do pão e circo? Quem reproduz ideias arcaicas para fortalecer o poder de uma minoria? Quem acha certo o rico não pagar nada de impostos? Quem não perde a ocasião para desviar verbas públicas a fim de aumentar o seu patrimônio? Eu poderia ir muito mais que isto, mas vou parando por aqui. O resultado disso tudo é exclusão das camadas populares, do meu povo! Tempos atrás encontrei um jovem-envelhecido na praça 13 de maio, no coração da minha cidade (Ubatuba). Reconheci imediatamente e pensei: quando os pais eram vivos, moravam no beira da praia do Itaguá. Agora ele está mendigando na grama. Daqui a pouco chega a polícia e o expulsa também dali. Vai para onde? Como o poder público e privado lida com isso? De quem é a culpa maior pelo tanto de excluídos que só aumenta? Bem escreveu o meu amigo poeta Zé Vicente: "São os frutos do mal que floriu num país que jamais repartiu". A cada dia eu me pergunto: o que eu deixei de fazer para reverter esse quadro? Pior: tem até muitos caiçaras que aceitam a pecha de serem preguiçosos só porque o modo de vida dessa cultura tradicional se opõe às regras do sistema capitalista! E assim, engolindo a isca, os peixes menores de acabam entre si, não se reconhecem como excluídos. 

   Eu e possivelmente você, mesmo que em melhores condições, somos excluídos! Duvida disso? Quem vai se compadecer da sorte dos desgraçados? "Ah! É mais fácil apedrejar, tacar fogo, chutar, deixar apodrecer nas cadeias!". Ou seja: é mais comum piorar do que consertar. 

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

QUINTAL DOS LOPES

        

Quintal dos Lopes - Arquivo JRS 

"Aqui se encontram...". - Arquivo JRS 

     Como é bom visitar pessoas queridas e conhecer outras mais! Em mais uma oportunidade eu, Maria Eugênia e Domingos fomos visitar o Maciel no Vale do Paty. Dia bonito, sol que secava os caminhos da chuva do dia anterior, plantas das mais diversas dos dois lado, pelas grotas onde um discreto rio serpenteava. Do portão, no fim da estradinha, avistamos o nosso amigo com mais duas pessoas. Eram visitantes que passaram dois dias ali, mas já estavam de saída. Porém, ainda deu tempo de algumas prosas coalhadas de causos. Não seria desperdício descartar o título de: "Aqui se encontram caçadores, pescadores e outros mentirosos". Ou, se preferir, o dizer do finado pai do Tiagão de Itamambuca depois de um exagero no causo contado por alguém: "A providência divina é capaz de muitas coisas". (Em seguida, esse caiçara de outro tempo contava um causo mais caprichado). 

    Depois de muitas risadas acompanhado de farto café e de prazerosa prosa, vieram os preparativos para o almoço. Que fartura! Palmito dali mesmo, cortado há menos de dez metros do fogão estalando em labaredas, ervas buscadas na área da horta, farinha de mandioca feita no dia anterior, suco de caqui congelado da última safra etc. "Parece que a gente não para de comer quando vem aqui!". É assim mesmo, mano Mingo! Depois da refeição saímos pelos arredores para conhecer a vizinhança. Momento mais marcante: adentrar na propriedade, na casa dos irmãos Beto Lopes e Aparecida. Não é fácil descrever a beleza e a ordem do lugar mantida no coração do terreno, na casa impecável que um dia os avós habitaram. Nunca imaginei tantas plantas bem cuidadas, tantos arranjos de flores, tantos pés enormes de caquis, tanta água e criação na maior paz daquela irmandade. Deu vontade de não sair dali, de ficar sendo parte de tudo que se desenrola naquela área exemplar mantida pela família. É muita dedicação, minha gente!

   Há algumas décadas foi implantado no alto da serra o Núcleo Santa Virgínia visando preservar mais espaços da Mata Atlântica, mas ali, nos arredores da área do Maciel e dos irmãos Lopes, o que se verifica são os poucos espaços de mata nativa e os muitos hectares de cultivo de eucaliptos. "Quanto veneno já foi ou segue sendo usado por aqui?". Maciel diz que agora não pode dizer nada com certeza, mas no início, "milhares de litros de 'randapi' [herbicida roundup] foram aplicados no controle do mato". No final, aonde vai parar esse veneno? Me consola ver uma ou outra família resistindo em meio a tudo isso. "Mas tinha muito mais! Para você ter uma ideia, aqui havia duas escolas!". Isto eu pude constatar; as jabuticabeiras pelas matas e beiradas de estradas atestam uma ocupação razoável num passado nem tão distante, quando criação de gado sustentavam essa gente de serra acima. Foi a partir da segunda metade do século XX que teve início o êxodo das pessoas. O advento do turismo na cidade caiçara (Ubatuba) se tornou um atrativo poderoso à caipirada que tanto estimo.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

MEMÓRIA E MOVIMENTO

 

Borboleta - Arquivo Jair Antônio 

    De vez em sempre me pego pensando em gente e em momentos que se passaram há anos, em contextos diferentes do dias atuais e até mesmo em lugares distantes. Dias atrás, depois de me admirar com umas fotografias do amigo Jair Antônio, dono do restaurante Monte Moriá, em Marmelópolis (MG), me deparei com a amiga Nalva e mais gente numa manifestação defendendo a urgência de um terminal de ônibus urbano digno para a nossa cidade (Ubatuba) e fiquei me recordando de tanta gente boa que já cruzei na caminhada. Para ficar em apenas um exemplo: Vicente, quando estudávamos no início da juventude, certo dia apareceu vestindo uma camiseta com a sigla MeMo na parte da frente. "Ué, que é isso, meu irmão?". Ele se perfilhou, deu uma puxada na roupa e explicou: "É o meu lema a partir de hoje. Significa Memória e Movimento". Percebendo que eu esperava mais detalhes do tal MeMo, ele continuou: "Eu e o Chico decidimos morar juntos, fazer um trabalho de conscientização política e de solidariedade na parte mais pobre de Mauá, onde já está avançado o processo de favelização. Não é possível que as pessoas percam aos poucos até mesmo as condições básicas de sobrevivência e não questionem, não se organizem para resistir a todo tipo de opressão. O primeiro passo já demos, estamos morando no local, nas condições próximas dos moradores de lá. Nesse primeiro momento estamos visitando as famílias para estabelecer amizades e conhecimentos, saber um pouco das histórias de cada um, proporcionar oportunidades para relembrar/reavivar memórias". "Eu entendi bem até este ponto, irmão. Sei o quanto a memória da nossa trajetória de vida é capaz!". "Pois é, meu chapa. Então, a partir dessa etapa, bem dizer se dando logo a seguir, vem o Movimento, a delineação do que precisamos fazer para recuperar a dignidade daquele lugar, das pessoas que ali moram. Daí MeMo - Memória e Movimento". Achei louvável a decisão da dupla, mas muito desafiador. Vivendo de bicos seria muito difícil aos dois, mas me prontifiquei em ajudar de alguma forma. Afinal, um galho sozinho fica fácil de quebrar, mas juntando a outros se torna quase impossível a tarefa, né? Foi assim que eu, de um dia para outro, estava colaborando na estamparia de camisetas que seriam vendidas e formariam o primeiro fundo, o recurso econômico da MeMo em seus desafios. Resumindo a história: Vicente e Chico se tornaram queridos por toda gente dos arredores e ajudaram muito. Não demorou para que a força aumentasse: grupos religiosos diversos entraram na empreitada, novas lideranças políticas ligadas às causas populares se forjaram nas lutas por saneamento, área verde, transporte, saúde, lazer etc. Anos depois aquele bairro na periferia estava com uma cara bem diferente, até escola bem equipada já funcionava para atender a criançada que crescia. Onde foram parar os dois amigos? Chico se casou com alguém dali, continuou no bairro. Vicente partiu para a Amazônia, foi como enfermeiro voluntário numa comunidade ribeirinha bem distante de qualquer cidade, onde a coleta do açaí e a pescaria eram as principais fontes de renda. Nunca mais recebi notícias dele, mas tenho certeza que o princípio da Memória e Movimento jamais o deixará. O mesmo digo do Chico que será um militante contra as injustiças pelo resto da vida que ainda resta. Desejo muita força a esses irmãos e irmãs da utopia na vida plena!


