quarta-feira, 31 de março de 2021

DONA VIRGÍNIA - PARTE IV

 

A casa do meu tio-bisavô José Félix, na Caçandoca, virou escola

       Dona Virgínia, enfrentando até mesmo mentalidades preconceituosas,  buscava, na capital paulista, os recursos para levar em frente as suas iniciativas em prol dos caiçaras de Ubatuba. Teve de ousar mais do que imaginava por conta dos exigências legais. Ah! Depois do norte, expandiu o projeto de escolas para o sul,  conseguindo alcançar toda a área do município.


    Na capital, ninguém queria ajudar o caiçara “preguiçoso, malandro, indiferente”. Perdemos até um de nossos sócios contribuintes dos mais generosos. Mas não desanimamos, pois queríamos demonstrar que o caiçara só precisava de um impulso. 


Infelizmente minhas companheiras na Sociedade, quase todas mães de família como eu, não podem ausentar-se da capital, ajudando-me só a levantar dinheiro. Assim, tive de empreender o trabalho em Ubatuba como pude. Meu marido, temendo que eu me esgotasse, a princípio não via com bons olhos a ideia. Hoje, entretanto, é meu principal colaborador, orientando-me nas questões técnicas e abrindo-me caminho nas Secretarias de Estado, onde tenho sempre assunto a tratar. 

 

Os próprios caiçaras também resistiram no começo, embora alguns, mais ousados, se entusiasmassem com o plano da escola e pedissem até remédios e médico. Em primeiro lugar, pareceu-me que era necessário combater o amarelão; mas quando sugeri a abertura de fossas, a indignação foi geral. “A fossa é imoral”, disseram. Preferiam o mato, “onde ninguém vê a gente”. Mas, com muita paciência e alguns caixotes, construíram-se, afinal, as fossas. 


As necessidades daquela gente não tinham fim. A maioria das crianças teria de caminhar mais de um quilômetro para chegar à escolinha; quase todas estavam subnutridas ou atacadas de amarelão. Saíam de casa com um gole de café e um pedaço de peixe salgado, quando tinha disso. Assim, além do prédio da escola, um quarto para a professora, equipamento didático, livros, papel, lápis, tinta, etc., o remédio seria dar-lhes uma sopa ou lanche forte, com legumes, cereais, extrato de carne, fortificantes. Outra despesa necessária era o fornecimento de uniformes. 


O mais difícil, porém, foi a matrícula. O governo exige, para isso, que a criança apresente certidão de nascimento. Mas a maioria não era registrada. E muitos dos pais nem sequer conheciam a prática do casamento civil, contentando-se com bênção nupcial coletiva de um abnegado sacerdote lhes ia levar pelo menos uma vez por ano. Não me agradava ver na certidão das crianças a pecha de “filho natural” (na época a lei exigia a diferenciação) e por isso comecei a fazer os casamentos civis. 

 


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