segunda-feira, 3 de novembro de 2025

ZABÉ E LINDO

 

Serão chegando no morro - Arquivo JRS 

     "Passa por casa, minino, veja a Zabé e dê recado: O tempo tá se armando, do Mar Virado nada se vê; é chuva e vento de arregaçá. Junte só as criança e suba, se acomode na vossa irmã. Eu cá ficarei cuidando das coisa. Só desça quando o pió passa. Vá logo, corra minino!". Eu subi na disparada, sem sentir nem estrepe no pé. Tia Izabel olhava aflita na porta da cozinha, pressentia o recado. Logo puxou as três crianças. Também não me deixou para trás. "Deixa o seu tio lá, ele é homem, se vira melhó que nós. Tudo vai acabá bem, você vai vê". Eu, medroso que era, me senti protegido e até ajudei a carregar alguma coisa que nem me lembro mais. A chuva forte com vento nos pegou antes de entrar na casa da tia Chica. Como todas dali, a casa dela era de pau-a-pique com cobertura de sapê. Ai que medo dela não aguentar o esbarro, a ventania com água que torcia uns pés de cana no cisqueiro. Mais alguém chegou buscando proteção. Eu e as outras crianças nos encolhemos num cantinho sem dar nenhum pio. As mulheres rezavam ajoelhadas no oratório. Não sei dizer o tempo que durou o temporal, mas parecia sem fim. Quando chegou o serão, tudo se abrandou. Tio Lindo assobiou duas ou três vezes lá da praia avisando que nos esperava. Lá fomos nós, de vez em sempre alguém escorregava no caminho de barro molhado. Todos seguiam descalços, sem chinelos. Que bom! O mar estava liso de novo, a praia estava varrida, o verde de tudo parecia mais alegre, mostrando as diferenças de tons. "A chuva lava tudo, minino!". Entramos. O fogão continuou aceso, titio atiçou com novas lascas de lenha para ferver água para o café. Titia pegou uns pedaços de peixes na gamela. "Que bom que vamos ter peixe frito com café e farinha!". Aquele foi o nosso jantar acompanhado de banana assada e mais farinha. Éramos pobres, mas havia comida todo dia: vinha da roça e se trazia do mar. De quando em quando alguém da vizinhança chegava repartindo alguma caça ou coisa diferente do cotidiano. Naquele serão distante, uma menina chegou segurando uma vasilha de alumínio: "Mamãe mandou umas bolachas que ela assou quase agora, antes da chuva". Tio Lindo e tia Izabel moraram juntos até a morte chegar, na praia do Cedro. O armazém mais perto estava na praia da Fortaleza. Era o Cáindo e o Jorge que os acudiam depois de caminhar uma hora no mato grosso e na praia quase toda. Ah! Apesar da distância, a criançada estudava, não tinha preguiça do ir e vir pelos caminhos orvalhados a cada manhã! Escola perto? Não tinha! A da praia Grande do Bonete era a mais próxima. Tinha turistas? Sim, mas apenas onde havia estrada boa e chegava carro. Foi nesse tempo que alguns caiçaras, para melhorar a vida, venderam algumas posses junto ao mar. O resultado disso: ir deixando a beirada das praias e começar a subir morros, deixando de ter o tempo (sol, chuva...) como patrão para ser assalariado dos ricaços.  Assim as praias foram se tornando propriedades particulares, sendo restringidas e podendo até serem privatizadas em vez de públicas. Resumindo: todos esses retalhos na memória faz me lembrar da saudosa tia Izabel a dizer certa vez: "Escute Lindo: tudo isso um dia não será mais nosso, mas nós não estaremos mais aqui! Tais me escutando?".


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