terça-feira, 26 de agosto de 2025

INGRATOS (II)

 

Lago do Maciel - Arquivo JRS 


  Dias desses eu fiz questão de recordar uma lição que aprendi na escola: Ciro, o rei da Pérsia (atual Irã), foi quem libertou os judeus do exílio na Babilônia. Hoje, lendo uma história escrita por Lloyd Llewellyn Jones (Os Persas), quero transcrever algo que pode nos ajudar a entender melhor o assunto:


  Judeus cativos (como todos os outros deportados estrangeiros) estavam livres para voltar para casa. Em 537 a.e.c., mais de 40 mil deles empreenderam o que declararam ser o "segundo Êxodo" e alegremente voltaram a pé para Jerusalém e para a terra que manava leite e mel. É por isso que na Bíblia Hebraica Ciro passou a ser considerado um servo de Yahweh, e o escolhido pelo Deus invisível para libertar da escravidão Seu povo eleito. Assim, os profetas do exílio elogiaram Ciro como instrumento de libertação de Deus. Um profeta que conhecemos como Trito-Isaías (ou Terceiro Isaías) estava especialmente entusiasmado. Registrou o júbilo de Deus por ter encontrado um paladino tão digno:

  "Eis o meu servo, a quem protejo, meu escolhido, em quem me deleito. Eu lhe conferi o meu espírito, e ele fará resplandecer a justiça sobre as nações [...] Eu te tomei pela mão [Ciro], e te formei para que sejas a luz de todos os povos [...]" Assim diz Yahweh a Ciro: "Tu serás meu pastor para cumprir meus desígnios: reconstruir Jerusalém e lançar os alicerces do templo". Assim diz o Senhor a Ciro, seu ungido: a Ciro, cuja mão ele segurou com firmeza para subjugar as nações e destruir os mais poderosos reis.

   Em virtude de sua generosidade com os judeus, Ciro recebeu o título de meshiach - "Messias", "Ungido" ou "Consagrado" -, expressão que os judeus no exílio usavam ao falar de um salvador ou redentor enviado por Deus. Era um título profundamente teológico, que falava da ratificação de Ciro com um rei legítimo, nomeado e protegido por Deus. Nos Salmos, o Ungido é um líder idealizado, semimítico, um guerreiro que Deus defende e protege: "Agora sei que o Senhor salva o seu ungido; ele o ouvirá desde o Seu santo céu, com a força salvadora da sua mão direita".


    Pois é, minha gente: Ciro, um rei significativo para os povos iranianos e judeus! Mas por que fiz questão de relembrar a história? Porque, recentemente, Israel bombardeou o Irã. Só por isso! Nós, caiçaras de tradição cristã, precisamos saber de mais gente que recebeu este título de messias e o interesse no poder aí incluso. São narrativas que podem desencadear forças incríveis, inclusive servir para oprimir ainda mais o oprimido em vez de libertar.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

CONFORTO CAIÇARA

 

Dormindo - Imagem IA

          O mano  Mingo,  prestes  a  lançar  quatro  livros   de poemas infantis, nos transmite em muitos deles a  simplicidade  dos nossos primeiros anos, na comunidade caiçara;  nos faz pensar um pouco sobre as mudanças no mundo e em nossas vidas.       Corra    para adquirir os seus!


Minha cama de criança

tinha esteiras de taboa

e travesseiros de macela.

Talvez seja por isso que o sono

era tranquilo e revigorante,

ou porque o mundo

já foi mais aconchegante?

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

INGRATOS

 

Sol nascente. Arquivo Clóvis 

       Existe um país longe daqui por nome de Irã, antiga Pérsia. Recentemente nós ficamos sabendo que  outro país, Israel, o atacou e causou mortes e prejuízos materiais. Mas qual a razão? Simplesmente porque a corrente sionista, tendo determinado o fim da Palestina e cheio de maldades com os povos vizinhos, sobretudo com aqueles que nunca aceitaram a imposição de um estado judeu ao preço do extermínio de outro povo que sempre viveu ali, cultiva a meta de dominar toda a área próxima na base do terror. Assim, o "povo eleito de Javé", descumprindo a primeira decisão da ONU de dividir o mesmo território em dois países, servindo como base na região a alguns países mais poderosos, segue cometendo atrocidades e fomentando mais violência na antiga Crescente Fértil e aos herdeiros da Pérsia (iranianos). Ou seja, estão alimentando a indústria da guerra. (Já sabemos que violência gera violência, afasta para bem longe a paz).

   Por que escolhi o título de ingratos para o presente texto? Porque, ainda no ensino fundamental eu aprendi acerca da história bíblica que o povo hebreu (judeus), outrora escravizados/exilados na Babilônia, uns cinco séculos antes da era cristã, foi libertado pelo rei da Pérsia. Melhor dizendo: foi graças a soberanos ancestrais dos iranianos  que os judeus foram libertados de seu exílio babilônico e voltaram para construir, em Jerusalém, um novo templo. Como estão pagando nos dias atuais? Lançando bombas sobre o Irã, a Pérsia de outros tempos! 

