sexta-feira, 19 de março de 2021

COÇA DE TIMBOPEVA

 

   

 

     

Capela Nossa Senhora das Dores (Arquivo JRS)


  “A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver". Escreveu assim, num dia distante, alguém.

 

     O texto de hoje é para rememorar duas amigas, da comunidade do Itaguá: Fátima Souza e Lúcia Elisa, a Tia Chileca. Na década de 1980, com a juventude do bairro, elas nos apresentaram maravilhosas encenações no espaço da capela local, defronte ao plácido mar possibilitaram muitas reflexões e novas atitudes perante o turismo que queria engolir tudo. Elas e tanta gente boa dali (Élvio, Mercedes, Isaac, Santaninha, Luzia, Juraci, Neia, Virgílio...) estão na história singular dessa comunidade caiçara.

 

     Arte é tudo: música, desenho, teatro, escultura, poesia etc. e é capaz até de “mover montanhas” quando as convicções ultrapassam as condições. Os jesuítas, assim que chegaram neste continente depois da travessia do oceano, do vasto Atlântico, recorreram aos dons artísticos na catequização dos indígenas, os primeiros moradores desta Pindorama, a terra das palmeiras e dos papagaios. Os invasores lusitanos trataram logo de mudar o nome. Vários deles passaram até se deter em Brasil. Primeira lição: o nome é uma identidade, a primeira. Por isso que, do grande nome Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, só restou Ubatuba, a denominação provinda dos tupinambás.

     Comecei assim porque o inconsciente fez aflorar uma encenação na beira do mar, no Canto do Acaraú, numa ocasião em que a comunidade revisava a nossa história: a chegada dos portugueses, o modo de vida dos tupinambás, a vinda dos turistas, as alterações na rotina dos que aqui viviam e as revoltas. Nestas eu me detenho agora: vendo uma situação fora do controle, beirando o extermínio das coisas mais valiosas para nós, moradores do lugar, a areia foi aberta para o mar dar um susto maior, quebrando assim o andamento das coisas e chamando a atenção do grande público. O menino do finada dona Luzia tinha uma espécie de cipó na mão, gritava contra a submissão da nossa gente à gente de fora, aos costumes que iam sendo abraçados. Entremeava a fala com lambadas no chão. Em cena apenas ele e o pai. De espaço em espaço, uma guachada nas pernas do velho.

        Depois de desabafar o rumos da história, começou a explicar a respeito de como a sua mãe resolvia a questão em casa:

      Estão vendo este reio? É ele que a mamãe usa quando vai dar lição no papai. Ela bronqueia com ele porque abaixa a cabeça para essa gente de fora, vai entregando tudo só porque chega de carro e tem mais dinheiro. Até a dignidade vai perdendo. Entre uma etapa da falação e outra ela usa isto, mostrando que precisa apanhar, sentir uma dor passageira agora para não passar o resto da vida em dores. Enquanto ele não aprender, vai levando regularmente coça da mamãe com esta mesma perna de timbopeva”.

   Conforme ia falando, batia o cipó nas pernas do velho pai, causando-lhe pulinhos e encolhimentos na movimentação para a plateia que se compadecia. Todo mundo parecia entender a mensagem. De quando em quando o velho caiçara gritava: “Valei-me Nossa Senhora das Dores”.  Segunda lição: encenar a história é repensá-la e manter a memória bem viva.

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