   Mais tarde, estudando melhor a História, aprendi que os gregos invejavam enormemente o grande império persa, mas nunca poderiam concorrer com ele. Então...o que fazer? Difamar foi o único recurso (porque a força militar do outro lado era descomunal): "os persas são tiranos, querem esmagar a liberdade exemplar de Atenas e das outras cidades gregas". É esta "versão persa", de invejosos, que não sucumbiu no tempo e chegou à atualidade. Então, recorrendo à atualização desse recurso, muitos de nós têm ojeriza aos iranianos, apoia as covardias impostas a um país bem longe daqui, que praticamente nem conseguem localizar no contexto global. Porém, tal como o povo de Heródoto, de Sócrates e tantos outros, os povos invejosos do tempo presente seguem na mesma lógica: temos de destruir quem compete conosco ou é aliado de nossos competidores. Fato: a China se expande, supera as chamadas potências ocidentais, está competindo na dianteira; o Irã, a Índia, o Brasil, a Rússia, a África do Sul e outros mais estão se aliando aos chineses. Fazer o quê? Declarar guerra a eles, solapar suas bases, impedir alianças que promovam o soerguimento de nações até então espezinhadas. Atacar o Irã e essas tais nações é a ordem prevalecente visando enfraquecer a China. Daí a importância da alienação: "Não importa e nem podemos ensinar às novas gerações que eles (iranianos) nos libertaram do julgo dos babilônios no passado". É a fábula do escorpião matando o sapo depois de ter sido transportado por ele no lago. Ah! Quantas vezes eu vi coisa semelhante no povo caiçara! E ainda continua isto de pobre se aliando com rico para destruir outro pobre! É ou não é?


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A GENTE CONSEGUIRÁ!

 

 

Remador - Arquivo Jairo

    De vez em sempre me pego pensando aonde a humanidade vai parar. De um lado avisto queimadas, de outro rios e mares sendo poluídos. Milhares de pessoas que nunca tiveram chances melhores na sobrevivência rodam o mundo revirando restos, são perseguidos e mortos. A ganância, travestida em bonitos discursos, garante a espoliação da classe trabalhadora. Países que se tornaram poderosos explorando outros países querem continuara fazendo o que sempre fizeram, sem se importar com o conceito de soberania. Parece que uma nova onda de opressão se fortalece seguindo o exemplo do genocídio palestino. "Quem sabe a Venezuela não possa ser outra versão da Faixa de Gaza? Quem sabe se, pela floresta amazônica e usando a alienação das pessoas, a gente não possa dominar o gigante Brasil?". Sim, eu acredito que o mal não é sozinho, é uma legião. 

   A gente conseguirá alcançar a vida, a merecida vida neste planeta? Nesta reflexão. lendo uma obra de ficção científica, um romance de Nicolelis, achei a seguinte animadora passagem:


    "Não se esqueça, somos os herdeiros de um bando de primatas extremamente resilientes. Nossos antepassados cruzaram todo o planeta a pé em menos de cem mil anos para penetrar nichos ecológicos novos mesmo durante o último período glacial (...). Não houve obstáculo que conseguisse impedir que eles continuassem se movendo em busca de melhores condições de vida quando os seus cérebros lhes diziam que estas existiam, lá longe no horizonte ou no desconhecido muito além dele".


    Pois é! Parece que algumas chaves devem ser usadas, servir como recurso para realinhar a nossa existência, ter esta terra como a Mãe Terra. Afinal, conforme disse Ailton Krenak:

      " A gente só existe porque a Terra deixa a gente viver. Ela dá vida pra gente. Não tem outra coisa que dá vida. É por isso que a gente chama ela de Mãe Terra". 


   Portanto, a primeira chave é aprender com as comunidades tradicionais, pois elas garantem vidas nos mais diversos nichos ecológicos.   E seja sempre bem-vinda a frase de Galeano nos momentos difíceis em nossas vidas:

      "A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar".

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

VALE DO PATY (II)

Proseando - Arquivo Maria Eugênia 


    Fazia tempo que a minha querida filha tinha falado do seu encantamento pelo Vale do Paty, sobretudo da Casa de Pedra. Planejei...planejei...fomos (eu, Maria e Domingos)! Lá no meio da serra, já próximo do distrito de Catuçaba, município de São Luiz do Paraitinga, o amigo Maciel, caiçara do Estaleiro (Ubatumirim), está aos poucos formando o seu território (que é uma porção da Mata Atlântica em meio às imensas plantações de eucaliptos). O nome? Vale do Paty!

    Fui e adorei tudo por lá, sobretudo as prosas com esse caiçara que viveu, como tantos outros, um período da vida em alto mar, se sustentando do trabalho na pescaria, sendo embarcadista na nossa linguagem! Fiquei surpreso quando ele relembrou a convivência na imensa "Família do Estaleiro do Padre", na década de 1970. Fiquei contente em saber que ele havia conhecido a tia Apolônia, a Edilene, a vó Martinha e tantos outros parentes que, de uma forma ou outra, fizeram parte do fantástico projeto do Frei Pio na praia do Ubatumirim. Me perguntei na hora o quanto de nossa gente e visitantes, ao irem na tal "Praia do Estaleiro", sabem ao menos a razão dessa denominação àquele trecho da praia. "Conheci o Odorico, a Serafina, a Anita, o Dito Félix, o Salvador, o Antônio Maior... Conheci a Apolônia porque ela morou um tempo no estaleiro. Minhas irmãs e mais gente de lá aprenderam a costurar, fazer crochê e mais coisas ainda com a Apolônia. Estudei com a Edilene. Nunca eu ia saber que era sua prima! Martinha era sua avó? Ah, eu a conheci mais tarde na Estufa, sempre passava perto de casa, ali na avenida Vasco da Gama, perto da escola. Ela não deixava nunca de parar para um dedo de prosa comigo. Toda essa caiçarada boa eu conheci!".

    Pois é, minha gente! Consegue imaginar o tanto de histórias que esses pescadores de outro tempo têm? "Eu trabalhei no São Rafael. Barco grande que pegava muitas toneladas de pescados. Fui cozinheiro lá, mas acabava fazendo de tudo. Foi muito bom aquele tempo em que vivi embarcado, mas era puxado porque tudo dependia do cardume que fosse aparecendo de dia ou de noite. Depois de abarrotado o porão, a embarcação precisava voltar, descarregar em algum porto. Correria, viu!? Nunca parava de subir cestos do porão para o caminhão!". Prazeroso mesmo é ouvir o Maciel detalhando alguns pratos elaborados conforme a ocasião e o pescado que aparecia: "Já comeram polvo? Então imagina uma panelada de pequenos polvos em alto mar! Vieram na rede e eu caprichei na comida aos camaradas. Foi um sucesso!".  Interessante também saber que os pescadores ansiavam pela volta a algum porto e em fazer amizades: "Em cada lugar que a gente parava, por ocasião qualquer, a gente se enturmava com o povo dali, se divertia. Eu ensinei, numa comunidade de Santa Catarina. As pessoas do lugar, as moças, queriam aprender a fazer tarrafa. Elas aprenderam, me agradeceram demais". 

      Má e Mingo: valeu demais a nossa ida, a nossa visita ao Maciel, né?



sábado, 16 de agosto de 2025

SE TEMOS ALGUM JUÍZO...

 

   

Cerração - Arquivo JRS 

      Manhã fria aguardando a primavera. A cerração parece teimar em impedir o caminho do sol. Ela tenta sempre, mas nunca consegue. O sol é imbatível, incapaz de ser contido. Não é por acaso que os primeiros humanos desenvolveram o sentido, criaram a palavra deus e o tinham como divindade. Dele vem todas as condições para a vida deste nosso planeta. No entanto, por cobiça de alguns, a nossa  Terra, o nosso Brasil está rumando ao despenhadeiro. Acabo de ler a notícia que senadores aprovaram o garimpo em terras indígenas. (Quem você imagina que preservou este território até a invasão dos portugueses?). E você pensa que a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pantanal, as nossas praias, os nossos rios, o ar que respiramos etc. deixaram de sofrer importunação? Não mesmo!  Uma onda reacionária de políticos sem nenhum apreço pela vida, com requintes de mais maldades que as anteriores, avança em nosso país e no mundo todo. Uma onda tecnológica "faz a cabeça" de grande multidão desmerecendo respeitos, valores etc. Mentiras e ódio suplantam verdades. Quando iremos acordar, tal como o sol em muitas manhãs no inverno do alto da serra, tendo a coragem de dar um fim na cerração da alienação e das infinitas formas de ataques ao nosso lar (Terra)? Se temos algum juízo sobrando, bem disse Miguel Nicolelis, será melhor ouvi-lo com atenção.

     Um dia o sol se apagará, mas bem antes disso a vida findará neste nosso lar. Deuses e deusas não resistirão ao apagamento do astro solar. Esta Terra é a única! Alguém duvida? Porém, devemos fazer de tudo para adiar esse fim, deter as medidas formuladas em princípios gananciosos (de espoliação das comunidades tradicionais e de exploração sem limites das fontes de vida da nossa mãe maior). Por enquanto, tenhamos apreço pelo deus sol, mas muito mais pela deusa Terra e pelas vidas divinas da qual a nossa pequenez humana é apenas uma delas. Talvez as piores coisas que a humanidade faz seja apenas porque cada divindade posterior apenas tentem suplantar o sol que está na origem da nossa existência e disputem sua absoluta divindade entre si. Talvez... O certo é que ecologia é simplesmente cuidar deste nosso lar, desfrutar - igualmente! - com todos os seres desta energia que vem do sol!


sexta-feira, 15 de agosto de 2025

LEMBRANÇAS DA ALIX

     


Tio Genésio e Tia Maria - Arquivo Alix 

   A prima Alix, filha da saudosa Glorinha, teve como avó a minha querida tia Maria Mesquita, esposa do tio Genésio. Pensa num casal que eu adorava visitar para me satisfazer com prazerosas prosas!

   Tio Genésio era irmão do vô Zé Armiro. Estes, filhos do primeiro casamento do nhonhô Armiro. Todos da praia da Fortaleza, onde mamãe nasceu e nós vivemos por um tempo da infância. Depois de anos vivendo longe, fomos nos reencontrar no bairro da Estufa, onde tio Genésio e tia Maria já tinham morada  e uma participação comunitária intensa. A comunidade católica desse bairro deve muito a esse casal maravilhoso!   Dias desses, depois que eu enviei um texto falando da saudosa tia Maria à Alix, recebi a devolutiva que agora transcrevo.


   Saudades da minha vó. Dias atrás lembrei-me muito dela, das pessoas que iam todos os dias na casa dela para benzimentos, atrás de remédios de mato que ela fazia, suas garrafadas. O Donizete (filho dela) dizia que ia montar um consultório para atendimento das pessoas (risos). Tudo era conhecimento antigo que ela gostava de compartilhar. Quando ela ia na Fortaleza, sempre fazia questão de visitar a tia Aninha. As duas passavam a tarde conversando sobre as almas (que visitavam a referida tia). Eu, que acompanhava tudo, ficava sempre prestando atenção em tudo, cheia de medo (risos). Mas amava tudo aquilo que fazia parte da rotina da minha vó: desde o corte da taboa, a busca por ervas para as garrafadas, e, principalmente, conversas sobre as almas. 

  A minha vó também era grande contadora de história. No final da tarde, quase chegando a noite, a sala dela se enchia de crianças para ouvir suas histórias. Ali ouvíamos o negro do surrão, histórias de princesas, o bordão encantado, o anel de ouro... e por aí vai. Não sei de onde ela tirava tantas histórias para contar. Minha vó era uma pessoa que nunca foi à escola e que aprendeu a ler sozinha a Bíblia. 

   Valeu, querida Alix!


    


quinta-feira, 14 de agosto de 2025

OS PRIMEIROS TURISTAS (II)

 

Por aqui era a Colônia - Arquivo JRS 

    Ao ser inaugurada  a primeira via rodoviária (a atual SP 125-Rodovia Osvaldo Cruz) a ligar Ubatuba a outras cidades, os taubateanos com certo poder aquisitivo foram os primeiros privilegiados. Por isso, em 1933, o empresário Félix Guisard comprou o Casarão do Porto e outras propriedades no território ubatubense. 

  Dando continuidade à primeira parte, irei explicar porque os operários da Companhia Taubaté Industrial (CTI) e suas famílias foram, de fato, os primeiros turistas de Ubatuba. Simplesmente eles foram os primeiros a descerem a serra em grande quantidade! Ou seja, a Colônia de Férias criada pelo patrão alavancou a atividade turística em  nossa terra. Quer atrativo maior que o mar e as praias? Quer alegria maior à classe trabalhadora em poder desfrutar de tal lazer?

   O velho Hilário e outros dos antigos que tive oportunidade de escutar narravam da movimentação intensa no tempo das férias escolares (que outrora duravam três meses ao ano), com cidade lotada e muitas novidades para o povo do lugar. A pesquisadora Cláudia Martins descreve o ambiente festivo daquele tempo de lazer na colônia:


   Homens e mulheres não escondiam a alegria. Todos se conheciam muito bem, por causa da convivência na CTI, mas em Ubatuba eles se soltavam ainda mais. As mulheres colocavam os seus maiôs de banho, aqueles modelos mais "comportados", característicos do início do século XX; e os homens vestiam um calção. E todos iam juntos ao banho de mar (...). Os operários organizavam um concurso para escolher as operárias mais bonitas: depois da votação era eleita a "Miss Fábrica Nova" e a "Miss Fábrica Velha". À noite a Colônia de Férias se agitava com os bailes temáticos, como o "Baile do Havaí", tantas vezes realizado.

   A ideia de levar os operários a Ubatuba veio logo no momento em que o empresário conheceu o litoral norte (...). Ao se maravilhar com aquela natureza intocada, Félix fez seus planos:

  - É preciso colocar essa cidade ao alcance dos operários da CTI, disse ao seu filho Raul. E Guisard perseguiu esse sonho insistentemente até conseguir realizá-lo.


   Você consegue imaginar a leva de turistas taubateanos que conheceram Ubatuba a cada três meses por ano, graças ao Félix Guisard? É por isso que eu digo: essa gente trabalhadora foram os primeiros turistas!


Observação: Já existia uma estrada que preenchia  parte do percurso da atual rodovia. Era uma variante da Estrada Real. 



    

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

OS PRIMEIROS TURISTAS (I)

 

Espaços da Colônia - Arquivo JRS 

   Em tempo de empenho de tanta gente querendo sufocar, tirar a folga semanal, apertar mais ainda a lida pela sobrevivência da classe trabalhadora, é muito importante saber que os direitos trabalhistas foram conquistados pelas lutas operárias e não por bondade dos patrões. Porém, nem todos os empresários são obtusos ao ponto de deixar de reconhecer que trabalhador feliz produz mais e melhor. Assim, investem em melhorias no ambiente de trabalho, na política salarial e na promoção do lazer. Foi nesta direção que Félix Guisard conduziu os seus empreendimentos. Não foi à toa que ele, na parte de trás do Casarão do Porto, no centro de Ubatuba, edificou a Colônia de Férias aos funcionários e familiares da Companhia Taubaté Industrial. Hoje, ao passar naquelas ruas estreitas nas proximidades do Mercado de Peixes, vendo as fachadas grudadinhas umas às outras, fico imaginando pessoas alegres em outros tempos, se divertindo no pacato local que era esta cidade em meados do século XX e tendo como grande paixão os banhos de mar e sol na praia do Perequê-açu. Podemos afirmar que o velho Guisard foi muito importante na apresentação da nossa cidade ao turismo. (Porque mais e mais gente quis descer a Serra do Mar e conhecer as maravilhosas praias deste pedaço do Brasil).


    No livro Félix Guisard, a trajetória de um pioneiro, a escritora Cláudia Martins registra:

    A construção de uma Colônia de Férias apropriada foi concluída em 1941. Cerca de 1.500 operários e suas famílias inauguraram o conjunto de edifícios que constavam com instalações sanitárias, refeitórios, salão de bailes, sala de projeções, pequenos  apartamentos - resultado de investimento de milhares de contos de réis. "É a primeira Colônia de Férias para operários que se inaugura na América do Sul", relata a reportagem publicada pela Folha de São Paulo, em 12 de agosto de 1941.

  Talvez toda a mordomia não tivesse tanto valor aos operários quanto a presença do presidente da companhia ao passeio. Félix Guisard fazia questão de acompanhar os trabalhadores em suas férias. Aos 79 anos sentia-se como um adolescente em meio a tantos divertimentos. O patrão, que parecia mais amigo do que chefe, também levava a família e, junto com os operários, participava de todas as atividades e sentia-se satisfeito por poder oferecer essa alegria às pessoas que mais colaboravam com o seu crescimento.


terça-feira, 12 de agosto de 2025

REBENTAÇÃO

 

Capa do livro - Arquivo JRS 


  Dias desses eu ganhei um presente que adoro: livro. Foi dos estimados Jorge e Joana que veio parar em minhas mãos, com o título de Rebentação, escrito por Renata Conde, uma prazerosa leitura. Classifico assim a narrativa, sobretudo para quem nasceu e cresceu na beira do mar, na cultura caiçara. 

  Nas páginas da Rebentação, parecia que havia muitos momentos familiares. A autora foi feliz em captar o ambiente da beira mar, da gente da pesca. Teve um momento em que eu me recordei do tio Dico do Puruba quando me explicou o sumiço das ostras dos rios Puruba e Quiririm: "Ah, meu filho! A minha gente toda foi criada com as ostras daqui. Era fartura, só das grandes. Acho que você nunca vai comer um escardado de ostra. É coisa de lamber os beiços e depois dormir! Faz tempo que não tem mais; de vez em quando as crianças, mergulhando, pegam umas e outras, mas não é nada diante do que tinha. Sabeis como se acabou? Foi uma maré de óleo que entrou barra adentro, matou tudo. Faz tempo. Eu era novo, ainda namorava. Até hoje a nossa água não se recuperou". Uma história parecida eu escutei em prosa com o saudoso Genésio do Cambury: "Aqui tinha muita ostra neste nosso rio, mas hoje em dia não se encontra uma para remédio. Elas desapareceram quando passou a estrada [BR 101 - Rio-Santos] lá em cima, despejando por muito tempo barro na cachoeira. O nosso rio ficou barrento um tempão. Acho que foi isso que matou tudo". A autora, recorrendo a um fato histórico (o petróleo que alcançou o Nordeste brasileiro no ano de 2019, onde os pescadores sentiram-se só na empreitada de conter um acidente que foi muito pior devido ao descaso dos poderes constituídos na época, de uma presidência que produzia noite durante o dia de tanto incendiar florestas), nos emociona porque somos parte do mar e de suas vidas que correm em nossas veias: "O petróleo tomou tudo. A  areia estava fúnebre, pontilhada de manchas de dois, três metros quadrados, que eram continuamente regurgitadas pelo mar. Cada porção de gosma tinha a espessura de um colchão de luxo, no qual nunca ninguém dali havia dormido. O óleo tinha atravessado a rebentação. Foi além da dor". 

  Por fim, me emocionei quando a autora cita uma praia onde estão os parentes, gente dos Lopes: "Essa história foi escrita pelas comunidades originárias de Ubatuba (...) que construiu em mim a ideia de mar, lugar em que o conheci. Foi onde vivi a surpresa do gosto salgado e da força das ondas. Ali me sentei com pescadores da Comunidade da Praia do Peres e aprendi". Sim, minha irmandade! Ela está se referindo à Prainha do Peres, no caminho do Bonete, onde nasceu e se findou o tio Zaca, o Tobias e tanta gente nossa! Ah, quantas prosas eu pude ter por ali! Por isso recomendo a leitura e sou grato à sensibilidade da Renata. Valeu! Gratidão ao Jorge e Joana pelo presente!


Em tempo: a minha maior preocupação - e de muita gente no momento! - é com essa onda reacionária contra a cidadania comprometida com os mais excluídos e contra os nossos direitos tão arduamente conquistados. O medo que eu tenho é que ela avance, passe a rebentação da democracia e nos sufoque de vez.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

TEMOS A ARTE...

  

Divulgação - Fundart

  Estão abertas as inscrições para o Concurso Literário 2025. Eu tenho a honra de ser o patrono do Concurso de Crônicas. Participe desse evento que custou tanto empenho de outras gerações e que segue sendo a aposta de novas cabeças. Prestigie a cultura e saiba que assim vamos contribuindo para resistirmos ao retrocesso a que estamos sujeitos por parte da ganância de pouquíssimos. Acesse a página da Fundart (Ubatuba) e participe com sua poesia, com seu texto teatral, com sua crônica! 


  A Fundart avisa: No período  de  26  de  julho  a  10  de  setembro  de  2025  estarão  abertas  as  inscrições para o Concurso Literário do Ano de 2025. E continua: no  referido  concurso  acontecerá  o  11º  Concurso  de  Crônicas  “Prof.  José  Ronaldo  dos  Santos. 


 A  temática  é  livre  e  as  crônicas  deverão  ser  inéditas  e  apresentadas  como  anexo  ao  formulário,  em  todos  os  casos  em  estilo  padrão  com  extensão  DOC  (Word,  LibreOffice  writer,  dentre  outros), fonte Times New Roman e tamanho 12. Identificados apenas com o pseudônimo. 

 “CRÔNICA  –  É  uma  narrativa  histórica  que  expõe  os  fatos  seguindo  uma  ordem  cronológica.  A  palavra  crônica  deriva  do  grego  “chronos”  que  significa  “tempo”.  Nos  jornais  e  revistas,  a  crônica  é  uma  narração  curta  escrita  pelo  mesmo  autor  e  publicada  em  uma  seção  habitual  do  periódico,  na  qual  são  relatados  fatos  do  cotidiano  e  outros  assuntos  relacionados  à  arte,  esporte,  ciência  etc.  Os  cronistas  procuram  descrever  os  eventos  relatados  na  crônica  de  acordo  com  a  sua  própria  visão  crítica  dos  fatos,  muitas  vezes  através  de  frases  dirigidas  ao  leitor,  como  se  estivesse  estabelecendo  um  diálogo.  Alguns  tipos  de  crônicas  são  a  jornalística,  humorística,  histórica,  descritiva,  narrativa,  dissertativa,  poética  e  lírica.  Uma  crônica  relata  acontecimentos  de  forma  cronológica  e  várias  obras  da  literatura  são  designadas  com  esse  nome,  como  por  exemplo:  Rubem  Braga  (Recado  de  Primavera,  A  Traição  das  Elegantes);  Lima Barreto (Crônicas Escolhidas, Feiras e Mafuás). Um  exemplo  de  crônica  é  a  argumentativa  que  consiste  em  um  tipo  mais  moderno  de  crônica,  no  qual  o  cronista  expressa  o  seu  ponto  de  vista  em  relação  a  uma  problemática  da  sociedade.  Neste  caso  específico,  a  ironia  e  o  sarcasmo  são  frequentemente  usados  como  instrumento  para  transmitir  uma  opinião  e  abordar  um  determinado  assunto.  Outro  exemplo  é  a  humorística,  na  qual  o  cronista  escreve  o  texto  apresentando  uma  visão  irônica  e  bem-humorada  dos  acontecimentos. (Millôr Fernandes é um dos meus preferidos neste quesito).


Observação: 

O título desta postagem é inspirado na frase de Nietzsche que diz: "temos a arte para não morrer da verdade"

sábado, 9 de agosto de 2025

VIAGEM NO ESPAÇO

 

Que lindo! - imagem IA

      O mano Mingo (Domingos Fábio dos Santos) vem aí com uma série de poesias para crianças. Eis mais uma porção de pérolas desse meu irmão que, desde criança, lia muito. Ao contrário do resto da irmandade, preferia ler do que fazer artes, ver as novidades ou escutar prosas no lagamar. "Esse menino vive entocado, só lendo", dizia a saudosa mamãe. Cada um cada um, né?

     Mas mesmo assim, andando pela trilhas da Queimada (no Sapê), olhando os navios lá longe na Badeja (Fortaleza), buscando banana no Morro do Licínio (Perequê-mirim), explorando o Sertão da Sesmaria (Estufa) ou correndo em suas aulas de um lado para outro, ele foi sentindo, captando poesia até nos ventos. Agora, aproveitando a merecida aposentadoria, ele revira os amontoados de textos, as pequenas anotações em páginas de livros ou folhas soltas que resistiram aos trancos e barrancos a que todos nós estamos sujeitos, vai compondo livros e nos presenteando. É um olhar caiçara sobre um tempo com todas as nossas coisas e os nossos seres tão estimados. Quer mais? Veja barbatuba.blogspot.com

Observação: vem aí uma fornada de 4 livros de poemas para crianças. 50 páginas cada.


A pequena viajante decola

para iluminar as estrelas

com seu riso contagiante

e para ver o mundo

em visão grande angular:

Montanhas são rugas no rosto da Terra,

rios são caminhos que descem da Serras,

Seres humanos são formigas atarantadas

procurando as pessoas amadas.

A rampa de lançamento

para uma criança viajar no espaço

e ter olhos de querubim

é um balanço de jardim.



sexta-feira, 8 de agosto de 2025

VALE DO PATY

 

Lá embaixo, Ubatuba - Arquivo JRS 



Bica d'água - Arquivo JRS 

  

Hora do almoço - Imagem Rafael


Cará roxo e ova assada - Arquivo JRS 

    O dia amanheceu lindo e eu com uma grande disposição para visitar o amigo Maciel, na Serra do Mar. No município de São Luiz do Paraitinga, encravado entre a rodovia e o Núcleo Santa Virgínia, esse caiçara do Ubatumirim segue formando o seu refúgio, levando a vida da maneira mais ecológica possível. Resolvemos umas pendências logo cedo no bairro e partimos: eu, Maria Eugênia e Domingos. Uma parada no alto, na baia que dá vista para a nossa cidade. Dia claro, se avistando tudo lá de cima. "Olha o mar, Dito". Rimos das besteiras.

  Uma estrada de terra rodeada por árvores, um rio serpenteando por ali, uns passarinhos cruzando a rota, um ar puro e muita atenção aos possíveis obstáculos ao carro. De repente a placa: Vale do Paty - Pousada Casa de Pedra. "Pronto! Chegamos!". Fui descendo e chamando pelo dono da área. De imediato notei um maravilhoso pé de lima da Pérsia e vários pés de limão cravo. "Cadê esse homem?". Lá longe, onde umas vacas pastavam, despontou o Maciel. Veio todo feliz, dizendo que estava consertando  cerca para evitar a fuga dos búfalos. Fortes abraços e muito contentamento naquela imensidão de mata e céu azul. "Já almoçaram?". "Que nada! Viemos almoçar com você, trouxemos uns pães para o café". Nisso chegou o Rafael, um mestre cozinheiro. "Que bom! Vamos chegando!".

  Logo o Maciel já estava picando ingredientes para juntar na panela. Do lado de fora, protegido por uma beira de telhado, o fogo foi avivado. Lenha é que não faltava ali. O mano Mingo começou a registrar em fotografias as particularidades da casa, a criatividade que nasce da necessidade. "Muita coisa bonita, simples, fácil de fazer!". Sobre a mesa algumas das produções do sítio: mel de florada das jabuticabeiras, vinho de amora, farinha de cambuci e de açafrão, farinha de mandioca etc. Antes do cheiro da comida se espalhar no entorno, eu, Mingo e Má fomos dar uma volta nos arredores, ver as plantas, o lago e ter curiosidade em saber porque há madeiras e cipós afundadas no água do lago. (Soubemos depois que é o tratamento para conservação, para a longa vida dos materiais).

  E veio o almoço! "Que  maravilha!". Para a Maria um prato especial: palmito de bambu. Rafael caprichou no suco de amora e cambuci, Maciel abriu um vinho para esquentar ainda mais a nossa prosa. "Quer coisa melhor que estar assim entre amigos?". Depois saímos para conhecer a Casa de Pedra. É difícil transmitir o que já está pronto naquela badeja, no meio de um tanto da Mata Atlântica recuperada. "Antes, quando eu comprei, isto tudo que vocês avistam era capim braquiária, cheio de gado. Olha como está diferente, tudo sem usar nenhum veneno. Por isso é que o sítio recebeu a reconhecimento de orgânico!". Mas a nossa maior admiração foi saber que tudo aquilo foi e segue sendo realizado por um só homem, pelo Maciel. (Prometo que em outro dia escreverei um pouco da história dele, desde o tempo em que vivia no jundu do Ubatumirim, nas cercanias do Estaleiro do Padre).

  Para encerrar o dia com louvor, um café caiçara de arrasar: ova seca de tainha assada, farinha de mandioca e cará roxo. Quem resiste? 

  Que dia! Que convivência maravilhosa! Era serão quando partimos de lá já com um pouquinho de saudade. Valeu, Maciel! Forte abraço! 


segunda-feira, 28 de julho de 2025

PÁTRIA DOS LIVROS

 

Casarão do Porto - Arquivo Guisard 

   Em época de alguns encontros literários acontecendo nas proximidades, tenho de citar livros e autores. Mohamed Mbougar Sarr, um escritor senegales, escreveu o seguinte em uma história (A mais recôndita memória dos homens), onde uma mulher está se referindo a uma pátria que se defende sozinha. "Que pátria é essa? É a pátria dos livros, é óbvio, dos livros lidos e amados, dos livros lidos e desprezados, dos livros que sonhamos escrever, dos livros insignificantes que foram esquecidos e nem sequer sabemos se alguma vez os abrimos, dos livros que fingimos ter lido, dos livros que jamais leremos, mas dos quais também não nos separamos por nada do mundo, dos livros que aguardam sua hora em uma noite paciente, antes do crepúsculo deslumbrante das leituras da alvorada. Sim, eu dizia, sim: serei cidadã dessa pátria, serei leal a esse reino, o reino da biblioteca".

    Os livros nos permitem viagens fantásticas e uma vantagem principal: não cair tão facilmente nas garras de quem conspira contra a democracia e contra os direitos humanos. No momento, relendo a biografia de Félix Guisard (fundador da Companhia Taubaté Industrial), escrita por Cláudia Martins, faço questão de repassar um dado histórico: 


   Em 1933, as festas da família ganharam mais um lugar. É que Félix Guisard adquiriu um casarão em Ubatuba, chamado Sobradão do Porto. O local fora construído por Manoel Baltazar da Cunha Fortes, comerciante português que depois o vendeu para o Julius Kerstz, húngaro que fez dele o Hotel e Restaurante Budapest e que, por sua vez, o vendeu a Guisard. O prédio foi todo construído com material vindo de Portugal. Até os batentes de pedra vieram com lastro do navio. Félix Guisard fez questão de preservar cada canto da casa, consciente do seu valor artístico.

   Além do sobrado, Guisard também comprou algumas terras e um pedaço da praia do Perequê-açu. A cidade, ainda pouco habitada e também pouco visitada por turistas, oferecia um mar de paz e tranquilidade depois do trabalho estressante da fábrica. Porém, o problema estava em chegar a Ubatuba. A estrada era interminável, cheia de buracos e. quando chovia, o carro atolava na lama e não havia que o fizesse andar. Era preciso procurar a fazenda mais próxima e emprestar uma junta de bois para arrancar o carro do atoleiro. E a viagem pela Serra do Mar durava boas horas.


Em tempo: acabara de ser inaugurada a Rodovia Oswaldo Cruz (Taubaté-Ubatuba), a primeira via rodoviária a adentrar o território ubatubense. Vinte e cinco anos depois seria concluída a seguinte que faria a ligação com a cidade vizinha de Caraguatatuba.


sexta-feira, 25 de julho de 2025

FARINHA POUCA...

      

Gatinho da Maria - Arquivo JRS 

  "Pior que a maldade é a estupidez, a ignorância humana", já dizia o velho Arcelino, um cidadão carioca que, na década de 1970, veio tentar a vida em Ubatuba, se tornou morador do Perequê-mirim. Ele se dava muito bem com o meu pai, bebericavam e proseavam juntos sempre que podiam. Meu velho sempre repartia uns peixes com esse amigo porque ele não era da pesca, não foi criado nessa cultura. A profissão dele? Cortava pedras, entendia muito de granito! (Observação: do Estado do Rio de Janeiro vieram muitos trabalhadores para a extração de granito verde de Ubatuba no final da década de 1960 e seguinte).

      Vez ou outra eu me pego pensando, refletindo a partir da frase acima, desse vizinho de outrora que ousava comentar sempre temas em torno da ditadura militar daquele tempo, da minha infância. "Ah, o Celino enxergava tantas coisas além da nossa visão!".  Agora, lendo um livro do Nicolelis e notando os avanços da era digital, posso afirmar que é atualíssimo essa máxima que ouvi há tanto tempo. Não tenho dúvida de que é a estupidez, a ignorância, que alimenta as maldades. Pior: existe um minúsculo grupo de humanos neste planeta que sabe o objetivo, o que está conseguindo com investimentos em programas baseados na tal inteligência artificial. Essa gente, talvez poucas dúzias mundo afora, espera suplantar a capacidade mental dos seres humanos, ter o controle total, traçar o destino da humanidade. Assim se findará a privacidade das pessoas, os sentimentos de solidariedade, de empatia, de justiça. Quer maldade maior? 

      Quando vemos lideranças religiosas e politicas fazendo de tudo para alavancar a ignorância, sobretudo aos mais pobres, podemos crer em uma coisa: essa gente está em conluio para acabar com a capacidade humana de se indignar com tudo aquilo que tira a vida (nossa e do planeta). É a ambição de não repartir, de sonegar impostos, de controlar governos que garantam essas desigualdades sociais e toda sorte de maldades. Era nessa mentalidade exterminadora que se encaixava a citação recorrente do meu finado pai, da minha gente caiçara: "Farinha pouca, meu pirão primeiro!". Eu, criança de tudo naquele tempo, fazia como um gato: só espreitava e escutava as prosas. Ainda bem!       

domingo, 13 de julho de 2025

SEM SISO NO SISAL

    


    O modesto Jorge cresce cada vez mais na afinação com a literatura e foi um dos curadores do Pirão das Letras, o primeiro festival literário de Ubatuba. Aproveito para parabenizar os demais curadores e parceiros desse evento ocorrido recentemente nessa cidade. Que venham muitos outros!

     Eu tive a honra de apresentar o mais recente livro (Sem siso no sisal) desse estimado e grande amigo. Legal, né? É este sincero texto que apresento agora às pessoas que me seguem no coisasdecaicara.blogspot, nas publicações do Ernesto (Jornal Acontece) e demais leitores pelo mundo agora. 


       Logo no início deste livro, percebi um pouco da história do autor: Jorge Ivam Ferreira. Imaginei a vida dele em Iaçu, no interior da Bahia, e a sua familiaridade com os elementos da realidade nordestina, da lida do pai autodidata que queria os filhos estudando, do irmão que ainda mora lá etc. Pensei: "O Jorge e as suas lembranças de menino". Me veio à mente um poema de T.S. Eliot dizendo isto: "E ao final de nossas longas explorações, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". Ou seja, o autor da novelinha (como ele a descreve) mexe a colher na sua imensa panela e faz aflorar um mundo de beleza dos primeiros anos em família e na vida comunitária. Garimpando as palavras, ele vai nos apresentando o seu mundo e os dilemas possíveis e/ou imaginários diante do assombro que é a vida (porque faz pais desejarem outros destinos aos filhos, força migrações, possibilita encontros e desencontros...). Ao final da história e do suspense, capaz de continuar acontecendo sempre numa sociedade de tantas surpresas, desigualdades e injustiças, notei uma alma que tem um sopro de saudade, sobretudo da solidariedade da vizinhança nas agruras, nos padecimentos da vida. Termino a leitura muito agradecido pelo talentoso baiano que escolheu o chão caiçara de Ubatuba e pela nossa amizade, eu reconheço o bem que nos faz "uma alma que sabe o que merece ser lembrado", como escreveu Rubem Alves. No fundo, o Jorge está repartindo conosco o que foi acumulando em mais de meio século em seu ser.


    Vida longa ao Jorge e à sua produção literária! Vida longa aos que fazem de tudo pela literatura neste chão caiçara!

quinta-feira, 10 de julho de 2025

PROSA COM O MACIEL

 

Tartarugas - Arquivo JRS

    Maciel vive no mato, no alto da serra, mas nasceu e se criou no jundu do Ubatumirim, onde era o estaleiro do padre há décadas. Esse caiçara trabalhador passou pela pesca, foi embarcadista, de onde traz uma experiência inesquecível. Também aprendeu muito na construção civil (prova disso é a sua casa no meio do mato, nas proximidades de Catuçaba, município vizinho de São Luiz do Paraitinga). Na sua área tem de tudo um pouco, trazendo uma vez por semana (quarta-feira) a sua produção para a venda na Feira Agroecológica (final da rua Orlando Carneiro, no centro de Ubatuba). Até vinho de amora está produzindo na friagem da Serra do Mar. A grande novidade do momento é o mel da florada de suas jabuticabeiras. Quer provar? Passa na feira!

    Toda vez que eu me encontro com o Maciel, o assunto é a nossa cultura, os nossos traços culturais. Inevitavelmente o nosso palavreado destoa de muitos que nos rodeiam. Por isso alguém da roda, que escutava a prosa, comentou: "Vocês precisam montar um vocabulário, explicar as palavras que os caiçaras usam". Eu disse que já existe um modesto livro composto pelo João Barreto, meu primo da praia da Fortaleza. Coube ao Carlos Rizzo a editoração. Se esgotou assim que saiu. Também o Peter, da Enseada, produziu um livro no tema das falas caiçaras. Indo mais longe, no ano de 1978 Olympio Corrêa de Mendonça concluiu a tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob o título: O léxico do falar caiçara de Ubatumirim. Portanto, lá estão os falares de muitos personagens familiares ao Maciel. Vale a pena ler, minha gente! Também vale muito uma visita ao Vale do Paty, o sítio desse meu amigo!

   O assunto, por influência dos temperos que o Maciel estava negociando, rodou em torno de gastronomia. "Qual é a melhor parte do peixe, Zé?". Eu respondi, sem dúvida alguma: "É a bentrecha, claro!". Ele concordou comigo. Um dos ouvintes perguntou a nós: "O que bentrecha?". Esclarecemos na hora: "É o ombro do peixe, aquela parte que pega a barrigada". Que saborosa é essa parte do peixe - de qualquer peixe!-, principalmente quando, depois de secagem ao sol, vem acompanhada com a deliciosa farinha de mandioca!

  Muito mais nós proseamos gostosamente. Só faltou, no final, um café com biju. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

A DIDÁTICA DO TIO DÁRIO

Vê o M na parte inferior? - Arquivo JRS 


   Era bem cedo quando eu fui à praia com meu pai para ver as canoas chegando de visitar os tresmalhos. Ah, faz muito tempo isto! Eu gostava muito de ver a tranquila movimentação e admirar os pescados que se ajuntavam nos balaios e fundos das canoas. Também adorava contemplar os desenhos que o sobe e desce das marés deixava no lagamar: eram "árvores" que não se repetiam. Foi naquelas areias molhadas que eu aprendi as primeiras letras: meu pai escrevia e eu copiava ao lado. 

   Tio Dário Barreto tinha uma canoa preta, grande, que dava muito trabalho para dois remadores, mas ela com ela que ele se lançava o mar quase todo dia. Ele era sossegado, falava devagar... Desconfio que nunca teve pressa para nada. Dormi. Numa dessas manhãs, vendo eu ali fazendo os rabiscos na areia, ele ficou contente, disse que foi assim que seu pai também havia lhe ensinado a ler e a escrever. "Naquele tempo não havia escola por perto, menino. Nem sei como o meu pai foi alfabetizado, lia de tudo que aparecesse. Vou agora lhe mostrar como eu fui ensinado pelo meu finado pai". O tio Dário, naquele dia distante, me apareceu num sonho. Pegou uma vareta maior e começou a desenhar. Primeiro foi uma casa reforçada nos traços do telhado: "Aqui na cumeeira está a letra A. Ela aparece na palavra casa duas vezes". E escreveu CASA. A seguir desenhou uma concha: "A costa dela é a letra C, tais vendo? Olha ela aqui no começo da nossa palavra". Depois ele suspendeu um verme do mar, inerte ali perto, depositou perto da palavra casa e deu uma ajeitada com a vara de modo que cobriu o traço do S. "Pronto. tá feito! Foi assim que eu fui aprendendo. Ainda hoje, ao olhar cada coisa, eu primeiro enxergo letras. Faz assim que, logo logo, você vai estar escrevendo e lendo". Em outros dias ele fez outros desenhos com a mesma intenção de me ensinar.  Contei o sonho ao papai. Ele gostou e seguiu o exemplo, a didática daquele caiçara que tantos causos contava na praia da Fortaleza. 

   Não é que ele, mesmo no sonho, estava certo?! Acho que foi daquele dia em diante que peguei o hábito de desenhar no chão e em qualquer lugar que fosse possível deixar uns traços, umas garatujas. Eu era "um perigo" com qualquer pedaço de carvão em  mãos, dizia a mamãe.